Segunda chance
“Continue Gabriel, continue...”.
A doce e tranquila voz vinda sabe-se lá de onde o impelia a seguir em frente, sentia sob os pés descalços um chão firme, caminhava ao mesmo tempo em que crescia dentro de si uma grande dúvida se deveria mesmo seguir naquela direção. Nada via, não era possível enxergar no escuro total. Os olhos estavam abertos, virava o rosto em várias direções tentando ver algo, mas continuava em frente, com passos vacilantes. Finalmente parou. Sabia que havia algo errado, aquilo estava real demais para ser um pesadelo, como imaginou inicialmente. Depois de um breve período parado, em pé, finalmente o breu da escuridão começou a se dissipar até ficar semelhante ao crepúsculo, estágio em que o sol dá lugar à lua.
O terror o corroeu com a visão desoladora do ambiente. Pisava sob um chão de terra batida, como se houvesse chovido há algum tempo, à sua frente, a algumas dezenas de metros uma grande e espaçosa rachadura se abria no chão. Não foi preciso pensar muito para saber que cairia ali se continuasse a caminhar, o mais aterrador foi avistar em pontos isolados pessoas andando de forma vacilante até desaparecerem no escuro da grande fenda. Todos vestiam a mesma roupa que ele se percebeu usando, calça e camisa sem botões de linho cinza claro. A roupa assentava bem em seu corpo magro. Jordan jamais se achava bem vestido e estava sempre triste e insatisfeito, dessa vez, contudo, não ligou para isso, a confusão em sua mente era grande demais para se preocupar com trivialidades.
Viu ao longe uma mulher com longos cabelos loiros, caminhar chegando perigosamente à borda do abismo, quando ia gritar foi interrompido por uma imponente voz:
- Finalmente alguém que tem dúvidas – disse o alto homem de cabelos grisalhos trajando um terno negro sobreposto a uma camisa branca?
- Quem é você? – perguntou Jordan notando que ele se trajava de forma diferente e tinha um aspecto de lucidez e inteligência.
- Meu nome não é importante, mas a minha função sim. Tenho a responsabilidade de conversar com as pessoas que param no meio desse trajeto, e você parou. Não vejo isso há bastante tempo.
- E onde estou? – perguntou Jordan.
- Onde você acha? – retrucou o estranho.
- Só sei que a noite estava no meu quarto.
- Fazia algo em especial?
- Eu não me lembro bem, acho que chorava, me sentia depressivo....
- Você é um rapaz de apenas 20 anos, e já possui motivos para chorar e ter depressão? – ironizou.
- Eu sou apenas um ser humano! – retrucou Jordan.
- E parece que não dos mais inteligentes – disse o estranho.
Houve silêncio.
- Não consegue mesmo se lembrar? – perguntou novamente.
- Não.
- Bem, deixe-me dizer onde está. Esta no limiar da vida, nesse estágio a mente ainda guarda um pouco da consciência humana, mantendo uma pequena ligação com o mundo dos vivos.
- Estou morto? – perguntou Jordan com o terror aumentando dentro de si.
- Muito próximo disso. Seu coração ainda não parou de bater no seu corpo que permanece lá na terra. Nesse estágio as pessoas ainda tem consciência, mas esta se encontra quase totalmente desligada, é muito raro que alguém a recobre neste lugar como aconteceu com você – explicou o desconhecido.
- E como eu morri? – perguntou Jordan.
- Cabe a você se lembrar.
Como um choque toda a vida de Jordan passou de ante dos seus olhos, as perseguições dos colegas de classe, as frustrações amorosas, a doença crônica que não iria matá-lo, mas o obrigaria a ter algumas limitações ao longo da vida, a ausência de amigos, e então, em meio à solidão achou que aquilo justificasse um derradeiro gesto de desgosto, tentou morrer pela própria mão. Não tinha visto os acontecimentos seguintes, o desespero estampado no rosto da sua mãe que o encontrara desacordado no quarto e chamado rapidamente a ambulância que o conduzira para o hospital, onde agora estava, na UTI, perto do fim de sua jovem jornada terrestre.
- Agora eu lembro, e lembro o que eu fiz – abaixou a cabeça – Foi preciso! – concluiu resolutamente – Não valia mais a pena continuar vivendo.
- Ótimo, então por que parou de andar? Continue e vá até o abismo – disse o estranho.
- Aonde aquilo vai me levar? Ao inferno? – perguntou.
- Vá até lá e descubra já que aparenta tanta certeza da retidão de sua atitude.
Jordan nunca foi religioso, no entanto lembrava o que o senso comum dizia sobre pessoas que tentam tirar a própria vida.
- Há outro caminho para mim? – perguntou novamente.
- Não – disse o homem – mas deixe-me mostrar isso – ergueu o braço esquerdo espalmando a mão e fazendo um arco em sentido anti-horário, e uma grande imagem se projetou atrás de onde os dois estavam.
Jordan se virou e pode ver a sua mãe, pai e irmã chorando à beira do leito onde jazia desacordo respirando com a ajuda de aparelhos. Jamais tinha visto o pai chorar, e este não parava de enxugar os olhos do severo rosto com um lenço de bolso. Em um momento percebeu que sua existência era importante para algumas pessoas, poucas, mas especiais, e o quanto as faria sofrer, como tinha sido mesquinho. Sentiu-se mal.
Mais uma vez o homem fez um arco com a mão esquerda, e dessa vez em sentido contrário ao anterior, e ele viu muitas imagens de pessoas que conhecia do dia a dia, algumas de quem ele tinha gostado. Percebeu que estavam levando um dia normal, como se nada tivesse acontecido. Viu que para aquelas pessoas pouco importava o que lhe acontecia. “Essas pessoas me causaram frustração? Foi por causa disso que fiz o que fiz?”, se perguntou.
- Você está me ajudando a decidir? – perguntou ao homem.
- Não, eu não ajudo ninguém, para mim não faz a mínima diferença sobre o que você escolher, tenho a obrigação de conversar com as raras pessoas que recobram a consciência e se questionam onde estão.
As imagens sumiram. Jordan continuou imóvel, olhou no rosto do seu interlocutor, e este parecia não ter expressão. Ao seu lado mais pessoas passavam e continuavam até a grande fenda, onde caiam. Realmente não havia outro caminho.
- Vamos, decida. Não pode passar a eternidade aqui, nem eu. O fluxo de energia tem de seguir. O que escolherá? – inquiriu o estranho.
Os olhos de Jordan se abriram no hospital e viu os seus familiares ao redor da cama.
-Mãe, pai...perdão – sussurrou em meio às lágrimas e a alegria incontida daqueles que o tinham visto regressar da terra dos mortos.
Ao ver Jordan lhe dar as costas e voltar para o mundo dos vivos, o homem sem nome ficou a observá-lo caminhando na direção oposta. Ficou indiferente a decisão do jovem de continuar vivendo.
- Bem, me surpreendeu – disse para si mesmo – e espero que aproveite essa segunda chance, esse segundo nascimento, pois da próxima vez não haverá tempo para arrependimentos – virou-se e caminhou até sumir no breu total.
FIM.
Agradecimentos especiais ao meu caro amigo Danilo Gonçalves.