Amálgama Fantasma - Cap 3 e 4

III

Enzo me encarou com um olhar afiado, já padre Sávio e o senhor Basílio tinham as sobrancelhas levantadas e um olhar realmente intrigado. A única que parecia se divertir com a situação era a vulgar médium.

- Apesar de pirralha você tem uma boa percepção – Giovana comentou com um sorriso furtivo – Sim, há três presenças conosco nessa sala e elas já estão nos acompanhando há algum tempo.

Eu encarei os olhos escuros de Enzo e percebi que ele havia notado meu desconforto. Eu assumo que tenho um pouquinho de medo de entidades, mas uma coisa em especial naquelas três presenças me deixava desconfortável... A raiva. Havia tanta raiva que se eu não tomasse cuidado poderia me afogar.

- Pelo que nossas duas médiuns podem nos adiantar não vamos lidar com um final ao estilo felizes para sempre, certo? – Foi tudo o que Enzo concluiu depois de desviar o olhar de mim e voltar a rabiscar seu caderninho. Por um momento minha raiva se somou a dos mortos e se Enzo tivesse um pinguinho de percepção teria sentido um arrepio.

- Temo que não. – Nosso anfitrião prosseguiu – Veja bem, Luciano era perverso, ele não se incomodava com a luxúria em relação a suas escravas, ele as considerava menos do que humanas. Adla era uma exceção. A única exceção. Um bebê, para ele, continuava sendo só um bebê.

Meu estômago se remexeu de um jeito desconfortável e de repente o rápido almoço que tive começou a pesar.

- Claro que não era o bebê que ele esperava. Adla deu a luz a um filho e não uma filha que presumo tenha sido desde o princípio o desejo de Luciano. Aqui é onde os relatos se tornam confusos, a maioria diz respeito a uma briga poucos dias após o nascimento do infante, cujo resultado foi Luciano assassinando Adla e seu filho. Em seguida o resto de sua humanidade o consumiu e ele se enforcou na varanda dessa casa.

- Não me surpreende um destino tão horrendo... Que outras coisas seriam esperadas aos ateus e aos xamãs? – O padre disse dando um suspiro – Onde os infelizes estão sepultados?

- Os restos de Adla e seu filho estão nos fundos dessa casa. Quanto a Luciano seu paradeiro é um mistério.

Enzo ergueu uma sobrancelha.

- Um mistério?

- Não há registros de onde Luciano foi enterrado. Embora haja uma lenda de que o próprio demônio tenha vindo buscá-lo.

- Sem dúvida uma lenda interessante – Enzo disse anotando aquele detalhe. – O senhor realmente se empenhou para colher informações senhor Basílio.

O homem deu um sorriso triste.

- Acredito que não vai demorar para os senhores perceberem o tipo de problemas pelo qual essa casa passa, quando se derem conta disso vão entender porque eu me preocupei tanto em conhecer o inimigo.

- Já que tocamos no assunto, o senhor ainda não nos disse especificamente o problema aqui. Pelo menos a mensagem que enviou para mim retratava coisas perturbadoras, o que é um tanto vago para começar a trabalhar – Giovana colocou e aquela era sem dúvida uma questão que intrigava os demais.

Senhor Basílio suspirou e tanto ele quanto eu tivemos um calafrio.

- Batidas, sons como se algo estivesse sendo arrastado, objetos que se movem sozinhos, presenças, cheiros, risadas e por umas três vezes vi uma sombra próximo ao túmulo de Adla...

- Você acha que essa sombra era da mulher?

- Não... – Basílio disse distante – A sombra sem dúvida era de Luciano...

- O senhor tem certeza?

- Sim... das três vezes eu estava perto o bastante para não ter a menor dúvida...

Me encolhi um pouco mais sobre mim mesma.

- E o senhor acredita que as demais manifestações também são responsabilidade dele?

- Isso é com os senhores. Embora em minha humilde opinião acho difícil um único espírito ser responsável por tudo que aflige essa casa...

- Em relação aos túmulos de Adla e seu filho, a propósito qual o nome do garoto? – O padre perguntou.

- Não houve tempo para que um nome fosse dado, senhor Sávio...

Houve um momento de silêncio em memória ao falecido bebê.

