LENDA URBANA
(Lenda Urbana)
Adail era um sujeito reconhecidamente perverso. Desde criança ele apresentava essa característica. O termo bullying ainda não existia mas ele já praticava esse comportamento com muita eficiência. Se fosse hoje ele seria o rei nesse negócio de humilhar colegas na escola, desclassificar os companheiros no trabalho, rebaixá-las nos grupos, acabando com a auto-estima delas. Bullying é um negócio que existe desde que o mundo é mundo e algumas pessoas descobriram que umas pessoas são mais frágeis que outras. A mesma motivação que hoje informa o bullying no passado fez nascer a escravidão e é responsável por todos os abusos que os mais fracos têm que suportar dos mais fortes. O desejo de mostrar superioridade, de sobrepor-se aos outros, de servir-se do próximo para massagear o próprio ego é algo que está no “programa” que informa a personalidade humana e só a custo de muita civilidade consegue ser mitigado.
Quanto ao Adail, os meninos menos espertos e pouco valentes sofriam horrores nas mãos dele e dos garotos que ele liderava. Era uma turminha do capeta. Desde os primeiros anos de escola ele já se posicionara como o líder dos malvados. Quem mais sofria com as maldades dele eram os chamados garotos “engomadinhos”, “os filhinhos de papai”, os “quatro olhos”, meninos limpinhos que usavam óculos e roupas bonitas. Geralmente eram garotos bem educados, que não conheciam os truques sujos que o Adail e seus amigos aprendiam na rua.
Um deles era o chamado “Pau de Bosta”. Essa brincadeira nojenta consistia em simular uma briga, na qual um dos lu-tadores se recusava a brigar porque o outro tinha um pedaço de pau na mão. Então um dos brigões dizia para ele largar o peda-ço de pau e brigar de mãos limpas, se ele “fosse homem”. Em volta dos dois brigões sempre se ajuntava um bando de “torcedores”, que ficava estimulando a briga. Então o brigão “arma-do” escolhia um dos garotos “limpinhos” e pedia para ele segu-rar o pedaço de pau para ele. E quando o bobão pegava o bas-tão, o sacana o puxava com violência deixando a mão do “engomadinho” toda suja de merda.
Essa era uma pegadinhas mais freqüentes. A outra era esconder os óculos dos garotos. Os coitados ficavam doidinhos. Era uma judiação.
Brigar era outra das atividades preferidas do Adail. Aos doze anos já havia saído na porrada com todos os garotos da rua e com um sem número de moleques de outros bairros. A conta dele era pelo menos uma briga por semana.
Aos quatorze anos ficou conhecido como matador de gatos. Caçava gatos para esfolar e tirar o couro. Vendia-os para a escola de samba do bairro, que fazia tamborins com a pele dos pobres bichanos. A carne ele comia e dizia que era muito sabo-rosa. Virou moda entre os garotos da rua fazer churrasquinho de gato. Era comum, á noite, encontrar a rodinha da turma do Idail, em baixo da torre da Light, em volta de uma fogueira, assando uma “carninha”. Quando a população de gatos come-çou a diminuir no bairro os donos dos animais se deram conta do que estava acontecendo. Chamaram a polícia para tentar resolver o problema. O delegado chamou os pais do Adail e exigiu que ele desse um jeito no moleque. O velho mandou o garoto passar umas férias na casa da irmã, em São Paulo até as coisas se acalmarem.
Aos quinze anos foi preso pela primeira vez, juntamente com mais três outros moleques, por roubar o armazém de um japonês. Entraram no estabelecimento à noite, arrombando uma porta nos fundos do salão. Levaram algumas caixas de sardi-nhas em lata, algumas latas de conservas e uma meia dúzia de garrafas de vinho. Foi tudo que conseguiram carregar. No dia seguinte começaram a vender a muamba para quem quisesse comprar.
Não deu outra. Em menos de três horas os três estavam na delegacia, enfrentando um colérico japonês, que mal sabia falar português, mas que dizia palavrões aos montes. Esses todo mundo entendia. Os pais pagaram o prejuízo, o japonês ficou satisfeito, o delegado passou um sabão nos garotos e tudo ficou por isso mesmo. Não havia FEBEM naqueles tempos e o juiz de menores não quis nem tomar conhecimento do caso.
Os pais do Adail nunca aceitaram que seu filho fosse perverso e caminhava a passos largos para a bandidagem. Preferiam botar a culpa nos outros. Sempre diziam que eram os outros garotos que o levavam para o mau caminho. O filho deles era um santo.
Aos dezesseis anos foi preso novamente portando maconha. Fumar ele já fumava há algum tempo. Mas logo passou a traficar também. Felizmente, para ele, nessa ocasião a quanti-dade era pequena demais para caracterizar tráfico. Foi solto três horas depois, após o pai ter chorado as pitangas frente a um membro do Lions Clube local, que trabalhava como voluntário no centro correcional de menores da cidade.
