Os inquilinos da senhora Morgue (Parte 1)
O jovem, negro e esguio, permaneceu durante algum tempo parado diante do casarão, era uma estrutura velha, em estilo francês, com dois andares. O tempo não havia sido generoso com ela, mas se via claramente em sua arquitetura o requinte de outrora. Em uma mão o jovem segurava uma grande mala de couro e na outra a bolsa onde carregava seu saxofone. Era um jovem músico que vinha estudar no conservatório da cidade e resolveu alugar um quarto no infame lar da viúva Morgue.
Caminhou com certa lentidão, abriu o pequeno portão verde de ferro, cruzou o belo e florido jardim e bateu na porta, emitindo um som forte que apenas as velhas e reforçadas portas podem produzir. Em pouco tempo a porta se abriu, uma velha senhora abriu a porta, trajava um vestido negro e usava os brancos cabelos em coque.
- Você deve ser Lucas, estou certa? – indagou ela com um sorriso simpático.
- Sim senhora Morgue, muito prazer. – respondeu o Lucas ainda tímido.
- Pode me chamar de Leonor meu jovem. – disse ela se afastando e cedendo espaço na porta – entre, por favor.
O músico entrou na casa e se deparou com uma grande sala ricamente decorada, com mobílias em estilo rococó e pesadas cortinas. Era um ambiente melancólico, causou certo desconforte em Lucas, porém era um lugar silencioso e bem próximo do conservatório.
- O que achou meu querido? – perguntou a velha interrompendo os pensamentos que ele começava a formar sobre o lugar.
- Ambiente encantador senhora... digo, Leonor. E a vizinhança é bem silenciosa, será um prazer ser seu inquilino.
- Que bom! – comemorou a viúva com as mãos unidas. Apanhando a pesada mala das mãos de Lucas sem muita dificuldade – venha vou lhe mostrar o quarto.
O jovem a seguiu escada a cima surpreso pela força da frágil dama. As escadas terminavam em um corredor longo com portas de ambos os lados.
- O banheiro fica na primeira porta. – ela avisou abrindo a porta para mostrar e fechando logo em seguida.
Lucas assentiu com a cabeça e continuou seguindo-a. Chegaram à última porta do corredor, ela colocou a mala no chão e retirou do bolso um molho de chaves.
- Esse é seu quarto meu jovem – disse retirando a chave do molho e entregando ao novo inquilino.
Lucas pegou a chave e entrou timidamente no quarto, o aposento estava em perfeita harmonia com o restante da casa, triste e desconfortavelmente carregado. Sua expressão não era capaz de esconder certo desagrado, enquanto ele avaliava cada canto do amplo aposento.
- Era o quarto do meu filho Leonardo. – revelou a velha senhoria quebrando o gelo do silêncio que começava a se tornar constrangedor, e prosseguiu – se quiser podemos trocar a decoração.
- Não senhora... Leonor. Está ótimo assim – percebeu envergonhado que tinha deixado escapar seus pensamentos.
A viúva apenas sorriu e deixou o quarto dizendo que iria preparar o jantar. Se acostumando com o ambiente o jovem desfez as malas, guardando cada peça em seu lugar e foi tomar um banho. Ao sair ouviu a voz da viúva, parecia estar conversando com alguém, ficou intrigado, pois não tinha visto mais ninguém na casa, certamente, pensou ele, era outro inquilino. Voltou para o quarto e se trocou, logo apanhou o saxofone e começou a tocar. Enquanto tocava o jovem parecia sair do mundo e voltar, as horas passavam sem que ele percebesse, por fim se assustou com a senhoria parada na porta ouvindo sorridente sua música.
- Desculpe Leonor, me esqueci de fechar a porta, incomodei. – disse enquanto se recompunha do susto.
- Não, desculpe-me assusta-lo, vim avisar que o jantar está pronto e me distrai com você tocando belamente essa canção. Venha antes que esfrie.
Lucas guardou o instrumento vestiu um agasalho e desceu, chegou na sala de jantar e encontrou a viúva senta na cabeceira da grande mesa, seu prato estava arrumado ao lado direto dela.
- Somos só nós dois? – indagou ele se ajeitando na cadeira. – parece que ouvi a senhora conversando com alguém enquanto saía do banho.
- Somos apenas nós. – disse ela com a colher próximo a boca.- sou uma velha solitária, as vezes converso sozinha – tomou a sopa e sorriu.
- Pensei que havia mais inquilinos. Uma casa grande como essa. – disse Lucas retribuindo o sorriso, e reparando o tamanho da sala de jantar.
- Já tive muitos inquilinos, mas nenhum fica por muito tempo. Agora tome sua sopa antes que esfrie. – disse Leonor encerrando a conversa secamente.
O jantar prosseguiu sob um silencio sepulcral, após o tom seco da velha senhoria não havia mais ânimos para conversas. Ao terminarem Lucas se levantou e começou a recolher a mesa.
- Não, não, deixa que eu faço isso! – exclamou a velha tentando retirar os pratos das mãos dele.
- Pode deixar que eu lavo tudo senhora... digo, Leonor. – disse ele escapando das investidas da senhora. – não estou vendo nenhuma empregada nesta casa, então não vejo porque não ajuda-la nas tarefas domésticas.
Ela sorriu balançando a cabeça e a simpatia voltou ao enrugado rosto. Leonor se levantou com as mãos unidas no peito e ainda sorrindo colocou a mão no ombro dele.
- Que gentil! Nenhum dos outros foi tão simpático e bondoso como você meu querido, muito obrigada.
Enquanto lavava as vasilhas Lucas ouviu gemidos vindos de uma porta no fundo da cozinha. Inicialmente pareciam lamentos e enquanto ele se aproximava da porta, para ouvir melhor, escutou uma voz feminina dizendo “socorro”. Assustou-se e tentou abrir a porta, mas estava trancada. O susto veio novamente quando ouviu a voz da senhoria logo atrás dele:
- O que houve?
- Parece que... – tomou fôlego para se recompor do susto – ouvi alguém atrás desta porta, pedia socorro.
A velha se aproximou, encostou o ouvido na porta, depois se afastou sorrindo.
- Não se preocupe, devem ser as crianças. – ela falou indo em direção à pia onde restavam algumas vasilhas.
- Crianças? - indagou ele chegando o ouvido perto da porta.
- Sim. – a senhora respondeu sem olhar para ele - os porões desse bairro são profundos e amplos, as paredes acabam se encontrando com os porões de outras casas. Devem ser as filhas do vizinho. Você com certeza deve ter mais coisas para ajeitar em seu quarto, vá eu cuido de tudo aqui.
Lucas ainda estava anestesiado pelo susto e não questionou a viúva, dirigiu-se em silencio para o quarto. Enquanto subia as escadas ouviu ela gritando:
- Caso resolva tocar o saxofone, por favor, deixe a porta aberta para eu escutar.
Mas ele não tocou seu amado instrumento naquela noite e estava perturbado demais para dormir. A voz não saia de sua cabeça, e a explicação da senhora Morgue não o havia convencido.