Os inquilinos da senhora Morgue (Final)
O jovem músico permaneceu um longo tempo sentado na cama olhando para o saxofone, as mãos ainda tremiam. Normalmente aquilo não seria o suficiente para deixa-lo tão atormentado, mas naquela casa tudo era um convite à perturbação que sentia. Enfim resolveu descer para conversar um pouco com a viúva, talvez tentar retirar algumas informações dela.
As luzes da casa piscaram enquanto ele descia as escadas despertando uma vez mais o medo em seu coração. Gritou pela senhora e não obteve resposta, procurou na sala de estar, na de jantar e não a encontrou. Por último foi á cozinha, as vasilhas ainda estavam na pia e a porta do porão estava aberta. O instinto mandava-o voltar para o quarto, mas a curiosidade o fazia avança em direção à escura escada.
Desceu vagarosamente escutando o ranger de cada tábua da velha escada. Uma luz tênue brilhava no centro do porão mal dando conta de iluminar o vasto aposento. Viu no fundo um buraco na parede de alvenaria, os tijolos pareciam ter sido arrancados e estavam empilhados próximos à fenda. Lucas caminhou vacilante teve a impressão de ouvir uma leve respiração vinda da abertura na parede.
- O que está fazendo aqui embaixo meu querido.
A voz da senhora foi como um golpe certeiro no coração do jovem, ele se desequilibrou e teve de buscar amparo em uma coluna próxima.
- Senhora Morgue? – perguntou assustado – vi a porta aberta e vim procurar a senhora.
- Já disse para me chamar de Leonor. – disse ela sorrindo forçosamente. - vim averiguar os barulhos que você disse, vem do encanamento naquela parede. Mas não se preocupe o encanador volta na segunda para terminar o serviço.
- E o martelo, para que? – ele falou com a voz trêmula, ainda estava assustado, ao reparar a ferramenta na mão dela.
- Dei umas batidas nos canos para ver se reduzia o barulho querido. Está, tarde é melhor você voltar para seu quarto Eduardo. – ela disse isso pousando a mão no ombro dele e conduzindo-o em direção às escadas.
- É Lucas Leonor. – corrigiu intrigado.
- A sim Lucas, é claro, loucuras de uma velha gaga. – debochou soltando uma risada contida.
A cabeça de Lucas ficou uma confusão, ao mesmo tempo em que achava que algo estava errado naquela casa, balançava a cabeça afastando esses pensamentos considerando-os tolos demais. Enfim venceu a teoria de que ele estava se deixando levar pelo clima fúnebre daquele ambiente totalmente novo para ele. Contudo antes de se deitar trancou a porta e a escorou com uma cômoda, questionou-se algumas vezes sobre o ato que considerou ridículo, mas nesse caso venceu a precaução.
Quando sono começava a tomar conta ouviu uma voz masculina vinda do corredor “boa noite mãe, vou me deitar agora”, logo depois veio o ranger da porta se abrindo. “Não pode ser”, pensou, “a porta está barrada”, não teve coragem para olhar, os sustos que tomara até agora não era comparado ao horror que tomou conta dele, se cobriu com o cobertor e fechou os olhos. Mas seu santuário foi rompido quando sentiu o colchão se abaixando, como se alguém estivesse deitando do outro lado da cama. Imediatamente esticou a mão e acendeu o abajur, não havia mais ninguém na cama, respirou aliviado, certamente era um sonho. Mas a luz do abajur continuou acesa, e seus olhos não se fecharam, e estavam lacrimejando. O sono não veio, e nunca viria dado o estado de nervo que ele se encontrava.
Levantou-se, a noite parecia não ter fim, removeu o móvel da porta e saiu, ao colocar os pés fora do quarto ouviu a porta do aposento vizinho ao seu se fechando.
- Senhora Morgue? – indagou desconfiado.
Não houve resposta. Cautelosamente ele se aproximou da porta, que não havia se trancado completamente, olhou pela fresta e nada viu. Empurrou a porta um pouco e no fundo viu um homem ruivo e barbudo sentado na cama engraxando um sapato. O homem o encarou com um olhar furioso e sua voz soou como em um sonho, ao mesmo tempo em que se levantava e ia em direção à porta, “quem é você?”. O músico se afastou assustado, esbarrando em alguém atrás dele que lhe falou ao ouvido no mesmo tom onírico que o ocupante do quarto “por que você está dormindo no meu quarto?”.
Lucas correu em direção à escada e ao olhar para trás não havia ninguém no corredor e a porta do quarto vizinho ao seu estava trancada. Pensou em chamar pela senhoria, mas deteve-se ao ouvi-la conversando com alguém. Desceu as escadas silenciosamente, e, já nos pés da escada, pôde vê-la sentada em uma poltrona de longo encosto, outra poltrona idêntica estava voltada para ela, de costas para Lucas. Ele sentou-se no primeiro degrau, aguçando os ouvidos para escutar a conversa.
- O buraco deve ser fechado logo, eles já começam a voltar. Ainda são apenas ecos, mas logo vão se dar conta do que a senhora fez. – Disse uma voz rouca e masculina.
- Mas o garoto pode ficar? – suplicou a senhora Morgue – ele se parece tanto com Eduardo, meu amado tinha a idade dele quando morreu.