- Há quanto tempo o senhor comprou essa casa? – Enzo perguntou mais uma vez trazendo a conversa ao redor do ponto principal.

- Fazem mais ou menos três anos. Ela estava bem destruída e foi preciso um grande investimento para reformá-la.

- E há algum relato de coisas estranhas durante a reforma?

- Um dos pedreiros caiu do segundo andar logo nos primeiros meses e veio a falecer, mas seus próprios colegas disseram que ele havia bebido além da conta dia anterior. Fora isso nada de anormal. Porém bastou eu vir morar aqui e chamar essa casa de lar para o inferno começar.

- Então nosso trabalho é basicamente nos livrarmos das presenças que o perturbam, certo senhor?

- Eu só quero paz na minha casa senhor Enzo. Nada mais do que isso.

- Acho que temos a história, os inimigos e o objetivo – padre Sávio disse esfregando as pernas – Eu só tenho um pedido senhor Basílio, que é ver os túmulos de Adla e seu filho. Se o senhor puder me mostrar o caminho...

- Imagino que esta deva ser uma vontade de todos. Podemos ir lá agora se estiverem de acordo.

Giovana se manifestou a favor da ideia e eu já estava para seguí-la com o intuito de não ser a penúltima da fila em uma casa mal-assombrada –porque em casas mal-assobradas todos sabem que o último da fila é sempre um fantasma – quando Enzo colocou a mão em meu ombro.

- Eu e Talita veremos isso depois, há uma série de equipamentos que precisamos trazer. Espero que o senhor não se incomode de espalharmos algumas câmeras por aí.

- Se isso for ajudar a por fim a meu tormento...

- Será um começo, vamos Talita.

Enzo então fez algo que ele normalmente fazia. Levantou e deu as costas aos demais, andando como um soldado ao final de um filme de ação. Mas a situação era realmente engraçada porque eu precisava ir correndo atrás dele já que cada passada sua valia por duas minhas e, especialmente naqueles momentos, Enzo gostava de acelerar apenas pelo prazer sádico de me ver suando ao acompanhá-lo.

E assim seguimos para fora da assustadora casa do senhor Basílio, onde um pai dominador, uma mãe furiosa e um bebê inocente continuavam lutando em um combate aparentemente sem fim. Esse foi o cenário de nosso caso de número 18: Amálgama Fantasma.

IV

- Vamos me ajude aqui.

- Se você não está vendo eu estou com as mãos ocupadas!

Enzo tinha um Gurgel o qual eu suspeitava ser o carro mais velho em atividade no mundo. Ele era de uma cor insossa e a sujeira estava incrustrada na lataria tanto quanto a pintura. A mecânica era um desgosto, ligar aquele Gurgel em dias frios levava mais ou menos o mesmo tempo que esperar uma flor desabrochar em câmera lenta.

Ainda assim era o único veículo que tínhamos para carregar a nós e a imensa parafernalha que Enzo dispunha. Seu arsenal era bem extenso e incluía microfones sensíveis, máquinas fotográficas analógicas e digitais, câmeras de vídeo com infravermelho, filmadoras portáteis, monitores atmosféricos, detectores de movimento, contadores Geiger, câmeras térmicas, detectores EMF, um sismógrafo e um kit de análise forense.

Claro que aquele monte de tralha era inútil na maioria das vezes mas isso não impedia Enzo de lotar a traseira do Gurgel com aquele lixo. Talvez por isso o veículo fosse tão mal-humorado.

- Meu Deus! Nós vamos ter que fazer umas trezentas viagens para levar tudo isso!

- Podemos começar a viagem número um agora – Enzo disse tirando do bolso mais um dos artefatos que levava para qualquer lugar, um bombom Sonho de Valsa.

Me sentia uma carregadora de algum hotel de luxo que precisava levar as malas cheias de tranqueiras de um mala. Minha raiva era ainda maior porque Enzo vinha com a metade do que eu carregava já que precisava ter uma mão livre para comer seu maldito bombom.

Eu respirei fundo sabendo que me frustrar seria perda de tempo, Enzo sempre agia como se fosse a pessoa mais importante do mundo. Eu tentei então aproveitar o dia de Sol e a estadia que, apesar de assombrada, seria muito confortável. Uma casa daquele tamanho deveria ter camas king size e colchões de mola, bem como banheiras e toda a sorte de bugiganga que uma garota precisa para se sentir uma diva. Seria ótimo relaxar com alguns daqueles mimos, me ajudariam a esquecer os convidados de outro mundo que eu com certeza encontraria mais cedo ou mais tarde.

