O Livro dos Mortos
Abriu os olhos devagar enquanto sentia uma terrível dor de cabeça. A expressão no rosto denotava o desconforto, estava nauseado. Tentou levar as mãos à cabeça, mas percebeu que estavam presas, pior, estavam amarradas atrás de suas costas na desconfortável cadeira de madeira na qual se encontrava sentado. Ergueu o rosto e olhou ao redor, se deu conta de que não conhecia aquele ambiente. A pequena sala estava mal iluminada, sob seus pés descalços sentia o chão de cimento batido, áspero e molhado. As paredes não eram revestidas, percebia os tijolos cor de abóbora, acima algo que parecia ser uma laje. Fazia muito calor, não conseguia distinguir janelas ou portas, o ambiente era abafado, suava.
Notou que trajava apenas a sua cueca boxer, alguém havia tirado a sua roupa enquanto estava desacordado. “O que diabos está acontecendo aqui”, protestou. O coração batia forte e descompassado, forçou a mente. Tudo do que se lembrava era de ter deixado a universidade e seguir a pé pela avenida pouco movimentada tarde da noite. Justo naquele dia seu carro tinha apresentado problemas, estava na oficina. “Me sequestraram? Mas a quem vão pedir resgate?”, meditou. É verdade que tinha dinheiro, mas não tinha a quem pedir o resgate, não possuía família, uma riqueza que sabia ser maior e da qual sentia muita falta. Sua vida, seus sonhos e ambições o conduziram a solidão.
- Confortável?
Ouviu a doce voz feminina sem a reconhecê-la de início. Descia uma escadaria que não tinha percebido, mas que a luz da porta recém aberta a tinha deixado exposta. Atrás da mulher inicialmente misteriosa vinham três homens. Gustavo cerrou os olhos na tentativa de apurar a vista, a cabeça ainda doía. A mulher caminhou com doces passos, percebia o gingado se sua cintura, ergueu a mão e ascendeu a rústica lâmpada que pendia do teto.
Com a claridade lúgubre de uma lâmpada de 25 volts Gustavo assustou-se ao descobrir que a mulher que lhe dirigia a palavra era Samara, sua brilhante aluna da disciplina de História do Oriente. Jovem, com cabelos castanhos, olhos cor de mel, nariz fino e boca pequena, Samara era a expressão da beleza e a voz da inteligência. Uma das alunas mais brilhantes que tivera em seus dez anos de ensino superior. Trajava um vestido branco.
- O que significa isso, Samara? Porque está fazendo isso comigo? – protestou Gustavo.
Reconheceu o rosto marcado por cicatrizes de espinhas de um dos homens que estavam postados atrás da jovem. Quando caminhava pela calçada da avenida no que parecia ter sido há uma vida, foi abordado pelo sujeito bruscamente, enquanto sentiu um forte braço envolver seu pescoço seguido de um lenço branco com um produto químico que o fez dormir.
- Eles trabalham para mim, disse para trazê-lo até aqui. Você tinha que dificultar as coisas. Eu não hesito em usar violência quando preciso – falou Samara.
- Trabalham para você? – Gustavo realmente não entedia como uma menina de 20 anos tinha capangas. É certo que ela ingressou na universidade há apenas dois meses, mas parecia ser uma jovem normal, não aparentava ser alguém capaz de ter capangas e mandá-los sequestrar uma pessoa.
- Quem é você? – perguntou Gustavo – O que quer comigo?
- Eu sou apenas uma aplicada aluna de História Oriental- disse seguido de um sorriso maldoso – Sabia que aquela disciplina me fascina? Assim como você.
Aproximou-se de Gustavo acariciando o seu peito cabeludo, depois poderemos nos entender melhor, se você colaborar. O porte atlético de Gustavo, rosto severo e seu 1,85 o faziam alvo de comentários e olhares maliciosos das meninas, no entanto sempre manteve o respeito como faria um exemplar professor universitário.
- Não tenho nada que você possa querer – disse olhando para ela.
- Eu quero o Livro dos Mortos! – gritou ensandecida.
- Não sei do que está falando.
- Não se faça de burro, não combina com você! – entrei naquela universidade e me inscrevi para sua disciplina porque sei que você tem o Livro dos Mortos!
- Quem é você?