Era assim que funcionavam as coisas naquele tempo. Menores apanhados em infração desse tipo eram levados para um centro correcional, onde membros de entidades filantrópicas faziam às vezes de psicólogos, assistentes sociais e agentes correcionais.
Geralmente tudo ficava na bronca e na ameaça. Foi o que aconteceu com o Adail naquele caso. Um sujeito grandão, Louro e com sotaque de polaco, primeiro quase bateu nele; depois ameaçou mandá-lo para um reformatório e por fim desman-chou-se em conselhos. Que ele estava acabado com a própria vida; que era um caminho sem volta; que estava magoando seus pais etc, etc. Ele saiu de lá rindo e gozando com a cara do babaca que havia passado aquele sabão nele. Sabia que não haviam reformatórios no Brasil.E o resto que se danasse.
Aos dezessete anos foi parar de novo na cadeia, desta vez por ter cortado o rosto de outro garoto com uma garrafa de cerveja quebrada. Eles brigaram em um bar e o adversário não era muito bobo. Como ele viu que poderia perder, pegou uma garrafa de cerveja que estava em cima do balcão, quebrou-a pelo meio e atacou o desafeto com ela. A improvisada arma fez um baita estrago na cara do garoto, de modo que ele teve que levar uns doze pontos.
Como era menor de idade, não chegou nem a ser processado. Ficou numa cela da carceragem uns dois dias, depois foi liberado. A polícia esqueceu o caso, até porque não tinha para onde mandar o moleque. Os abrigos correcionais estavam lota-dos e a burocracia era um inferno.
Tinha acabado de fazer dezoito anos quando cometeu seu primeiro crime de morte. A vítima foi seu próprio cunhado. Diga-se, a bem da verdade, que o sujeito não era flor que se cheirasse. Era um sujeito beberrão, que costumava encher a cara com freqüência e nessas ocasiões ficava muito violento. A principal vítima da sua violência era, naturalmente, a mulher, irmã do Adail.
Com o as coisas andavam meio complicadas para ele na casa dos pais, ele foi passar uns dias com a irmã casada. Ela morava num bairro periférico de São Paulo, famoso pelo alto índice de criminalidade. Adail até gostava disso, pois já havia feito amizade com alguns caras e, portanto, quando ia para lá já sabia como se divertir. Pouco importava se o ambiente era pe-rigoso, por que ele também era. E ele nunca andava desarmado. Quando saia, levava sempre uma garruchinha de dois tiros que ele havia comprado do dono de um ferro-velho ali nas proximidades, e em casa sempre tinha à mão um canivete de molas, de lâmina fina e bem afiada. Era um daqueles canivetes de que os jovens rebeldes do filme “Juventude Transviada” usavam. Esse filme era o favorito do Adail.
Foi com esse canivete que ele matou o cunhado. O miserável começara a brigar com sua irmã tivera início na cozinha, onde o cara, bastante bêbado, começara a seção habitual de espancamento. Ela correu para a sala, onde ele estava assistindo televisão. Viu o rosto da irmã, todo machucado, sangrando e o sangue subiu-lhe instantaneamente à cabeça. O cunhado era um cara grandão, pelo menos uns vinte quilos a mais de peso que ele e era uns quinze centímetros mais alto. Não ia dar para encarar no braço. Mesmo bêbado o cara ia ser um páreo duro. Então puxou o canivete e começou a retalhar o infeliz.
Foram mais de vinte estocadas, bem fundas, no tórax e no peito do sujeito. A irmã gritava, chorava e se escabelava, vendo o sangue que esguichava dos ferimentos do marido. Pe-dia desesperadamente para ele parar, mas o Adail parecia ter enlouquecido, ela diria mais tarde. Ele babava e feria, com uma ferocidade que nunca julgaria que alguém fosse capaz.
“Ele ficou que nem um porco”, dizia ele, mais tarde para os amigos, quando contava o feito, e se vangloriava. Todos os garotos da sua turma queriam saber como foi que acontecera, como ele se sentira ao ver o cara, no chão, se estrebuchando e vertendo sangue por todos os buracos do corpo. O caso saiu nos jornais da capital e até uma emissora de rádio dramatizou o acontecimento, transformando-o numa pequena enquete trágica. O Gil Gomes, principal repórter policial da época, deu grande destaque ao episódio. O Adail se tornou uma celebrida-de no bairro. Contava com prazer e orgulho o seu feito e parecia estar realmente feliz com a subida notoriedade que alcançara. Parecia que até as meninas do bairro estavam olhando de modo diferente para ele. Era medo, mas ele queria pensar que era admiração.
