Amálgama Fantasma - Cap 5
V
Depois de Enzo me perguntar se eu achava que levaríamos novecentos e noventa e nove mil, novecentos e noventa e nove anos, trezentos e sessenta e quatro dias e vinte e três horas para distribuirmos as câmeras pela casa, eu lhe respondi um muito bem educado palavrão e fechei a cara.
A central de Enzo estava montada e era sem dúvida uma estrutura impressionante, chegava a ser ridículo imaginar que passássemos meses economizando nas contas com o tipo de equipamentos que tínhamos. Eram cinco monitores tela plana, um deles com 21 polegadas, dispostos em dois andares numa mesa dobrável que Enzo patenteara. Uma série de antenas estavam na parte superior viradas em todas as direções para que sinais pudessem ser captados de qualquer lugar. Havia uma plataforma onde podíamos ouvir os sons de qualquer microfone com apenas um toque, e estabilizadores e cabos que poderiam muito bem ocupar o salão da Nasa. Enzo estava finalizando a última peça, um microfone diretamente linkado com um terminal portátil, de forma que a comunicação pudesse acontecer entre a central e qualquer um que saísse para um local remoto para investigar.
Importante ressaltar que esse alguém era sempre eu.
A parafernalha era incrivelmente destoante naquele quarto, ainda mais por ele ser exatamente igual ao que eu usava. O antigo e o moderno criavam uma mistura interessante mas para mim eram dois mundos que não se misturavam muito bem.
- Vamos espalhar as câmeras e os microfones e depois podemos nos preocupar com alguma coisa para comer.
Pensar em comida fez meu estômago roncar. Tivemos um almoço sem graça no caminho para aquele lugar e eu começava a me dar conta do quão faminta estava.
Enzo colocou as câmeras em uma mochila e a jogou por sobre o ombro. Normalmente era assim que fazíamos, eu funcionava como antena, captando as coisas potencialmente assustadoras e indicando o lugar onde Enzo colocaria alguma das bugigangas que tínhamos. Na maioria das vezes eram tentativas frustradas mas quando encontrávamos alguma coisa... Se Enzo não fosse tão possessivo com as imagens e sons gravados já os teríamos vendido para algum programa sensacionalista e estaríamos desfrutando de quartos parecidos com os que desfrutávamos agora.
- Ora de ir para as nuvens Talita.
Bufei tentando colocar a minha mente num estado relaxado. Muitas pessoas me consideram estressada – eu mesmo sou uma delas – mas é inegável a capacidade que tenho de entrar num estado zen em questão de segundos. Não um estado zen qualquer, eu gosto de chamá-lo de estado expandido, Enzo diz que eu vou para as nuvens...
Logo minha cabeça estava tão leve quanto um balão de hélio. Com isso já começava a sentir um pinicar na pele proveniente de um mundo que eu não habitava. Essa era a sensação mais básica, como se eu estivesse saindo do contato com o ar e entrando em uma piscina etérea. O pinicar passou a aumentar, começara na minha nuca e agora ia descendo pela espinha, seguindo as terminações nervosas de meu corpo. Quando ele me dominasse por completo começariam as sensações expandidas e se houvesse algo por perto eu saberia.
Conforme meu espírito ia para lugares intangíveis me coloquei em movimento. Confesso ficar meio esquisita quando estou expandida, como se me tornasse repentinamente autista, meus movimentos ficavam mais lentos e meu olhar arregalado, tudo devido a dificuldade de me mover entre dois mundo tão distintos. Nesse estado cheguei até a porta pronta para desafiar o sobrenatural mais uma vez.
Concentrada abri a porta e quase toda a minha concentração foi pelos ares ao encontrar padre Sávio parado ali.
- Perdão minha jovem eu não quis incomodá-la... A senhorita está bem?
Eu adoraria responder mas estava usando a minha concentração para não perder o estado em que havia entrado. Era como nadar num lago gelado, é gostoso depois que você se acostuma com a temperatura mas é preciso muita coragem para dar o primeiro mergulho. Eu não estava a fim de mergulhar de novo e por sorte Enzo conhecia minha vontade.
- Talita está apenas se concentrando para encontrar as coisas que precisam ser encontradas – Ele disse colocando-me gentilmente para o lado – E o senhor padre Sávio, a que devo sua visita?
O homem olhou para mim com seus olhos azuis inquisidores, não duvidava que como um membro da igreja ele não aprovasse os meus métodos. Contudo o homem manteve a postura, levando sua atenção para outra coisa.
- É um equipamento bem impressionante que o senhor tem aqui – disse se referindo as bugigangas às costas de Enzo.
- É preciso o melhor para para encontrar os que não querem ser encontrados.
Sávio riu.
- Concordo senhor Enzo, mas não entendo como essas coisas artificiais possam ajudá-lo.
- Pode ser, mas elas documentam o que vemos e essa é a grande vantagem. Entidades raramente são estudadas pela luz da ciência e por isso há tanta dificuldade em compreendê-las.
- Senhor Enzo, acredito que sejamos homens diferentes. Minha única crença é a fé. Por mim certas coisas estão acima do nosso conhecimento e deveriam permanecer assim.
- Creio que não poderíamos discordar mais, padre. Mas tenho certeza que uma discussão filosófica não foi o que trouxe até minha porta.
- Desculpe ter me desvirtuado – o padre disse com uma reverência – Eu vim apenas transmitir um recado da nossa colega Giovana. Ela pediu para avisá-lo que fará uma sessão está noite onde tentará contato com os espíritos dessa casa, e que o senhor e sua filha são bem vindos se quiserem participar.
Ouvir o nome daquela mulher me embrulhou o estômago mas ser chamada de filha daquele troglodita quase me fez perder meu estado mais uma vez.
- Talita é apenas uma assistente padre – Enzo corrigiu tocando gentilmente meu ombro para que eu sumisse com o olhar assassino que inundou meus traços – e obrigado pela notícia, será um grande prazer estar presente na sessão desta noite.
Sávio me encarou com um olhar furtivo, talvez em sua mente dogmática ele não conseguisse entender como eu poderia ter uma relação normal com Enzo se não fosse filha dele. De qualquer forma eu não quis me estressar imaginando o tipo de pensamentos que passavam pela cabeça de um religioso com idade tão avançada, eu havia terminado de entrar no mundo expandido e era hora do trabalho.
- Estou pronta Enzo. – Comuniquei esperando que assim o padre fosse dispensado mais rapidamente.
- Então vamos indo. Padre Sávio foi um prazer conversar com o senhor, quem sabe não podemos ter outra conversa em uma ocasião mais propícia. No momento precisamos correr ou não conseguiremos posicionar tudo a tempo.
O padre aquiesceu e se despediu. Enzo e eu fomos para o corredor.
- Então, onde colocamos a primeira câmera? – Enzo perguntou quando o velho religioso estava longe o bastante para ouvir-nos.
Eu engoli seco porque odiava o que ia dizer.
- Aqui mesmo... Tem alguma coisa muito ruim perto da nossa porta.
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Obrigado a todos que estão acompanhando!
Continua terça 14/08