- Meu nome é Alexandra Klauchewitz! Persigo esse livro há décadas....é um sonho.
- Décadas?
De repente a pele da bela jovem foi murchando lentamente, os cabelos castanhos ficando brancos e quebradiços, o olhar caindo, ficando cada vez mais enrugada. A jovem de 20 anos deu lugar a uma senhora que aparentava 80 anos.
- A magia não dura muito tempo – pronunciou ofegante, ergueu a mão esquerda e recebeu uma bengala de metal de um dos seus capangas. Apoiou-se nela com uma das mãos. – O Livro dos Mortos garantirá que a minha vida e beleza perdurem, além de concretizar meus sonhos mais importantes.
Percebendo que não adiantava continuar se fazendo de desentendido, decidiu ser franco:
- Quer o livro apenas para isso. Todos temos de morrer um dia. O livro não prolongará sua existência.
- Seu tolo. Quem controla o Livro dos Mortos controla a morte, e quem controla a morte controla a vida. Como disse, tenho sonhos a concretizar, e neles está incluso eliminar algumas existências. As pessoas, ou os filhos dos que tiraram a vida de meus pais, além de reerguer uma grande nação, cujo destino é dominar o mundo.
Os pais de Alexandra foram ávidos integrantes do partido nazista na Alemanha de Hitler. O seu pai, Erick Klauchewitz, comandou campos de concentração que tiraram a vida de milhares de judeus. Com a derrota da Alemanha fugiram para o Brasil, onde terminaram cometendo suicídio quando se viram descobertos e na iminência de serem deportados para Israel, onde seriam julgados como criminosos de guerra. Crentes no ocultismo deixaram várias lições para a filha e antes de morrer não se esqueceram de pedir que matasse os responsáveis pela sua descoberta. Com 20 anos quando isso aconteceu, Alexandra jurou, e ao longo das décadas seguintes procurou atender ao pedido dos pais, e ampliá-lo. Alguns dos responsáveis pelo infortúnio da família morreram com o tempo, outros ela matou, e queria extinguir a descendência dos que não alcançou. Poria as mãos neles também. Muitos constavam na lista, desde conhecidos que pareciam ser amigos da família, até funcionários do governo, militares, burocratas, autoridades policiais.
Com seu dedicado estudo do ocultismo e das artes obscuras descobriu como manter a aparência jovial e com o tempo descobriu a existência do Livro dos Mortos, enquanto concretizava sua lenta vingança, o procurava sem sucesso, até saber do jovem professor universitário, e de suas interessantes aulas, onde mostrava um saber atípico, aparentando estar décadas a frente de nossa época. Após se informar descobriu serem grande as chances de que ele o portasse, decidindo então se tornar “aluna” para confirmar a informação, algo que acabou acontecendo. Com o livro teria mais tempo de vida, mais do que um humano comum. Voltaria a sua pátria natal, onde restabeleceria o nazismo.
- Sinto muito, mas não terá o livro – disse Gustavo com naturalidade de um pai que diz a filha que esta não poderá ir à festa com as amigas.
- Seu idiota, cheguei até aqui, depois de muito sofrimento, e não vou recuar. Vasculhamos a sua casa, nada encontramos, mas sabemos que está com ele, e agora, você me dirá.
- Então foram vocês?! – havia percebido que alguém tinha estado na casa, apesar do cuidado dos invasores em não deixar provas, ele notou a violação de seu lar - Como eu disse antes, não o terá.
Quando adquiriu o livro em sua viagem à Índia, há três anos, Gustavo sabia que poderia ter problemas, por isso sempre foi discreto quanto a existência do manuscrito. Ela tinha razão, o Livro dos Mortos, que tinha lhe custado uma fortuna, possuía muitos mistérios ainda não desvendados, o poder de dar e de tirar vidas, além de conjurar os mortos e evocar espíritos. Estudava os textos avidamente. Escrito em sânscrito, idioma já extinto, o livro limitava o número de pessoas que conseguiria decifrá-lo. Era sua maior fortuna, e não o entregaria, a sua sede de conhecimento sobre esta e a outra vida não tinha limites. Essa era sua ambição, descobrir as verdades desta e de outras vidas. Comprou o livro de um contrabandista, que por sua vez o tinha roubado de um antigo templo Hindu. Não importava em que circunstancias o tinha adquirido, agora era seu.
