Amigo Imaginário (outro caso)

Prezada professora Carla,

Só agora tenho forças para responder seus insistentes bilhetes questionando minha forma de criar minha filha. Sei que a senhora tem uma filha da idade da minha e tenho a certeza de que faria de tudo para protegê-la de qualquer mal. Toda mãe e capaz de fazer isso, mesmo que tenha de ser enérgica com sua criança. Através dessa carta pretendo explicar-lhe o motivo de ter proibido minha filha brincar e, ao contrário do que a senhora pensa, eu não temia que as outras crianças a machucassem. Eu não permitia que minha querida Sofia brincasse nem em casa sozinha.

Quando eu era criança recebi de presente uma bela boneca de pano com a cabeça de louça. Uma vizinha minha, que não conseguia engravidar, fez essa boneca para suprir a falta de um filho. Tempos depois ela engravidou e teria um menino, então me deu a boneca, chamava-se Derby. Era meu brinquedo favorito, era mais do que um brinquedo, Derby era minha melhor amiga, nunca me separava dela. Certa noite acordei com o grito estridente de minha mãe, quando a fitei ela estava com um olhar assustado, perguntei o que era e mamãe não respondeu. Correu até minha cama pegou a boneca que estava sobre meu peito e saiu do quarto. Eu a segui chorando até o quintal, ela jogou Derby dentro da lata de lixo e ateou fogo em tudo que estava dentro, depois me arrastou para dentro de casa.

Após o fogo se apagar revirei todo a lixo a procura de Derby, a encontrei toda chamuscada, parte da tinta do rosto de louça havia saído, seu corpo tinha marcas de queimadura por toda parte, o cabelo tinha se convertido em uma massa de material sintético derretido. Mesmo assim eu a recolhi prometendo que iria cuidar dela e a escondi no porão. Costurei um novo vestido para ela, pintei a parte sem tinta de seu rosto com corretivo, mas com o tempo acabei me esquecendo dela. Nunca mais ganhei uma boneca, e as que eu tinha foram doadas.

Quando minha filha nasceu, presenteei-lhe com todos os brinquedos que eu não podia ter, mas após o falecimento de meu marido Sofia ficou muito triste, se tornou uma criança solitária, pois o pai sempre brincava com ela. Para suprir a falta do pai ela acabou criando um amigo imaginário, seu nome era Victor. Não vi problemas nisso, já que é considerado normal pelos psicólogos. Mas minha doce Sofia sempre vinha em minha direção chorando por causa do amigo, aí comecei a me preocupar.

Uma noite escutei minha filha reclamando no quarto, fui lá ver e ela estava chateada com os olhos lacrimejando, estavam brincando de esconder e Victor não queria aparecer. Resolvi brincar com ela, comecei a contar e Sofia correu para se esconder. Arrepio-me só de lembrar daquela noite. Quando fui procura-la as luzes estavam apagadas, caminhei até a sala e vi o vulto de Sofia atrás das cortinas, silenciosamente fui em direção ao evidente esconderijo de minha filha. Mas parei atônita quando meus olhos se desviaram da cortina e fitaram Sofia escondida atrás da poltrona. Meu corpo gelou e meu coração disparou, quando voltei a olhar para cortina o vulto não estava mais lá.

Conferi todas as portas e janelas, estavam trancadas, perguntei a Sofia se tinha visto mais alguém dentro da casa e ela me respondeu que era o Victor, ele havia resolvido brincar também. Proibi Sofia de brincar com o amigo imaginário dela naquele mesmo instante, apesar de ainda ter dúvidas do que eu tinha visto naquela noite, fiquei imensamente perturbada pelo ocorrido. Ela não gostou da proibição e me respondeu com rispidez que não abandonaria o amigo dela como eu havia abandonado minha amiga. Na hora fiquei tão chocada com o desrespeito de minha filha que nem imaginei sobre o que ela falava, gritei mais alto e mandei-a para o quarto.

Meu terror só estava começando, mais tarde, arrependida de ter gritado com Sofia, fui ao quarto dela para conversar, porém a porta estava trancada. Bati na porta chamando-a e não houve resposta, bati com mais força e gritei por ela e, lá de dentro, ouvi-a gritar “vá embora”, a voz dela estava alterada, possivelmente devido ao choro. Falei em tom autoritário “abra essa porta agora Sofia”, o terror voltou a me dominar quando ouvi a voz de um garoto dizer “ela já disse para você ir embora”. Desesperei-me e comecei a chamar pelo nome dela “Sofia, Sofia! Quem está aí com você, abra essa porta Sofia”, novamente a voz alterada de minha filha veio me atormentar “pare de me chamar de Sofia, meu nome é Derby”.

O pavor que senti ao ouvir aquilo foi extremo, o medo mandou-me recuar daquele quarto, mas a segurança de minha criança estava em jogo. Coloquei a porta abaixo e me deparei com Sofia dormindo em sua cama serenamente, todo aquele barulho não foi capaz de acorda-la, apanhei-a nos braços e a levei para meu quarto. Passei a noite acordada, nunca havia contado a ninguém sobre Derby, não por ser segredo, mas porque eu nem me lembrava mais dela. Pela manhã liguei para minha mãe perguntando se ela havia dito a Sofia alguma coisa sobre Derby e, para minha surpresa, ela se lembrava menos da boneca do que eu. Tentei lhe refrescar a memória falando sobre o fato de ela ter queimado Derby, mas mesmo assim nada veio a sua fraca memória.

