Pedido do além

De mãos dadas com a sua jovem namorada Samuel chegava ao belo pomar de mangueiras, ou os “pés de manga” como todos chamavam no pequeno interior rural onde seus avós residiam. Na verdade já fazia seis anos que não pisava ali, tinha ficado muito ocupado com a universidade, concursos, trabalho, até sentir uma vontade incontrolável de visitar a casa dos avós e rever aquele lugar quase místico que tantas boas lembranças provocavam. O sol era muita forte às 15h00, mas abaixo do pomar os raios não penetravam, as árvores ficavam dispostas de forma a fazer uma grande sombra pairar sobre uma extensão considerável, deixando o ambiente extremamente gostoso para relaxar. Queria que Michele visse conhecesse o seu cantinho preferido no mundo, por isso a tinha trazido.

- Bem, então é aqui! Falou tanto desse lugar, mas ficou tanto tempo sem vir, é realmente muito bonito – disse a jovem.

“Ela me entende, essa é a mulher com quem devo me casar”, pensou ao dirigir-lhe um olhar. De cabelos longos e negros e pele morena e delicada, era tudo o que buscava em uma mulher. Ele tinha 1,80, cabelos negros e pele muito branca, achava perfeita aquela combinação.

- Sim – respondeu, é maravilhoso – foram plantadas pelo meu bisavô, são um patrimônio da família – concluiu.

Após atravessar a estreita trilha de um vasto capinzal e uma pequena grota seca, estavam embaixo das árvores. Ficaram parados ante os três primeiros cedros, o cheiro de manga era delicioso, havia vários tipos dessa fruta no pomar. Quando criança comia muitas recém tiradas das árvores que ele mesmo escalava como se fosse um trapezista. Puxou a namorada pelo braço para caminhar por toda extensão, queria ver e deixar que as memórias fluíssem livremente como um caudaloso rio ao tempo em que falava sobre elas.

A tarde estava muito agradável, se encontrava em um lugar maravilhoso com a pessoa que amava, tudo parecia perfeito, até dar mais um passo. Ao tocar o solo sentiu todos os músculos de seu corpo tremerem convulsivamente. O pé direito ficou grudado ao chão em um ponto que parecia ter cola. Não conseguiu removê-lo. Sentiu-se em choque, suando frio em grande quantidade. A respiração se tornou difícil, e os batimentos cardíacos ficaram descompassados, em um momento estava ótimo, agora a morte parecia se aproximar, assemelhava-se a uma crise de pânico. Nunca havia passado por uma.

Michele sentiu a mão do namorado apertando-se contra a sua, os músculos se contraiam. Notou os olhos de Samuel arregalados como se estivesse vendo algo de outro mundo.

- O que foi Samuel? - perguntou assustada - Você está se sentindo mal? – falou em um tom mais alto. O desespero aumentando dentro de si.

Após alguns segundos, as sensações horríveis que percorreram o corpo e a mente de Samuel cessaram, ele soltou a mão da namorada e caiu desacordado no chão.

- Samuel? Samuel? O que houve? Acorde! – gritou Michele balançando o corpo do namorado com as duas mãos.

Quando ia correr em direção à casa dos avós do namorado, ele acordou.

- O que aconteceu? Você está bem. Assustou-me muito! – falava com misto de agonia e alívio.

- Eu estou bem, foi apenas um mal estar subido – disse para a namorada enquanto tentava se sentar. Ela não acreditou.

- Vamos ao médico. Você precisa ser examinado! – concluiu preocupada.

- Não! – respondeu de subido Samuel – Prometa-me que não contará nada a ninguém!

-Mas Samuel, você passou muito mal...

- Prometa-me! – disse mais uma vez interrompendo Michele subitamente.

Por um minuto houve silêncio.

- Esta bem – disse Michele de cabeça baixa – deixando clara a sua discordância.

- Vamos sair daqui – disse o rapaz.

Ele caminhou vacilante com o baço sobre o ombro da namorada. Andavam vagarosamente, passando pela areia quente da grota seca, pela trilha do capinzal, até pararem em baixo de uma cajazeira, onde Samuel pode se recompor e descansar um pouco. Tinham de seguir ainda mais alguns metros até chegarem à grande casa dos avós, já por volta das 17h30.

Após tomarem banho, todos foram jantar, uns tios apareceram e a conversa se prolongou. A avó de Samuel, a senhora Ana não permitiu que os dois dormissem no mesmo quarto, conservadora que era determinou que Michele partilhasse um cômodo com Francisca, sua filha que costumava visitar lhe regularmente e providencialmente estava por lá. Mesmo com a visível frustração na face do casal, concordaram sem reclamações. Antes de ir dormir Samuel mais uma vez lembrou a namorada da promessa.

Ele deitou-se e dormiu, reviveu as imagens que percorreram a sua mente naquela inesquecível tarde. Viu a adolescente ser agarrada no meio da noite por um homem, inicialmente era um estranho. Após muito reagir foi levada à força para o grande pomar, “os pés de manga”, onde tentou violentá-la, mas ela resistiu tão bravamente que em meio à confusão, gritos, troca de socos, ponta pés ele se enfureceu e a estrangulou com um pedaço de corda, sem concretizar a infame intensão inicial.