Por ser primário, seu advogado conseguiu com que ele respondesse ao processo em liberdade. Não chegou nem a ir á júri. O advogado conseguiu convencer o juiz de que ele tinha agido em legítima defesa, dele e de outrem. Sua irmã foi a principal testemunha. Confirmou a tese da defesa e assim ele saiu ileso de mais essa.
A única coisa que parecia preocupá-lo em tudo aquilo era uma superstição que a sua mãe havia plantado na cabeça dele. Ela, que era dada a freqüentar centros espíritas, havia dito a ele que quando se mata alguém, o espírito da pessoa morta costuma ficar de encosto no seu matador, até que ele consiga o perdão da vítima. E ele, embora dizendo que não acreditava nisso, não obstante, andava preocupado, pois desde algum tempo tinha a impressão de que nunca estava sozinho. Em qualquer lugar que ia, mesmo no seu quarto, à noite, a impressão era sempre a de alguém observando o que ele fazia. Era uma presença, muda, indistinta, insensível, como de algo, ou alguém que não se manifesta como presença física, mas que no entanto emite alguma forma de energia, que é captada pela parte mais sensível da nossa mente, aquela onde se alojam os arquétipos fundamentais que moldam nossos instintos mais primários. Daí vinham aqueles calafrios constantes que percorriam sua espinha, acompanhados de arrepios no alto do couro cabeludo e aqueles princípios de vertigem, como se alguém estivesse tentando se apossar de sua consciência.
Ao cabo de alguns meses carregando aquela impressão, ele começou a sentir-se incomodado a ponto de começar a abrir armários para ver se havia alguém dentro dele, a olhar debaixo da cama, olhar atrás das portas e em outros locais para ver se havia alguém a observá-lo.
Até que chegou a um ponto em que não agüentou mais e resolveu ir a um dos centros espíritas que sua mãe costumava freqüentar. Falou dos seus problemas e confessou o seu crime. Achava que estava ficando louco.
O médium que o atendeu lhe disse que o espírito das pessoas que morrem violentamente costuma ficar vagando na escuridão, e por não encontrar caminho para a luz, não consegue desencarnar definitivamente. Ficam presos à matéria, mas como não têm corpos para se hospedarem, sua única referência no mundo da matéria é a pessoa que lhes tirou a vida. Por isso “encostam” nela.
“Essa é uma qualidade da mente humana” disse o médium. “Ela gera sentimentos. Sentimentos são energia. O ódio, o amor, a compaixão, o apego, o ciúme, a raiva, a inveja, a cul-pa, são poderosas emissões energéticas que ligam as pessoas na vida e não diluem depois de elas morrem. Permanecem no mundo físico gerando descargas energéticas até serem finalmente dissipadas, ou pelo tempo ou por outras ações da mente no sentido de neutralizá-la. Descarregar essas energias negati-vas, deixadas pela mente das pessoas que morreram sem paz era o objetivo das orações, dos rituais e das oferendas que se fazem nos chamados centros espíritos.
Indagado como poderia fazer para se livrar do tal encosto, o médium lhe indicou uma série de trabalhos que deviam ser feitos. Eram despachos numa cachoeira, muita vela a ser acesa e muita reza a ser feita, além de outras várias oferendas que deveriam ser feitas ao dito espírito, para ver se ele o perdoasse e acabasse, afinal, por entender que estava morto e devia libertar-se definitivamente do seu invólucro carnal para poder alçar-se ao mundo astral e encontrar o caminho para a luz.
Mas a principal oferenda que o Adail devia fazer, segundo o seu orientador espiritual era o do seu próprio caráter de indivíduo perverso. Isso queria dizer que ele devia renunciar as suas ruindades e passar a viver direito. Não devia mais brigar, nem machucar ninguém, nem judiar de pessoas mais fracas ou de animais, como ele costumava fazer. Devia também rezar muito e viver uma vida decente, de homem tranqüilo, trabalhador e honesto.
Não é fácil mudar de caráter do dia para a noite. Mas não se pode dizer que o Adail não tenha tentado. Arranjou um em-prego numa fábrica e passou a freqüentar o centro espírita. Par-ticipava das quermesses promovidas pela entidade e ajudava nas barracas. Arranjara até uma namorada, segundo dizia ele aos amigos, quando estes o convidavam para sair para a farra. ¨Não posso”, respondia ele. “Hoje vou sair com a minha namorada.”
Todo mundo se admirou com a mudança sofrida pelo Adail. Tornara-se um rapaz direito, pacato, tranqüilo, que não provocava mais ninguém e só pensava em trabalhar, ir às sessões do centro espírita e namorar a sua Toninha.