Quando Sofia acordou resolvi perguntar-lhe quem era Derby, a resposta foi seca e perturbadora “ela é a mãe do Victor”, segurei ela firme pelos braços “Sofia, quem te falou sobre Derby, diga, foi sua avó?”, a pobre gemeu, meu nervosismo era tanto que não calculei a força com que lhe segurei “ela veio com o Victor mamãe, disse que era sua amiga”. Afastei-me, não sabia o que fazer, andei pela cozinha procurando em minhas memórias quem mais poderia saber de Derby além de minha mãe, não havia ninguém. “Ela é boazinha, mas é muito feia, cheia de queimaduras e careca, parece uma mendiga”.

Sentei-me em uma cadeira e fiquei olhando para minha filha, cada palavra dela parecia um soco no estomago, e minava ainda mais minha abalada sanidade. Sentia-me em um daqueles episódios de além da imaginação, com certeza eu havia cruzado os limites da realidade e, apesar do esforço, não consegui até hoje encontrar alguma explicação racional para o que ocorreu comigo. “Quando você viu a Derby minha filha”, minha pobre menina estava amedrontada, meu desespero a havia assustado bastante. “Ontem a noite”, disse ela entre dentes, “ela me colocou para dormir depois que fui para o quarto, disse que eu poderia ir morar com ela”.

As últimas palavras de Sofia foram a gota d’água para me desequilibrar completamente, quase cai da cadeira. Decidi que não tiraria os olhos dela nem por um minuto, cada cômodo que eu ia para cuidar da casa a levava comigo, dei algumas tarefas para ela. Quando fui preparar o jantar busquei uns brinquedos no quarto e mandei-a ficar em um canto da cozinha, longe do fogão. Enquanto preparava a comida comecei a ouvir cochichos e risadas baixas que logo se tornaram gargalhadas, “o que houve minha filha?”, perguntei preocupada, “é o Victor mamãe, já falei que não posso mais brincar com ele...”, larguei o que estava fazendo, apanhei Sofia no colo e gritei nervosa “vá embora Victor, ninguém aqui quer você por perto!”.

O que se seguiu ao meu surto atormenta meus ouvidos até hoje, um grito estridente de criança ecoou pela casa, logo em seguida a porta da cozinha bateu com força, depois a porta da sala e por último o portão. Apertei Sofia em meus braços, fazendo-a gemer novamente, “Victor ficou nervoso mamãe, ele só veio avisar que Derby esta te esperando na Sala”, um frio percorreu minha espinha, meus pensamentos estavam embaralhados, mas por instinto apanhei minha bolsa e uma faca e fui em direção à sala, única saída da casa. Não da para descrever em palavras o horror que se abateu sobre mim, a bolsa e a faca foram ao chão, e quase que Sofia cai também, sobre o sofá estava Derby, não sei como pude brincar com uma boneca tão asquerosa, o tempo havia gasto bastante suas cores, o corretivo havia soltado e apenas um olho me encarava daquela cabeça de louça trincada.

Não sei que força no universo poderia dar vida a seres que só deveriam existir em nossas mentes, mas ali estava ela, saída do túmulo do esquecimento para me atormentar. Seu ventre de pano havia gestado alguma criança profana, invisível a meus olhos, que rondava minha filha a procura de companhia ou vingança pelo abandono. Deixei aquela casa, e nunca mais voltei, mudei-me para um apartamento em outra cidade. Daquele dia em diante Sofia não se afastou de mim por um segundo, levava-a para o serviço, ela dormia comigo. Com essa vida corrida Sofia não tinha tempo para brincar, com pena dela comprei alguns brinquedos novos e foi quando descobri que Victor só vinha até ela quando ela brincava. Não importava onde estivéssemos, se por um segundo ela se divertisse com alguma brincadeira ele aparecia, e com ele certamente Derby também viria. Foi aí que tomei a decisão de não deixa-la mais brincar, foi duro ver minha jovem criança privada de sua infância, mas para nos proteger não pensei duas vezes em fazer esse sacrifício.

Quando chegou a época de Sofia ir para a escola, eu a recomendei sobre brincadeiras, e cheguei a ameaça-la, pois ela não compreendia que Victor era uma ameaça. Então comecei a receber seus bilhetes, pedi a Sofia para dizer à senhora que não se intrometesse. Na reunião de pais tornei a insistir para que a senhora ficasse fora de nossas vidas, nenhuma das professoras anteriores se sentiu tão incomodada com o fato de eu proibir minha filha de brincar. Sei que a senhora me denunciou para o conselho tutelar e após muita investigação minha querida criança foi tirada de mim, alegaram que eu era uma mulher desequilibrada.

Na última vez que fui visita-la a vi brincando com outras crianças do abrigo, tentei impedi-la, tentei retira-la de lá, mas fui presa e depois proibida de ver minha criança. Há três meses Sofia desapareceu do orfanato, um mês depois acharam o corpo dela no porão da casa de meus pais. Sobre ela estava a tenebrosa boneca e a foto do filho falecido da vizinha que me dera Derby, o nome do garoto era Victor. Todas as suspeitas recaíram sobre mim, tentei contar minha versão, mas isso só serviu para me condenar a uma vida no hospício. Agora amargo meus dias sendo tratada como louca e amaldiçoando o dia em que a senhora me denunciou para o conselho tutelar. Juntamente com essa carta envio também Derby, mesmo após levar minha filha esse ser horrível continua me atormentando, espero que ao presentear a senhora ela me deixe finalmente em paz com minha dor.

Cordialmente

Ana Nunes

Getúlio Costa
Enviado por Getúlio Costa em 29/07/2012
Reeditado em 31/07/2012
Código do texto: T3802491
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.