Amálgama Fantasma - Cap 7 e 8

VII

Foi uma tarde longa e cansativa e eu tinha certeza que se alguém quebrasse um ovo na minha cabeça ele acabaria frito.

Enzo me fez expandir novamente e observar cada minúsculo átomo daquela estufa apenas para constatar o que qualquer um teria constatado... que seria melhor colocar os equipamentos apontados para onde houvera o fenômeno de congelamento. Ainda que isso fosse óbvio, Enzo me fez analisar folha por folha de uma bromélia que por algum motivo o deixara intrigado, a tarefa foi tão interessante quanto uma observação de folhagens poderia ser e de quebra gastou todo o tempo que eu tinha em meu estado expandido.

Mas mesmo sem o estado expandido eu ainda era muito mais excepcional que Enzo, por isso, fui obrigada a perambular com ele por um tempo interminável por entre o cafezal dos arredores da propriedade. A colheita já deveria estar chegando porque era possível ver, por toda parte, pequeninos e inúmeros frutos que enchiam as árvores numa versão tupiniquim das árvores de natal. Preocupei-me na forma como o senhor Basílio faria para colher tanto café, sem uma razoável quantidade de empregados poderia-se imaginar um prejuízo incalculável.

Já estávamos beirando o crepúsculo quando Enzo finalmente sentiu os efeitos daquela caminhada sem sentido com uma fisgada em sua panturrilha. Foi a minha deixa para sugerir que talvez estivesse na hora de encerrarmos o expediente, lembrando com um pouco de medo que ainda haveria uma sessão de invocação mais a noite e se continuássemos ali iríamos perdê-la.

- Acho que devemos encerrar por aqui – Enzo disse imediatamente após a minha sugestão de fazermos a mesma coisa – Só há um último lugar para irmos...

Minha frustração ficou no banco de reservas enquanto a titular dúvida ocupava minha mente.

Não foi difícil descobrir.

O túmulo de Adla e seu filho não nomeado ficavam próximos a uma pequena capela existente numa das laterais do casarão. O tempo foi implacável com o lar do senhor e parte do teto desabara bem como uma das paredes. Todavia, na parte remanescente, ainda era possível ver os vitrais retratando a dura realidade pela qual Jesus passara. Lá dentro, o altar estava coberto por um pano branco e encardido, com uma Bíblia aberta e velas colocadas nos candelabros, como se o local tivesse sido preparado para uma missa que nunca foi celebrada. A cruz estava ali também, grande e dourada, com detalhes que visavam suavizar a imagem da morte para não traumatizar os fiéis.

Pensei em como era engraçado as pessoas quererem chegar ao paraíso em algumas religiões, parece que elas esquecem que precisam morrer para isso.

Atrás da pequena igreja crescia um jardim que deveria ter sido cortado pela última vez no milênio passado. Não era de se espantar que Daniela não desse conta de toda a propriedade, mas com certeza o senhor Basílio não passava muito por ali caso contrário a empregada levaria um puxão de orelha.

Bem, pelo menos era o que eu achava até identificar uma solitária figura próxima aos túmulos.

- Ora, não esperava ver o senhor aqui senhor Basílio. – Enzo disse e o homem virou para encarar-nos.

Sobre a grama alta repousavam duas covas que se não fossem as cruzes desgastadas seriam impossíveis de serem encontradas. O senhor Basílio estava próximo a elas e seus olhos cansados nos encaravam como duas azeitonas. O estresse do homem deveria ter atingido um nível estratosférico, se em poucas horas eu e Enzo já presenciamos um fenômeno físico tão gritante, imagino a centena de coisas que o senhor Basílio já não deveria ter visto.

- Eu sai para tomar um ar e minhas pernas acabaram me trazendo para cá... – senhor Basílio disse num tom cansado – Acho que nem inconscientemente consigo me ver longe dos fantasmas que assombram esse lugar.

