Amálgama Fantasma - Cap 2
Já que todos acharam que deveria continuar aqui, então continua rsrs
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II
- Matar? – A jovem perguntou enquanto eu tinha um arrepio.
- Sim senhorita Giovana. Devo dizer que requisitei seus serviços, juntamente aos de padre Sávio e de Enzo, porque dentre os muitos que procurei vocês pareciam os melhores em suas áreas de atuação.
Padre Sávio fechou a Bíblia e olhou com uma absurda expressão de superioridade todos nós.
- Só existe uma área senhor e somente a Santa Igreja a domina.
Eu torci o nariz, ao mesmo tempo Enzo e Giovana se encararam distantes da discussão que ocorria.
- Você continua um vagabundo. – Ela disse.
- E você envelheceu. – Enzo retrucou.
- Vocês se conhecem? – Questionei surpresa já que Enzo tinha a mesma vida social que um ermitão budista.
- Eu já precisei salvá-la de alguns baderneiros – Enzo comentou desinteressado.
- Não, não, você não me salvou. Acho que já deixei isso bem claro.
Enzo deu de ombros e entendi que como sempre ele não ligava a mínima para o caso.
- Podemos deixar a reunião para depois? Eu realmente gostaria de
saber o porque de ter sido chamado – Padre Sávio disse.
- Isso é relativamente simples. – A médium Giovana respondeu sobre um olhar de desaprovação do padre – Tem alguma coisa ruim aqui. Ou melhor dizendo, várias coisas ruins.
Enzo olhou para mim de esguelha e eu assenti. Sim, haviam várias coisas ruins naquela casa.
- Você está completamente certa – senhor Basílio começou – Eu herdei essa casa a pouco tempo e francamente não sei o que fazer com o que presencio aqui...
Lá estava o verbo que eu odiava... Presenciar. Se eu pudesse extirparia essa palavra dos dicionários. Sempre que a palavra presenciar era citada eu sabia que coisas acabariam sendo presenciadas...
Por mim.
- Antes de nos dizer o que o senhor presencia, que o levou ao ponto de nos chamar, poderia nos contar a história dessa casa – Enzo sugeriu.
Senhor Basílio aquiesceu se ajeitando na poltrona.
- Essa casa é antiga. Seus registros remontam da época da escravidão e das grandes plantações de café. Seu primeiro e mais importante dono foi Luciano Lacerda.
Torci o nariz para o nome. O senhor Basílio o falara com tanta pompa que eu julguei que devesse saber alguma coisa sobre ele, mas por mais que revirasse a memória não encontrava nada.
Enzo, Sávio e Giovani compartilhavam da minha dúvida.
- Claro, não posso esperar que vocês o conheçam, a algum tempo atrás nem eu o conhecia... Mas a história que ouvi faz jus a mais doentia das mentes... Luciano não era um barão do café convencional. Ele tinha um verdadeiro amor por essa propriedade e pelo que ela guardava. Um amor doentio.
Me remexi inquieta. Mesmo que a luz do Sol entrasse aquecendo todo o ambiente eu não pude deixar de sentir um arrepio correr minha espinha. A meu lado Enzo levou uma mão ao queixo e franziu os olhos visivelmente interessado.
- Não entendo porque o amor por sacas de café teria nos trazido até aqui – padre Sávio acabou por dizer também encarando o anfitrião com um olhar interessado.
- Ele não tinha amor pelo café senhores. Ele tinha amor pelas escravas.
Eu podia estar no meio da adolescência mas já entendia muito bem sobre amores doentios que pessoas doentias podem ter por coisas ou pessoas. E se a coisa era assim nos dias atuais tinha certeza de que a história que ouviria a seguir encheria minhas noites com pesadelos sombrios.
Mais uma vez eu estava certa.
- Talvez seja inteligente começar pelo começo. Luciano era filho de portugueses, uma família tradicional que sempre teve grandes terras e muito dinheiro. Sobre os pais de Luciano pouco se sabe, apenas que sua mãe morreu ao dar-lhe a luz e o pai faleceu vítima de pneumonia. Após a morte do pai, Luciano estava com pouco mais de vinte anos, era um jovem culto e, de certa forma, sedutor.
- Como pode afirmar isso? – Enzo perguntou intrigado.
- Bem, é a sensação que sua imagem me passa...
Quase molhei as calças até entender que o senhor Basílio se referia ao quadro sobre a lareira.
Culto e sedutor, sim, também era a impressão que o austero homem me passava. Sua tez era clara e lisa, com olhos azuis redondos e brilhantes que mesmo através da pintura eram penetrantes. Seus cabelos eram longos, sedosos e loiros, chegando na altura dos ombros, e deveriam atiçar os instintos de qualquer mulher. Os músculos eram proeminentes e mesmo por baixo das roupas era possível ver as curvas que eles geravam no corpo do rapaz. Claro que esses eram os detalhes gerais mas eu conseguia ver coisas adicionais... A forma como sua pele era estranhamente pálida e seus olhos afiados como os de uma águia. Havia um sorriso impresso em sua face e de alguma forma ele me incomodou tanto quanto a imagem de uma criança estripada.
Luciano era o tipo de homem que eu não gostaria de encontrar em meus pesadelos.
- Temos então um jovem culto, sedutor e rico. – O senhor Basílio prosseguiu – mas mesmo com as várias posses em vários estados ele nunca ficou mais do que alguns dias longe dessa casa.