A idosa fez um sinal com a cabeça e um dos capangas, um homem alto e muito forte, pele clara e totalmente desprovido de cabelos o fez cair da cadeira e se ajoelhar bruscamente. Outro veio e jogou baldes de água, deixando-o totalmente ensopado, formando uma lagoa ao seu redor. Um terceiro aproximou uma pequena máquina puxada através de quatro pequenas rodas. Não demorou para perceber do que se tratava, uma máquina de choque. Quando foi ligada fez a luz ambiente oscilar, mostrando a sua intensidade.
- E então?....
Apenas silêncio.
Alicates foram apertados em seus pulsos e com um sinal a sessão de tortura começou. A corrente elétrica percorria o robusto corpo de Gustavo, fazendo-o sofrer terríveis espasmos musculares. O coração batia descompassadamente. Depois de alguns segundos que pareceram horas, o choque parou.
- Nada ainda? - perguntou a macabra senhora que permanecia em pé, impassível à frente do torturado.
Gustavo não respondeu e os choques recomeçaram. A luz da lâmpada no teto oscilava. Concentrados demais na tortura, os quatro não perceberam quando a temperatura ambiente começou a baixar. O barulho da máquina e os gemidos não os deixaram ouvir os passos vacilantes de pessoas se aproximando. Quando a máquina foi desligada, a senhora e os três capangas sentiram um pútrido cheiro no ar, todos sabiam que era carne humana em decomposição. Barulhos estranhos como gemidos e gritos de desespero emanaram de todos os lados, os passos finalmente foram ouvidos.
- Quem está aí? – disse Alexandra.
A resposta não veio através de som, mas de imagens, viu dezenas de pessoas surgirem repentinamente de todos os lados, se aproximarem lentamente, vestiam roupas maltrapilhas, e que não pareciam ser usadas no Brasil, nem nessa época. Pessoas com vísceras à mostra, corpos mutilados, rasgados, em decomposição, com moscas voando ao redor, mãos em esqueleto. Ninguém acreditava.
Os capangas puxaram as armas e começaram a atirar para todos os lados. As balas grudavam junto a corações, pulmões e intestinos à mostra. Estavam cercados.
- Faça-os parar! – gritou Alexandra para Gustavo, que nada pronunciou. Apenas olhou enquanto os espíritos errantes cercaram os quatro e enterravam as mãos nas vítimas.
- Nãããããããõooo....- gritou Alexandra enquanto sentia a vida deixando-a.
Em questão de minutos os três caíram no chão, secos, todos os seus fluídos foram drenados. Gustavo sabia que aqueles espíritos sem paz, haviam sido condenados a uma eternidade entre o mundo dos vivos e dos mortos. Estavam fadados a acompanhar o livro ou quem estivesse com ele, não eram protetores, apenas fantasmas amaldiçoados.
Enquanto tentava se levantar um dos fantasmas se aproximou vacilantemente e acariciou o queixo de Gustavo com sua mão decomposta, o fedor quase o fez desmaiar. Pensou que fosse ser morto já que não tinha controle absoluto sobre eles. As cordas se soltam e as almas penadas desapareceram. Ele se ergueu e viu a cena ao redor, não podia dizer que lamentava, mas também não se alegrava. Vestiu-se e saiu. Para a sua sorte ainda era madrugada, 4h00 da manhã, ninguém o viu deixando a bonita casa localizada em bairro nobre. Teriam assunto para falar por semanas quando encontrassem os corpos.
Foi até sua casa. Descansou, e às 10h00 da manhã dirigiu-se ao banco. “Os bancos não guardam apenas dinheiro, tolos”, pensou com um pequeno sorriso no rosto. Ao ter acesso a área onde ficam os pertences de grande valor e ser deixado só em uma pequena sala, pôde ver o Grande Livro dos Mortos. Volumoso, com uma capa constituída de várias camadas de pele humana ressecada e negra, Gustavo o folheou várias vezes, apenas pelo prazer de fazê-lo. Estudava-o todos os dias através das cópias que tinha digitalizado, as vantagens do mundo moderno, mas não era louco de deixá-lo em casa, e os últimos acontecimentos provaram isso.
- Você será meu para sempre – falou.
- Sim – sussurram as páginas aos serem fechadas.
FIM.