Toninha era o nome da menina que ele dizia que estava namorando. Ele a conhecera numa das seções do centro espírita que freqüentava. Era uma menina de cerca de uns dezoito anos, pálida e franzina, que dava a impressão que carregava dentro de si uma grande e mortal tristeza, que ela, por mais que ele insistisse, não contava de jeito nenhum o motivo. Eles só se encontravam nos dias de sessão do centro. Nunca nos fins de semana, nem durante os outros dias, eles conseguiam se encon-trar, pois segundo ela, seus pais a matariam se soubessem que ela estava namorando.
Por isso ele nunca conseguiu acompanhá-la até a porta da casa onde ela morava, pois seria uma tragédia se alguém da sua família a visse com ele.
Adail não estranhou, porque tinha gente que era assim mesmo. Afinal estavam numa cidade de interior, no começo dos anos sessenta.
Toninha morava numa chácara, afastada cerca de um quilômetro de onde o núcleo urbano terminava. Era a chamada Chácara do Alemão e segundo ela dizia, seu pai era o caseiro da chácara.
Fazia cerca de três meses que eles estavam namorando e o Adail achou que era hora de ir falar com os pais dela. Afinal não fazia sentido aquele namoro às escondidas, como se esti-vessem praticando um crime. Disse a ela que gostaria de falar com os pais dela para oficializar o namoro. Mas queria que ela confiasse nele e contasse os problemas que ela parecia ter com a família. Para ganhar a confiança dela confessou os crimes que havia cometido, as penas que estava pagando para afastar o encosto do espírito do cunhado, e instou com ela para lhe con-tasse a razão daquele eterno semblante de tristeza e desespe-rança que ele via no rosto dela.
“Eu me perdi por amor”, disse ela, depois de muita insistência.
Então, esse era o segredo dela, pensou. Ela havia se entregado a um rapaz, ele se aproveitara dela e depois a abandonara. Isso é que significava, para uma moça naqueles tempos, se perder.
Não era mais moça, por isso aquela tristeza, aquela máscara de angústia e desesperança que ele julgava ver na face. Talvez achasse que nunca mais um rapaz honesto fosse se interessar por ela. Aqueles eram tempos e lugares onde essas coisas marcavam para sempre uma garota e as empurrava para o rol das perdidas.
“ E o sujeito que a enganou, o que aconteceu com ele?”, perguntou Adail.
“Quando soube que eu tinha ficado grávida, ele sumiu”, ela disse.
Essa não era uma coisa muito fácil de aceitar naqueles tempos e naquela cidade. Adail passou muitos dias pensando no caso. Toninha então, era uma daquelas meninas que havia perdido a virgindade e se tornara mãe solteira.Situação compli-cada. Entendia agora porque ela não queria ser vista com ele. Se a família não a abandonara, era porque, de certo haviam perdoado o deslize dela. E se perdoaram, tinham medo que ela se metesse em outra fria. Por isso o pavor dela em vista com outro rapaz.
Pensou bastante no caso. Sem dúvida era uma falta grave a dela. Mas parecia que pouca gente sabia do caso, porque nunca ouvira qualquer comentário sobre esse assunto, fosse no centro espírita que eles freqüentavam, fosse dos seus amigos. Também parecia que ninguém conhecia a Toninha.
Isso o tranqüilizou. Talvez ninguém soubesse, mesmo, desse caso. Ponderou que ele também tinha um/ita culpa para pagar. Tinha sido um ladrão e um assassino. Quem sabe essa não fosse a redenção definitiva para o seu caso. Talvez redi-mindo a namorada ele poderia afastar definitivamente o encosto do espírito do cunhado, que ele ainda sentia que estava por perto.
Afinal de contas ele amava de verdade aquela menina. Pensar em viver sem ela era algo que lhe parecia insuportável. Soube disso depois das duas semanas que passou sem vê-la. Parecia que a vida tinha perdido todo o sentido.
Durante três semanas ela não apareceu no centro espírita para a sessão da semana. Não suportando mais a ausência dela, ele, no dia seguinte Adail encheu-se de coragem e foi até a casa da Toninha, decidido a falar com os pais da menina. Não tinha importância o erro que ela tinha cometido. Nem que tivesse tido filho com outro cara. Ele o criaria como se fosse dele. Ele a amava. Ele perdoaria tudo.
Queria casar-se com ela o mais rápido possível. Tinha certeza que seu pedido ia ser um alívio para a família dela. Afinal, todo mundo sabia que moça que se perde desse jeito difi-cilmente encontra marido. Assim, ele contava como certo que os pais dela iriam aceder.
“ O Senhor deve estar louco, ou então está fazendo brincadeira de mau gosto”, disse o sisudo indivíduo que o atendeu na casa do caseiro da Chácara do Alemão.