Enzo parou ao lado de nosso anfitrião e eu parei ao lado dele. Ficamos os três então a observar as covas rasas e sem nomes a nossa frente. Não pude deixar de pensar que talvez já tivesse tido um contato com algum dos sepultados.

- Não foi irracional. – Enzo disse. – Nada é irracional senhor Basílio. Nosso inconsciente está sempre em atividade. Suas pernas o trazerem até aqui é uma ação que seu inconsciente teve, uma vontade intrínseca de levá-lo a encarar o problema que o aflige para poder então resolvê-lo.

- Eu nunca tinha pensado desse modo. – Senhor Basílio respondeu com um olhar intrigado.

- Poucas pessoas pensam desse modo. Na verdade é cada vez mais fácil encontrar pessoas que não pensam. – E depois de um minuto – Não foi um comentário pessoal.

Senhor Basílio sorriu.

- Eu realmente pensei que havia sido uma má escolha chamá-lo quando o senhor não quis vir conhecer a propriedade comigo e os demais, mas estou começando a mudar de opinião.

Enzo deu de ombros e eu já sabia o que ele ia dizer.

- As pessoas são suscetíveis aos próprios pensamentos. Uma coisa às vezes se torna uma coisa simplesmente porque nós queremos que ela seja aquilo. Por isso não gosto de visitar nenhum lugar com os moradores ou com quem me contrata, você não acreditaria em como é comum as pessoas quererem acreditar que algo sobrenatural está acontecendo. Por isso prefiro conhecer o lugar apenas com a Talita, sem nada para me induzir a achar que um fenômeno paranormal está acontecendo quando ele não está.

Dessa vez o que marcou a face do senhor Basílio foi uma gargalhada que sacudiu sua barriga.

- Sem dúvidas eu mudei de opinião agora meu caro. E a partir das suas observações imparciais a que conclusão o senhor chegou?

Senti um arrepio varrer minhas costas.

- De que vou ter algumas imagens para a minha videoteca sobrenatural.

VIII

Diferente do que qualquer um podia imaginar não houve nenhuma manifestação nos túmulos dos dois possíveis responsáveis pelos fenômenos que presenciamos. Isso foi tão esquisito que precisei engolir meu cansaço e manifestar minha aura expandida mais uma vez. Porém a constatação que obtive com meu sexto sentido foi o mesmo obtido com os outros cinco... O que quer que estivesse dentro daqueles caixões estava tão morto quanto um morto poderia estar.

Dessa forma voltei com Enzo para seu quarto, onde ajudei-o a checar se todos os dispositivos espalhados estavam funcionando corretamente e mandando os seus dados em tempo real para aquela central.

- Muito bem Talita – Enzo disse após programar cada uma das câmeras num computador de modo que bastava digitar um número para a respectiva imagem ser projetada diante da tela maior, enquanto as telas menores passavam imagens aleatórias das demais câmeras – Vamos repassar o que temos até agora. Você quer começar?

- Não obrigada – respondi mal-humorada – Já tive o bastante desse lugar por hoje.

- Temos Luciano, um barão do café sem escrúpulos. – Enzo começou ignorando meus sentimentos – Temos uma sequência longa e muito bem feita de atrocidades, e como se todo esse horror não bastasse nosso querido Luciano acaba se apaixonando por uma xamã. A mulher tem um filho que desagrada nosso petulante barão e então tudo que sabemos é que uma briga acaba com a vida da criança e de Adla. Assolado por um repentino sentimento de culpa, Luciano vai até a varanda e se mata. Foi um bom resumo até aqui.

Grunhi algo que não deveria ter nenhum sentido e que Enzo entendeu como um sim e como um incentivo para continuar.

- Adla e o garoto são enterrados e o corpo de Luciano desaparece. Corre uma lenda de que o próprio demônio tenha vindo buscá-lo, o que eu particularmente acho uma lenda infundada já que o demônio tem lacaios para fazerem esse serviço por ele.