- Ele se parece com Eduardo, toca como ele, mas não é ele senhora. O garoto deve estar junto com os outros. – enfatizou a voz masculina.
- Mas ele é tão amável. – insistiu ela.
- No inicio todos são senhora Leonor Morgue, mas no fim só vão querer uma coisa da senhora. Lembre-se de Leonardo, Lorenzo – a voz fez uma breve pausa antes de prosseguir – e Laura, lembra que doce de menina, mas foi pior que todos os outros. Lucas tem de ir, use o chá, assim como fez com Leonardo.
- Sim. – concordou ela com pesar.
Lucas levantou-se assustado ao ouvir isso, tentou se dirigir em silêncio para a saída, mas foi percebido. Horrorizado ele olhou para a poltrona, que agora estava de perfil para ele, sentado nela estava uma figura estranha, tinha a forma de um homem, mas era apenas um vulto translucido.
- O que é isso! – exclamou o jovem correndo para a porta.
- Ele já consegue me ver, faça! – disse a figura misteriosa.
Assustado Lucas tentou abrir a porta, constatando que estava trancada. A senhora Morgue apanhou o martelo no canto do sofá e avançou em sua direção.
- A senhora é louca! – gritou o apavorado jovem tentando derrubar a pesada porta sem sucesso.
- Não resista meu jovem, não há mais nada para você lá fora. – ela falou em um tom sereno.
- É isso que a senhora fez com todas as outras pessoas cujos espectros rondam sua casa? – a voz de Lucas tomou um tom desesperado – Vai me emparedar no porão também?
- A verdade é bem pior meu jovem – disse a figura sentada na poltrona – você nem devia ter saído de lá.
A revelação causou um choque terrível em Lucas, buscou em suas memórias e constatou alarmado que não se lembrava de nada antes de se prostrar diante do casarão.
- Não estou entendendo, eu vim estudar no conservatório, sou um músico, mas não consigo me lembrar de nada além disto. Quem eu sou!? – exclamou em estado de choque.
- Apenas as reminiscências de algo que nunca existiu. – disse o insólito ocupante da poltrona, desaparecendo lentamente diante dos olhos do jovem músico.
- A culpa é minha – disse a viúva – deveria ter sido no jantar, mas posterguei, queria mantê-lo um pouco mais por perto.
A velha já estava bem próxima com o martelo erguido, Lucas avançou sobre ela para tomar-lhe a ferramenta, mas foi facilmente subjugado pela frágil senhora, e lançado ao chão. O jovem não conseguia entender a força que ela demonstrava, o que serviu para aumentar ainda mais seu medo. Aos tropeços se levantou e fugiu, seus passos vacilantes o conduziram para o porão. Temeu descer as escadas, mas os paços da velha atrás dele o fizeram prosseguir rapidamente. Sem rumo dentro do vasto e vazio porão ele só viu uma saída, o buraco na parede, talvez pudesse se ocultar lá.
Cambaleou até a abertura na parede e quando se preparava para entrar, sentiu as mãos de Leonar lhe puxarem, foi arremessado longe. Olhando-o caído no chão a velha fez sinal para que ele se acalmasse, Lucas tateou na escuridão a procura de algo e antes que a velha pudesse fazer um movimento, a figura cadavérica de uma garota, saída da abertura na parede, a segurou pelos cabelos.
- Laura! – exclamou a velha – você não morre seu demônio!
A viúva se vira acertando a cabeça do jovem cadáver com o martelo, fazendo-o tombar, neste exato momento as mãos desesperadas de Lucas encontram uma picareta no chão. Ele se levanta rapidamente antes que Leonor possa se recompor e a acerta em cheio com a picareta. O corpo da velha cai no chão e ele continua batendo freneticamente até que a cabeça da vítima se converta em uma massa no chão. Ainda em choque ele lança o corpo dentro do buraco constatando horrorizado que havia vários outros dentro.
- Senhora Morgue? Senhora Morgue?
A velha desperta alarmada na poltrona da sala, percorre os olhos em volta, é a sala da casa, mas bem mais alegre e vívida do que se lembrava. Seus olhos param fixados em um distinto homem, calvo e de barbas negras, sentado à sua frente em outra poltrona. Ele se inclina sobre ela com um olhar curioso e franzindo a testa:
- Senhora Morgue?
Ela não responde, continua olhando-o assustada. O homem olha para a enfermeira de pé ao lado da poltrona da viúva:
- Pode leva-la para o quarto.
Amparada pela enfermeira Leonor Morgue caminha debilmente para as escadas, sob o olhar atento do distinto e curioso homem.
- Porque está pensativo doutor? – pergunta o mordomo que se encontrava logo atrás do homem.
- O olhar dela, estava diferente. – respondeu o doutor.
- Diferente? O senhor acha que não é ela?
- Sinceramente meu caro Pedro, há muito tempo não sei qual personalidade habita aquele corpo. Elas estão cada vez mais complexas, veja que ela assumiu a personalidades idênticas à do filho e do finado marido, e estão desenvolvendo memória própria. Nunca vi um caso tão grave e fascinante de transtorno de múltiplas personalidades. Melhor eu descansar também, amanhã teremos de “fechar aquele buraco no porão” e me certificar para que ninguém mais saia de lá.