“Como assim, senhor? Não é aqui que mora a Toninha? O senhor não é pai dela?”, perguntou Adail.
“ Eu tenho duas filhas, mas são ambas casadas e nenhuma delas mora aqui nem se chama Toninha”, respondeu, com uma cara de poucos amigos, o caseiro.
“Mas ela disse que morava aqui”, insistiu Adail. É uma moça magrinha, bem franzina, tem um rosto bem branquinho, cabelos pretos, compridos.”
O caseiro franziu ainda mais o cenho. “Olha moço”, disse o caseiro, agora demonstrando uma incontida impaciência. “ Se o senhor quer saber, a única Toninha que se parece com essa moça que o senhor está descrevendo foi uma tia que eu tive. Ela morava aqui e era irmã do meu pai.Era uma vagabunda que se perdeu com um rapaz e ficou grávida. Morreu de parto, junto com a criança há uns quarenta anos atrás. As duas cruzes que você vê na entrada da chácara foram postas lá por causa deles.”
O Adail voltou a ser um cara mau e sinistro. Perverso e perigoso ele já era. Mas depois disso tornou-se também um sujeito amargo e triste. Largou o trabalho e só podia ser visto à noite, rondando a Chácara do Alemão. Tomava todas, fumava um baseado, depois ficava sentado no barranco, em frente às duas cruzes.
Parecia uma alma penada. Nunca mais foi ao centro espírita. Certa vez, passados uns três meses depois daquele dia em que ele foi à chácara, o velho caseiro, o sair pela manhã para buscar pão, encontrou Adail deitado de bruços ao pé de uma das cruzes. A princípio não estranhou, pois já o havia visto outras vezes sentado no barranco, em frente das cruzes, como se fosse uma sentinela da morte montando guarda no túmulo da sua amada. Nunca ligou, pois sabia que o cara era um bêbado contumaz. Talvez tivesse tomado todas e dormido.
Mas ao tentar acordá-lo verificou que ele tinha um canivete de molas esperado no coração. Estava morto.
Nunca se descobriu quem o matou ou se ele morreu pelas próprias mãos. Como ele tinha um histórico complicado a coisa ficou por conta de alguma briga e ninguém se preocupou em desvendar o mistério. O pessoal da polícia logo arquivou o caso e é bem possível que tenha ficado satisfeita em se livrar de mais um problema. Nada mudou naquele bairro. Apenas as cruzes que eram duas passaram a ser três. E o local ficou conhecido como Três Cruzes.
Hoje, a Chácara do Alemão não existe mais. Foi vendida para uma imobiliária nos anos setenta e tornou-se um bairro elegante da cidade. Mas durante muitos anos as três cruzes que se via no local provocaram muitos comentários. Pouca gente sabia o verdadeiro motivo delas. Houve quem afirmasse que elas foram plantadas na época de Dom Pedro I, quando ele passou pela região em direção à então vila de São Paulo. No lugar, diziam, havia um rancho de tropeiros onde ele passara a noite com a sua comitiva. As cruzes foram postadas em homenagem à missa que foi rezada ali. Outros diziam que as três cruzes eram o resultado de uma chacina que ocorrera no local no inicio do século. Três pessoas teriam sido mortas ali de emboscada.
O que maioria concordava era que o local era realmente mal assombrado. E que quatro almas errantes costumavam ser vistas por ali. Duas eram de homens, uma era mulher e a outra era de um nenenzinho de colo. Um dos homens gritava pedindo de volta a vida que lhe fora tirada; a mulher se lamentava pela sua inocência perdida; a criança chorava pela chance, que não teve, de viver, e o outro pedia preces, velas e perdão pelos pecados que havia cometido na vida.
Quem disse que viu e ouviu essas coisas jura que tudo é verdade. Mas a maioria das pessoas sempre achou que tudo não passa de lenda urbana. Na verdade, o local onde as três cruzes estavam fincadas era um lugar onde o vento era tão comum e tão forte que parecia falar. Ainda hoje é assim. De noite parece que tem gente conversando na solidão das ruas desertas daquele bairro onde ficava a Chácara do Alemão. Deve ser isso que impressiona o espírito das pessoas que passam por aquele local.
Para terminar, vou dizer que as pessoas que conheceram o Adail testemunharam que ele era, mesmo, muito, muito perverso. O centro espírita que ele freqüentava ainda existe hoje e algumas pessoas que o freqüentam dizem que o espírito dele, às vezes, usa um dos “cavalos” da sessão para pedir reza, velas e despachos para ajudá-lo a se guiar no mundo da escuridão onde ainda hoje ele está vagando.