Enterrou-a ali mesmo. Nunca, ninguém suspeitou que o seu tio Jeremias, um solteirão convicto, e já falecido, tinha sido capaz de um ato daqueles. Ele havia morrido há três anos de uma doença misteriosa que o vitimou lentamente, como se o sofrimento fosse uma necessidade para poder alcançar o sono eterno. A avó dizia que o Jeremias havia mudado muito antes mesmo de adoecer, tinha se fechado para si mesmo, no entanto, nunca havia apresentado uma explicação do porquê dessa mudança.

Quanto ao sumiço da jovem Andressa, ocorrido há exatos cinco anos, isso permaneceu uma incógnita, ninguém jamais soube o que havia acontecido, muitos pensaram que ela havia fugido, mesmo sem motivo aparente. Já acordado, deitado na cama, Samuel soube o que havia acontecido, a essência de Andressa fez contato com ele. “Por que comigo?”, se perguntou. Lembrou-se que quando era mais jovem levava sustos frequentes, via o que outros não viam, mas à medida que crescia esse dom foi sendo suprimido até desparecer. Nem lembrava mais desse detalhe obscuro de sua vida, do qual poucos conheciam. “Amanhã farei uma ligação anônima para a polícia e informarei sobre o corpo”, concluiu.

- Não, ajude-me hoje. Não aguento mais – ouviu como um sussurro soprado diretamente no seu ouvido direito.

Mais uma vez aquela corrente elétrica percorreu seu corpo, ergueu-se. Com a luz de uma lanterna foi até o quarto de ferramentas do avô, pegou uma pá e uma enxada. Fazendo o menor barulho possível, saiu pela porta dos fundos e desceu em direção ao baixão onde ficavam às mangueiras, ia desenterrar o corpo ele mesmo.

Interessante como à noite todo o ambiente amigável e belo do dia ganhava uma conotação aterradora. Sentia calafrios, como se alguém, ou alguma coisa o quisesse impedir. Olhava para os lados, jurava ver vultos em meios às matas, a espreitá-lo por trás das árvores mais distantes. Parecia avistar espectros ao longe, mas quando chegava nesse ponto nada havia. Ouvia sons inarticulados. Não hesitava. Chegou ao local marcado, onde havia feito contato durante a tarde, em baixo das árvores. Ergueu a enxada, antes de dar o primeiro golpe, ouviu uma voz familiar.

- Não faça isso – disse seu tio Jeremias em pé ao lado de Samuel.

Ainda com os braços erguidos, ele virou a cabeça para a direita, de onde tinha vindo a voz pesarosa. O aspecto era horrendo, o fantasma de Jeremias parecia um corpo em avançado estagio de decomposição.

- Mesmo depois de morto o senhor não se arrepende do que fez? Eu te admirei tanto.

- Já estou pagando pelo que fiz, eu a amava, não queria matá-la. Já estou pagando! Estou sofrendo muito! – bravejou o fantasma.

- Mas ela nunca teve paz – disse Samuel erguendo novamente a enxada e começando a cavar. O fantasma do tio sumiu.

Não precisou cavar muito para encontrar a ossada, com restos de roupas e uma corda enrolada ao redor do que antes era o pescoço.

- Agora você terá paz, Andressa, agora você terá paz – disse em um tom de voz quase inaudível, lágrimas queriam brotar de seus olhos, suprimi-as.

O dia já amanhecia quando terminou, não removeu o esqueleto, o deixou onde estava. Dirigiu-se a sua casa e viu a surpresa nos olhos de todos. Explicou o que tinha acontecido e ligou para a polícia, que junto com uma equipe técnica foi até o local. Disse aos policiais que encontrou o esqueleto por acidente, quando cavava buracos no solo onde enfiaria estacas para afixar redes de dormir. Os policiais engoliram a desculpa, mas abriram uma investigação para descobrir como a jovem morrera. “Jamais descobrirão”, pensou. Não havia como explicar o que aconteceu, o tio não deixou rastros.

Para a namorada disse a verdade. Inicialmente ela permaneceu incrédula, mas logo se convenceu e o abraçou. “Devo me casar com essa mulher”, pensou com um sorriso no rosto.

A ossada foi exumada e a família de Andressa comunicada. O exame de DNA atestou que se tratava dela. Samuel foi ao velório. Viu um misto de sofrimento e alívio no rosto dos pais de Andressa, sofrimento por perder a filha, e alívio por tê-la encontrado, mesmo que tarde demais. Ainda estavam angustiados, pois não sabiam como ela tinha morrido. “Ele já está pagando por isso”, lembrou-se do tio. O sepultamento ocorreu naquele mesmo dia, no cemitério local, próximo ao túmulo do assassino.

À noite, deitado na cama de seu quarto, sentiu a temperatura ambiente cair. À sua frente surgiu uma jovem que reconheceu de imediato. Não se assustou.

- Obrigada – disse o espírito de Andressa, aparentando paz.

- De nada – respondeu Samuel.

Andressa sumiu, e ele virou-se para o lado e dormiu a noite inteira.

FIM.

Aermo Wolf
Enviado por Aermo Wolf em 06/08/2012
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