Suspirei porque um novo arrepio sacudiu as minhas costas, já encontrara alguns demônios pelo caminho e tinha péssimas lembranças.

- E duzentos e trinta anos depois temos nosso contratante, senhor Basílio, que adquiriu essa casa em ruínas e investiu todos os seus recursos para trazê-la ao esplendor de séculos passados. O que ele não podia prever é que, além do esplendor de outros tempos, ele parece ter despertado espíritos esquecidos que querem vê-lo longe daqui.

Houve um bip em um dos equipamentos, Enzo e eu esticamos os pescoços constatando que na câmera próxima a nosso quarto a temperatura caíra dois graus.

- Eeeeenzooooo...

- Pelas palavras do nosso anfitrião os fenômenos são de batidas, sons como se algo estivesse sendo arrastado, objetos que se movem sozinhos, presenças, cheiros, risadas e por três vezes ele diz ter visto a sombra de Luciano próximo ao túmulo de Adla. – Enzo concluiu como se nada estivesse acontecendo.

O crepúsculo já se tornara noite, estávamos a poucas horas de uma sessão de invocação a qual eu estaria presente, tínhamos uma manifestação de inexplicável queda de temperatura a nossa porta e Enzo parecia se divertir ao falar de fantasmas.

Eu fiquei bem mal-humorada naquele momento.

- Não podemos esquecer um pouco essa história Enzo... Porque não falamos de alguma coisa normal? A reforma da nossa casa por exemplo? Já está na hora de darmos um jeito naquele porão, não está?

Enzo me encarou com um olhar afiado e eu sabia que havia tocado num ponto delicado.

- Não toque... No meu porão...

Torci o nariz. Era sempre aquela mesma história.

Enzo tinha um apreço especial por nosso porão, na verdade o apreço era quase uma obsessão porque nem mesmo eu era autorizada a entrar nele. Não vou negar que nunca tentei, durante minha pré-adolescência missões foram planejadas e executadas e fracassadas por mim tantas vezes quanto os grão de areia em uma praia. Esse é um dos grandes mistérios do Enzo, juntamente com sua habilidade mediúnica para saber quando e como eu iria planejar uma invasão.

Mas mesmo o assunto sobre o porão ficou em segundo plano diante do estranho fenômeno que tínhamos as nossas portas, mais um bip acusador do vídeo indicava que a temperatura caíra outro grau.

- O estranho é que nenhum fenômeno de queda de temperatura foi mencionado... – Enzo disse pensativo e com uma mão coçando o queixo – Talvez eu devesse fazer a pergunta diretamente ao senhor Basílio. Ou quem sabe a empregada.

Lembrar de Daniela me causou arrepios.

- Eeeeenzooooo... Eu não gosto daquela mulher...

- Você estava nas nuvens Talita, por acaso sentiu alguma coisa com relação a mulher?

Bufei fazendo um bico.

- Não... – fui obrigada a admitir – mas ainda assim aquela mulher me dá arrepios...

- Então não precisamos nos preocupar... muito.

Eu entendia o raciocínio. Meu estado expandido me permitia achar o sobrenatural facilmente, ainda assim se o sobrenatural em questão fosse muito habilidoso – e quando digo muito habilidoso digo muito habilidoso mesmo – ele poderia passar despercebido até por mim.

- De qualquer forma teremos uma sessão em algumas horas que poderá nos trazer alguma luz a respeito das entidades que afligem esse lugar – Enzo continuou sem tirar os olhos das câmeras e soltando uma desconsolável baforada ao ver que a temperatura do monitor voltava a subir – quem sabe, com você por perto, não conseguimos um contato imediato.

Eu fiz um bico que me deixou parecido com um pato.

- Queria que você incorporasse entidades pelo menos uma vez, só para sentir como é agradável ter outra alma dentro de você.

- Se por acaso a sessão falhar podemos esperar o que o nosso padre contratado fará... Padres adoram benzer lugares e entidades odeiam ser benzidas, podemos conseguir alguma coisa com isso.