(Lenda Urbana)
Adail era um sujeito reconhecidamente perverso. Desde criança ele apresentava essa característica. O termo bullying ainda não existia mas ele já praticava esse comportamento com muita eficiência. Se fosse hoje ele seria o rei nesse negócio de humilhar colegas na escola, desclassificar os companheiros no trabalho, rebaixá-las nos grupos, acabando com a auto-estima delas. Bullying é um negócio que existe desde que o mundo é mundo e algumas pessoas descobriram que umas pessoas são mais frágeis que outras. A mesma motivação que hoje informa o bullying no passado fez nascer a escravidão e é responsável por todos os abusos que os mais fracos têm que suportar dos mais fortes. O desejo de mostrar superioridade, de sobrepor-se aos outros, de servir-se do próximo para massagear o próprio ego é algo que está no “programa” que informa a personalidade humana e só a custo de muita civilidade consegue ser mitigado.
Quanto ao Adail, os meninos menos espertos e pouco valentes sofriam horrores nas mãos dele e dos garotos que ele liderava. Era uma turminha do capeta. Desde os primeiros anos de escola ele já se posicionara como o líder dos malvados. Quem mais sofria com as maldades dele eram os chamados garotos “engomadinhos”, “os filhinhos de papai”, os “quatro olhos”, meninos limpinhos que usavam óculos e roupas bonitas. Geralmente eram garotos bem educados, que não conheciam os truques sujos que o Adail e seus amigos aprendiam na rua.
Um deles era o chamado “Pau de Bosta”. Essa brincadeira nojenta consistia em simular uma briga, na qual um dos lu-tadores se recusava a brigar porque o outro tinha um pedaço de pau na mão. Então um dos brigões dizia para ele largar o peda-ço de pau e brigar de mãos limpas, se ele “fosse homem”. Em volta dos dois brigões sempre se ajuntava um bando de “torcedores”, que ficava estimulando a briga. Então o brigão “arma-do” escolhia um dos garotos “limpinhos” e pedia para ele segu-rar o pedaço de pau para ele. E quando o bobão pegava o bas-tão, o sacana o puxava com violência deixando a mão do “engomadinho” toda suja de merda.
Essa era uma pegadinhas mais freqüentes. A outra era esconder os óculos dos garotos. Os coitados ficavam doidinhos. Era uma judiação.
Brigar era outra das atividades preferidas do Adail. Aos doze anos já havia saído na porrada com todos os garotos da rua e com um sem número de moleques de outros bairros. A conta dele era pelo menos uma briga por semana.
Aos quatorze anos ficou conhecido como matador de gatos. Caçava gatos para esfolar e tirar o couro. Vendia-os para a escola de samba do bairro, que fazia tamborins com a pele dos pobres bichanos. A carne ele comia e dizia que era muito sabo-rosa. Virou moda entre os garotos da rua fazer churrasquinho de gato. Era comum, á noite, encontrar a rodinha da turma do Idail, em baixo da torre da Light, em volta de uma fogueira, assando uma “carninha”. Quando a população de gatos come-çou a diminuir no bairro os donos dos animais se deram conta do que estava acontecendo. Chamaram a polícia para tentar resolver o problema. O delegado chamou os pais do Adail e exigiu que ele desse um jeito no moleque. O velho mandou o garoto passar umas férias na casa da irmã, em São Paulo até as coisas se acalmarem.
Aos quinze anos foi preso pela primeira vez, juntamente com mais três outros moleques, por roubar o armazém de um japonês. Entraram no estabelecimento à noite, arrombando uma porta nos fundos do salão. Levaram algumas caixas de sardi-nhas em lata, algumas latas de conservas e uma meia dúzia de garrafas de vinho. Foi tudo que conseguiram carregar. No dia seguinte começaram a vender a muamba para quem quisesse comprar.
Não deu outra. Em menos de três horas os três estavam na delegacia, enfrentando um colérico japonês, que mal sabia falar português, mas que dizia palavrões aos montes. Esses todo mundo entendia. Os pais pagaram o prejuízo, o japonês ficou satisfeito, o delegado passou um sabão nos garotos e tudo ficou por isso mesmo. Não havia FEBEM naqueles tempos e o juiz de menores não quis nem tomar conhecimento do caso.
Os pais do Adail nunca aceitaram que seu filho fosse perverso e caminhava a passos largos para a bandidagem. Preferiam botar a culpa nos outros. Sempre diziam que eram os outros garotos que o levavam para o mau caminho. O filho deles era um santo.
Aos dezesseis anos foi preso novamente portando maconha. Fumar ele já fumava há algum tempo. Mas logo passou a traficar também. Felizmente, para ele, nessa ocasião a quanti-dade era pequena demais para caracterizar tráfico. Foi solto três horas depois, após o pai ter chorado as pitangas frente a um membro do Lions Clube local, que trabalhava como voluntário no centro correcional de menores da cidade.