- Então há três espíritos ali...

Ótimo, lá estava o Enzo agindo como o parapsicoinvestigador que eu conhecia. Sempre me trazendo para a realidade. Sempre me obrigando a ficar alerta com o mundo que existia ao redor. Talvez ele me deixasse em paz se tivesse alguma noção do quão horrível eram as sensações que eu tinha mas pedir algo assim é absurdo, Enzo não sentia os cutucões que eu lhe dava nas noites em que seus roncos chegavam aos decibéis de um trator, imagine as sutis presenças que existiam nos outros planos.

- Difícil dizer se são somente três, mas com certeza são três os que você deve se preocupar.

Sentir espíritos não é uma ciência exata. Eles são como mágicas. Às vezes você consegue pegar o truque mas às vezes deixa escapar. Em condições normais é preciso um estado de espírito bem calmo para se quantificar quantas e quão poderosas são as entidades em um local, mas em alguns casos as entidades estão tão perturbadas que é como um mágico fazendo um truque ruim.

- Você acredita que eles sejam tão violentos quanto nosso anfitrião diz serem?

Eu bufei sentindo um arrepio varrer meu corpo. A raiva que eu senti vindo dos espíritos ainda me deixava desconfortável.

- Eu sei que vamos ter de tomar cuidado...

Enzo lambeu os dedos sujos de chocolate e não disse mais nada durante os dez minutos seguintes que usamos para trazer as coisas do velho Gurgel para a sala de estar. O veículo estava estacionado relativamente próximo a residência mas a quantidade de tranqueira nos obrigou a três exaustivas viagens – e claro que Enzo me alfinetou perguntando se eu não gostaria de dar mais duzentos e noventa e sete passeios por aí.

- Vocês se mudaram para cá? – A voz de Giovana veio cortando o ar como um chicote e me atingindo numa hora de particular mal-humor.

- Trouxe umas roupas mais compridas se você precisar...

- O que você–

- Gostamos de uma abordagem diferente – Enzo disse rápido para que as farpas não acabassem se tornando estacas – Eu gosto de documentar as manifestações. Dar um embasamento científico à elas.

- O último Velasquez dando um embasamento científico aos mortos. Seus pais devem estar orgulhosos...

Vocês devem imaginar que Enzo Velasquez não acordou num dia particularmente entediante pensando “vou largar tudo e me tornar parapsicoinvestigador”. Eu não conheço muito da família de Enzo mas sei que a idéia de correr atrás de fantasmas e afins é algo familiar, um tipo de loucura genética. Porém houve um evento – que Enzo nunca quis me contar – que acabou por torná-lo o último Velasquez vivo e por consequência o último parapsicoinvestigador do mundo. Só há um problema nisso, a família de Enzo era famosa por ter os melhores médiuns do mundo, cada Velasquez era uma gigantesca antena de comunicação entre os vivos e os mortos.

Cada Velasquez à exceção de Enzo.

- Meus pais estão mortos então a opinião deles não é de muita importância. – Enzo disse com a mesma sensibilidade de uma luva – A propósito já viram os túmulos?

- Sim – senhor Basílio disse espantado com a frieza de Enzo – E fiz um rápido tour pela propriedade com eles, estava indo agora mostrar-lhes os quartos.

- Isso muito me interessa. Vamos Talita?

Nosso anfitrião nos guiou por uma escadaria de mármore até o segundo andar e eu por pouco não amarrei um lenço ao redor do queixo para impedí-lo de cair...

Havia um corredor largo onde um boi poderia passar sem problemas, quadros estavam pendurados nas paredes de cores sóbrias e cada lustre deveria valer meu peso em ouro. Eu já tinha visto mansões estupidamente grandes em filmes e seriados mas estar ali, no coração de uma delas, era completamente diferente. Nos filmes você não consegue sentir o cheiro do mogno do qual as portas eram feitas, nem a maciez do tapete que o coloca nas nuvens, nem o eco de sua respiração contra as paredes... Eu estava deslumbrada, a ponto do meu coração acelerar.