- Imagino que as escravas eram as responsáveis? – Enzo arriscou já com um pequeno caderno em mãos, o que ele normalmente usava para fazer anotações e tentar colocar ordem nos casos.
- Exato. A história diz que após herdar os bens de seus pais, Luciano trancou todos os escravos homens e os deixou morrerem de inanição, tendo o cuidado de garantir que as escravas, quase sempre mães, filhas e esposas dos homens que definhavam, presenciassem a morte lenta e absoluta que os arrebatava.
Padre Sávio deu um longo assobiu que ardeu em meus ouvidos.
- Pobres almas... Espero que tenham encontrado paz no amor de Nosso Senhor.
- E o que acontece depois? – Enzo perguntou com uma das sobrancelhas arqueadas, ele é o tipo que demora a se interessar por alguma coisa mas quando se interessa é preciso algo um pouco maior do que o apocalipse para fazê-lo se desconcentrar.
- Depois... Ora, depois as escravas estavam em suas mãos. Assassinatos e orgias com crianças, jovens e idosas. Dizem que ele as acorrentava do lado de fora dessa casa como animais. Obrigava-as a caminharem como cadelas atrás dele. Satisfazer seus desejos. E quando ele se cansava de uma escrava ou percebia que ela não aguentaria muito mais ele tinha um ritual próprio para exterminá-las... Ele cortava seu próprio corpo e com a lâmina suja do próprio sangue talhava a garganta das mulheres...
- Uma forma doentia de sensação de poder – padre Sávio concluiu – Não é a primeira vez que almas imundas crêem que a mescla de sangue é uma forma de elevação. Este Luciano deveria pensar que com isso estaria subjulgando ainda mais as mulheres, uma morte de sangue, como alguns rituais apresentam.
- E para ele não fazia diferença... – Senhor Basílio completou –Sempre haviam novas escravas chegando, garantindo um estoque infinito para suas loucuras.
- Eu não entendo muito sobre preço de escravos mas acho que mesmo uma fortuna tão grande quanto a desse Luciano não demoraria a acabar se ele vivesse da forma como está dizendo. – A médium Giovana levantou a questão bem como os jeans pois ao menor movimento eles desciam o suficiente para se tornarem uma vestimenta obscena.
- Claro minha jovem, Luciano quase foi a falência, mas houve um evento que mudou tudo... Luciano se apaixonou por uma de suas escravas.
À exceção de nosso anfitrião todos nos endireitamos como uma unidade, com a certeza de que ouvimos alguma coisa errada.
- Apaixonou? Não consigo ver um homem com a descrição que o senhor deu se apaixonar realmente por alguém. – Enzo expôs meio devagar já que rabiscava com tanta velocidade o pequeno caderno que não seria de se espantar vê-lo entrar em combustão a qualquer momento.
- Bem, foi algo intenso o suficiente para ele diminuir as insanidades que fazia. Veja bem, diminuir, porque parar elas nunca pararam.
- Nos conte sobre essa escrava.
Senhor Basílio se remexeu desconfortável, era visível que a história o perturbava.
- Seu nome era Adla e sua beleza era ímpar. As histórias dizem que ela era xamã de uma pequena tribo ao sul da Namíbia, que foi devastada pelos piratas que a trouxeram para o Brasil. Enquanto estava coberta com o sangue dos aldeões que morreram para protegê-la, Adla lançou uma maldição sobre todos os que viessem a comprar qualquer um de sua tribo.
- Um ateu e uma xamã – o padre Sávio disse desdenhoso – formavam realmente um lindo casal...
- A maldição funcionou?
- Devo dizer que sim senhor Enzo. – Senhor Basílio continuou – Eu mesmo encontrei alguns documentos relatandos mortes repentinas e violência desmetida envolvendo alguns barões que compraram o lote da tribo de Adla. Vocês devem imaginar que tais eventos acabaram influenciando o preço dos escravos em questão e eles se tornaram, bem, uma pechincha.
- Era exatamente o que Luciano precisava...
As palavras de Enzo se perderam no ar e eu finalmente percebi o quanto estava encolhida sobre mim mesma, quase como se quisesse me enfiar na macia espuma do sofá e procurar os ratos. De fato isso não estava muito longe da verdade, era difícil para mim sentar e conversar agradevelmente sobre algum falecido pois conforme a conversa se desenvolvia eu começava a sentir onde o infeliz estava... Muitas vezes era uma impressão distante, como se a alma do coitado estivesse alguns quilômetros depois de Andrômeda, mas naquele lugar em específico... Digamos que eu podia sentir o ar ectoplásmico se movimentando a minha volta.
- Luciano se apaixonou perdidamente, a ponto de reaver o controle de suas finanças. E o único efeito foi torná-lo ainda mais dominador.
- Deve ter sido uma convivência conturbada... – Giovana arriscou.
- Sim, Luciano isolou Adla e pela primeira vez manteve os escravos vivos para que eles impedissem a jovem de fugir. Não que ele tenha terminado as sessões de perversões com as outras escravas, mas de tempos em tempos Luciano voltava para o colo de Adla. Arrisco a dizer que ela era o único elo de humanidade que ele tinha com o mundo...
- E como pode estar tão certo disso senhor Basílio? – Sávio questionou com uma sobrancelha levantada.
- Porque ela era a mãe de seu filho...
Enquanto todos se permitiram em um instante de estarrecimento eu segurei as vestes de Enzo com uma mão nervosa. Pai, mãe e filho, finalmente entendia as três presenças que me arrepiavam.
- Eeeeenzooooo... Os três estão escutando a gente...
Continua 10/08