Era assim que funcionavam as coisas naquele tempo. Menores apanhados em infração desse tipo eram levados para um centro correcional, onde membros de entidades filantrópicas faziam às vezes de psicólogos, assistentes sociais e agentes correcionais.
Geralmente tudo ficava na bronca e na ameaça. Foi o que aconteceu com o Adail naquele caso. Um sujeito grandão, Louro e com sotaque de polaco, primeiro quase bateu nele; depois ameaçou mandá-lo para um reformatório e por fim desman-chou-se em conselhos. Que ele estava acabado com a própria vida; que era um caminho sem volta; que estava magoando seus pais etc, etc. Ele saiu de lá rindo e gozando com a cara do babaca que havia passado aquele sabão nele. Sabia que não haviam reformatórios no Brasil.E o resto que se danasse.
Aos dezessete anos foi parar de novo na cadeia, desta vez por ter cortado o rosto de outro garoto com uma garrafa de cerveja quebrada. Eles brigaram em um bar e o adversário não era muito bobo. Como ele viu que poderia perder, pegou uma garrafa de cerveja que estava em cima do balcão, quebrou-a pelo meio e atacou o desafeto com ela. A improvisada arma fez um baita estrago na cara do garoto, de modo que ele teve que levar uns doze pontos.
Como era menor de idade, não chegou nem a ser processado. Ficou numa cela da carceragem uns dois dias, depois foi liberado. A polícia esqueceu o caso, até porque não tinha para onde mandar o moleque. Os abrigos correcionais estavam lota-dos e a burocracia era um inferno.
Tinha acabado de fazer dezoito anos quando cometeu seu primeiro crime de morte. A vítima foi seu próprio cunhado. Diga-se, a bem da verdade, que o sujeito não era flor que se cheirasse. Era um sujeito beberrão, que costumava encher a cara com freqüência e nessas ocasiões ficava muito violento. A principal vítima da sua violência era, naturalmente, a mulher, irmã do Adail.
Com o as coisas andavam meio complicadas para ele na casa dos pais, ele foi passar uns dias com a irmã casada. Ela morava num bairro periférico de São Paulo, famoso pelo alto índice de criminalidade. Adail até gostava disso, pois já havia feito amizade com alguns caras e, portanto, quando ia para lá já sabia como se divertir. Pouco importava se o ambiente era pe-rigoso, por que ele também era. E ele nunca andava desarmado. Quando saia, levava sempre uma garruchinha de dois tiros que ele havia comprado do dono de um ferro-velho ali nas proximidades, e em casa sempre tinha à mão um canivete de molas, de lâmina fina e bem afiada. Era um daqueles canivetes de que os jovens rebeldes do filme “Juventude Transviada” usavam. Esse filme era o favorito do Adail.
Foi com esse canivete que ele matou o cunhado. O miserável começara a brigar com sua irmã tivera início na cozinha, onde o cara, bastante bêbado, começara a seção habitual de espancamento. Ela correu para a sala, onde ele estava assistindo televisão. Viu o rosto da irmã, todo machucado, sangrando e o sangue subiu-lhe instantaneamente à cabeça. O cunhado era um cara grandão, pelo menos uns vinte quilos a mais de peso que ele e era uns quinze centímetros mais alto. Não ia dar para encarar no braço. Mesmo bêbado o cara ia ser um páreo duro. Então puxou o canivete e começou a retalhar o infeliz.
Foram mais de vinte estocadas, bem fundas, no tórax e no peito do sujeito. A irmã gritava, chorava e se escabelava, vendo o sangue que esguichava dos ferimentos do marido. Pe-dia desesperadamente para ele parar, mas o Adail parecia ter enlouquecido, ela diria mais tarde. Ele babava e feria, com uma ferocidade que nunca julgaria que alguém fosse capaz.
“Ele ficou que nem um porco”, dizia ele, mais tarde para os amigos, quando contava o feito, e se vangloriava. Todos os garotos da sua turma queriam saber como foi que acontecera, como ele se sentira ao ver o cara, no chão, se estrebuchando e vertendo sangue por todos os buracos do corpo. O caso saiu nos jornais da capital e até uma emissora de rádio dramatizou o acontecimento, transformando-o numa pequena enquete trágica. O Gil Gomes, principal repórter policial da época, deu grande destaque ao episódio. O Adail se tornou uma celebrida-de no bairro. Contava com prazer e orgulho o seu feito e parecia estar realmente feliz com a subida notoriedade que alcançara. Parecia que até as meninas do bairro estavam olhando de modo diferente para ele. Era medo, mas ele queria pensar que era admiração.
