O Padre

LUCIF...

O garoto com a lata de spray preto terminava sua pichação na parede de pedra do lado de fora da Igreja Matriz da pequena e pacata cidade onde vivia.

- Anda logo... acho que ouvi um barulho - sussurra outro rapaz, de costas para ele, responsável por vigiar a viela que cortava a lateral do edifício.

- Tá quase, tá quase... Pronto!

Ambos se afastam um pouco para admirar a obra: um pentagrama todo torto, de cabeça para baixo, ao lado da palavra Lúcifer (escrita sem acento e com maiúsculas, revelando a baixa qualidade do ensino fornecido aos jovens ao longo dos anos.

O responsável pela arte saca da mochila uma câmera digital e um flash ilumina por um breve instante a noite escura e silenciosa, registrando o grande feito da dupla para a posterioridade. Era madrugada de domingo e a idéia era surpreender os fiéis logo na primeira missa da manhã. Eles já iam batendo em uma bem-sucedida retirada quando uma voz seca e firme os fez pararem, estatelados:

- ESPEREM!

Voltaram-se para trás. Obviamente, sabiam que deveriam ter corrido com todas as suas forças, mas por algum motivo desconhecido não o fizeram. A palavra "congelados" serviria muito bem nesse momento.

Uma figura pálida e esguia, de batina preta e colarinho branco os encarava com censura nos olhos. Não era o padre da paróquia, e pra dizer a verdade, não se parecia com nenhum dos padres que atuavam na cidade. Eles não se lembravam de já o terem visto por aí antes. Fitavam o homem, assustados, enquanto esse fazia sutilmente um gesto negativo com a cabeça.

- Tsc, tsc... Não é assim que a coisa funciona, meus filhos... - os jovens se entreolharam assustados com o sinistro timbre de voz. - Não é assim que se faz MESMO!

- Você viu...? - balbuciou um para o outro, aterrorizado perante as oscilações de cor dos olhos da criatura a sua frente, que ia do amarelo ao vermelho, passando pelo púrpura.

- São anos e mais anos agindo na surdina, comendo pelas beiradas, vocês acham que é alguma vantagem para nós escancarar as coisas desse jeito?

Se fosse possível perguntar por mais detalhes a algum dos rapazes, eles jurariam que havia uma cauda pontiaguda dançando atrás de seu interlocutor, podendo ser vista por sobre seus ombros, apontando para cima, bem como os chifrinhos protuberantes em sua testa. E o cheiro? Enxofre puro. Embora eles nunca tivessem sentido cheiro de enxofre, sabiam que aquilo era enxofre.

- Voltaremos a nos encontrar um dia. Pode ser logo ou pode demorar, mas guardem bem isso: nos veremos novamente. Se quiserem que seja logo, basta repetir o erro de hoje - e, dizendo isso, o sinistro padre desapareceu num lampejo rápido, idêntico ao flash da câmera.

Quando voltaram a si, o primeiro garoto ainda estava com o spray na mão, instantes antes de começar a desenhar. O outro havia acabado de se colocar a postos para vigiar. Soltaram um grito estridente antes de saírem correndo, deixando pra trás a mochila com a câmera, a lata de tinta e muitas de suas convicções.

FIM

Betaldi
Enviado por Betaldi em 20/08/2012
Reeditado em 20/08/2019
Código do texto: T3839760
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