- Esta propriedade conta com dezoito quartos. Apenas dois estão ocupados portanto os senhores têm a liberdade de escolherem qualquer um dos demais, embora se me permitirem, tenho quatro opções que acredito será do agrado dos senhores.

- Dois quartos ocupados? – Enzo perguntou pensativo – Imagino que um seja do senhor então o outro de quem seria?

- Se o jovem Velasquez tivesse nos acompanhado essa pergunta não precisaria ser respondida de novo. – Giovana alfinetou.

Enzo reagiu ao comentário do mesmo jeito que reagiria a uma ameba boiando num riacho. Já eu franzi o rosto visivelmente irritada. Zombar do Enzo era uma atividade minha e não era uma pseudo-médium qualquer que ia assumir o meu lugar.

- Desculpe se nós trazemos mais de uma mala para trabalhar. – Retruquei com uma mão na cintura.

- É, com você são quantas?

- Senhoritas, por favor... – Senhor Basílio interrompeu – Tenho certeza que gostariam de ver os seus quartos. Por aqui.

Eu fiz questão de fazer minha cara mais feia enquanto nos colocávamos outra vez em movimento.

- Os funcionários não conseguem ficar aqui mais do que alguns dias – nosso anfitrião respondeu à pergunta de Enzo e seus ombros caíram com o peso que carregava – E achar novos funcionários está cada vez mais difícil porque os boatos começam a correr a cidade. Mas tive sorte pois há alguns dias contratei uma nova empregada que disse não se importar com os fantasmas. Se isso é verdade ou não, creio que descobriremos com o tempo.

- Então é basicamente o senhor e essa nova empregada em toda a casa? – Enzo havia sacado seu caderno de anotações mais uma vez e começava a encher suas páginas de palavras.

- Sim senhor.

- E como o senhor conheceu essa mulher.

- Eu coloquei anúncios em diversos jornais. Diz ela que foi assim

que me encontrou.

- E ela já viu alguma das manifestações?

- Se viu não me disse. Embora deva dizer que a mulher não fala muito... Aqui, chegamos.

Estávamos no fim do corredor onde o senhor Basílio nos apresentou os quatro quartos que seriam nossa morada durante aquela estadia.

- Eu separei os melhores da casa. Mas sintam-se a vontade se quiserem trocar.

Por um momento eu esqueci a médium megera, o chato do Enzo, o perturbado anfitrião e o insosso padre. Minhas atenções estavam focadas a minha frente porque eu sabia que atrás daquela porta o paraíso estaria esperando por mim.

Confesso que devo ter parecido meio afobada em minha investida mas fazer o quê, para quem vive em uma casa de 50m² ter um quarto com o dobro do tamanho é um evento e tanto. Eu escancarei a porta e acho que se meu sorriso esticasse mais eu racharia os lábios...

O piso era de madeira em um tom claro combinando com as paredes em cores creme. Havia uma porta de vidro que dava para uma grande varanda onde uma mesinha e duas cadeiras estavam colocadas; também haviam cadeiras do lado de dentro, móveis de madeira certamente caríssima que ostentavam uma tapeçaria feita em pano vermelho com detalhes dourados, mesmo padrão das cortinas, do tapete e da cabeceira da cama. E por falar em cama ela era uma king size tão alta que eu precisaria de um pulinho para me sentar. Acelerei até esticar o pescoço por uma porta lateral e encontrar o maior banheiro que já vira na vida, bem como uma das maiores banheiras de todos os tempos.

Eu não tivera um começo promissor naquele lugar mas era inegável que as coisas estavam melhorando.

Pelo menos até Enzo cortar o meu barato.

- Vamos Talita, temos muita coisa que instalar até a noite.

- Ora, qual é! Nós podemos descansar um pouquinho não podemos? Você mesmo estava querendo vir ver os quartos!

- E agora que já vimos podemos voltar ao trabalho. Preciso que me ajude a trazer os equipamentos aqui para cima. Vamos montar uma central e depois podemos ir distribuindo as câmeras pela casa.

Eu bufei fazendo um bico.

- Qual é... Isso vai levar um milhão de anos...

Gantz
Enviado por Gantz em 10/08/2012
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