- E depois fazemos o que? – Perguntei massageando olhos cansados diante de uma cabeça dolorida, minhas costas também doíam e eu começava a cogitar sair daquela cadeira e me largar na cama como um saco de batatas – Se ficar comprovado que é mesmo o tal do Luciano o responsável pelo que acontece estamos de mãos atadas, pelo menos até encontrarmos seu corpo.

Enzo coçou sua barba mal feita e me senti infantilmente orgulhosa por ele estar analisando meu comentário.

- Sem dúvidas isso vai ser um problema... Quer dizer, se for mesmo ele o responsável sabemos que seu corpo deve estar nas proximidades, por mais poderosas que entidades etéreas sejam elas precisam estar ligadas a matéria que possuíam em vida. Acho que se ficar provado que Luciano é o problema vamos ter que pegar algumas pás e fazer alguns buracos.

O cansaço que me afligia se intensificou como uma exponencial. Enzo não brincava quando a história era cavar e por mais que possuíssemos alguns leitores de ondas magnéticas para captar distorções no solo, isso não evitava o trabalho braçal. Até porque os malditos equipamentos magnéticos não diferenciavam um corpo em decomposição de uma pedra o que tornava a coisa ainda mais frustrante.

- Porque em vez de ficar olhando essas câmeras nós não começamos a nos preocupar com o jantar? – Sugeri ao levantar para me espreguiçar, sentindo uma pontada na panturrilha que só passaria dali a alguns dias. – Meu estômago está começando a me incomodar.

- Basílio disse que seríamos avisados quando a refeição estivesse pronta, descer agora seria perda de tempo.

Imaginar o aroma especial da refeição que estava sendo preparada no andar abaixo me fez salivar. Sem dúvida a melhor parte de ter de sobreviver aos empecilhos sobrenaturais era a atenção e cuidado que nossos anfitriões nos davam.

- Você não vai ficar vendo essa porcaria a noite toda vai? – Acabei perguntando ao passar ao lado do Enzo e notando como seus olhos estavam fixos na tela – Você ainda vai ter uma crise nervosa fazendo isso.

- Prefiro ver ao vivo do que ter que ficar vasculhando gravações depois – Enzo admitiu – Se você pelo menos me ajudasse...

Fingi que a indireta não era para mim. Não era nem questão do trabalho estupidamente chato de ficar sentado por horas diante de um vídeo de uma imagem estática, porém eu já passava por traumas suficientes tendo que decidir onde aquelas câmeras seriam colocadas. Aquela era a minha parte do trabalho, vasculhar as imagens depois era com o Enzo, ele era o parapsicoinvestigador no fim das contas.

- Tive a minha cota de entidades por hoje, se me dá licença...

E sem pudor me atirei na cama dando uma boa relaxada.

- A única coisa que me intriga é porque Basílio chamaria três pessoas ao mesmo tempo para tentar resolver seus problemas com assobrações – Enzo dizia para as paredes já que eu não ouvia nada – Normalmente as pessoas buscam discrição quando o assunto é entidades. Tudo bem que não temos vizinhos próximos mas ainda assim é esquisito. Você não concorda comigo?

Só percebi que Enzo estava falando quando a pergunta foi dirigida à mim. Aquilo foi mesmo uma benção porque conseguiu me tirar do estado de torpor no qual eu havia entrado.

- Eeeeenzooooo... Você devia parar de se preocupar com essas câmeras e se preocupar mais com o que acontece ao seu redor...

Enzo virou rápido como um guepardo ao meu chamado e sua surpresa se revelou na forma de um franzir de sobrancelhas.

- Devia ter tomado providências melhores...

Eu consegui juntar energia o suficiente para saltar daquela cama tocada pelo mal...

Colado ao meu travesseiro havia uma fina camada de gelo.

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Novamente obrigado a todos que estão acompanhando!

Continua sábado 18/08

Gantz
Enviado por Gantz em 16/08/2012
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