Por ser primário, seu advogado conseguiu com que ele respondesse ao processo em liberdade. Não chegou nem a ir á júri. O advogado conseguiu convencer o juiz de que ele tinha agido em legítima defesa, dele e de outrem. Sua irmã foi a principal testemunha. Confirmou a tese da defesa e assim ele saiu ileso de mais essa.
A única coisa que parecia preocupá-lo em tudo aquilo era uma superstição que a sua mãe havia plantado na cabeça dele. Ela, que era dada a freqüentar centros espíritas, havia dito a ele que quando se mata alguém, o espírito da pessoa morta costuma ficar de encosto no seu matador, até que ele consiga o perdão da vítima. E ele, embora dizendo que não acreditava nisso, não obstante, andava preocupado, pois desde algum tempo tinha a impressão de que nunca estava sozinho. Em qualquer lugar que ia, mesmo no seu quarto, à noite, a impressão era sempre a de alguém observando o que ele fazia. Era uma presença, muda, indistinta, insensível, como de algo, ou alguém que não se manifesta como presença física, mas que no entanto emite alguma forma de energia, que é captada pela parte mais sensível da nossa mente, aquela onde se alojam os arquétipos fundamentais que moldam nossos instintos mais primários. Daí vinham aqueles calafrios constantes que percorriam sua espinha, acompanhados de arrepios no alto do couro cabeludo e aqueles princípios de vertigem, como se alguém estivesse tentando se apossar de sua consciência.
Ao cabo de alguns meses carregando aquela impressão, ele começou a sentir-se incomodado a ponto de começar a abrir armários para ver se havia alguém dentro dele, a olhar debaixo da cama, olhar atrás das portas e em outros locais para ver se havia alguém a observá-lo.
Até que chegou a um ponto em que não agüentou mais e resolveu ir a um dos centros espíritas que sua mãe costumava freqüentar. Falou dos seus problemas e confessou o seu crime. Achava que estava ficando louco.
O médium que o atendeu lhe disse que o espírito das pessoas que morrem violentamente costuma ficar vagando na escuridão, e por não encontrar caminho para a luz, não consegue desencarnar definitivamente. Ficam presos à matéria, mas como não têm corpos para se hospedarem, sua única referência no mundo da matéria é a pessoa que lhes tirou a vida. Por isso “encostam” nela.
“Essa é uma qualidade da mente humana” disse o médium. “Ela gera sentimentos. Sentimentos são energia. O ódio, o amor, a compaixão, o apego, o ciúme, a raiva, a inveja, a cul-pa, são poderosas emissões energéticas que ligam as pessoas na vida e não diluem depois de elas morrem. Permanecem no mundo físico gerando descargas energéticas até serem finalmente dissipadas, ou pelo tempo ou por outras ações da mente no sentido de neutralizá-la. Descarregar essas energias negati-vas, deixadas pela mente das pessoas que morreram sem paz era o objetivo das orações, dos rituais e das oferendas que se fazem nos chamados centros espíritos.
Indagado como poderia fazer para se livrar do tal encosto, o médium lhe indicou uma série de trabalhos que deviam ser feitos. Eram despachos numa cachoeira, muita vela a ser acesa e muita reza a ser feita, além de outras várias oferendas que deveriam ser feitas ao dito espírito, para ver se ele o perdoasse e acabasse, afinal, por entender que estava morto e devia libertar-se definitivamente do seu invólucro carnal para poder alçar-se ao mundo astral e encontrar o caminho para a luz.
Mas a principal oferenda que o Adail devia fazer, segundo o seu orientador espiritual era o do seu próprio caráter de indivíduo perverso. Isso queria dizer que ele devia renunciar as suas ruindades e passar a viver direito. Não devia mais brigar, nem machucar ninguém, nem judiar de pessoas mais fracas ou de animais, como ele costumava fazer. Devia também rezar muito e viver uma vida decente, de homem tranqüilo, trabalhador e honesto.
Não é fácil mudar de caráter do dia para a noite. Mas não se pode dizer que o Adail não tenha tentado. Arranjou um em-prego numa fábrica e passou a freqüentar o centro espírita. Par-ticipava das quermesses promovidas pela entidade e ajudava nas barracas. Arranjara até uma namorada, segundo dizia ele aos amigos, quando estes o convidavam para sair para a farra. ¨Não posso”, respondia ele. “Hoje vou sair com a minha namorada.”
Todo mundo se admirou com a mudança sofrida pelo Adail. Tornara-se um rapaz direito, pacato, tranqüilo, que não provocava mais ninguém e só pensava em trabalhar, ir às sessões do centro espírita e namorar a sua Toninha.
Toninha era o nome da menina que ele dizia que estava namorando. Ele a conhecera numa das seções do centro espírita que freqüentava. Era uma menina de cerca de uns dezoito anos, pálida e franzina, que dava a impressão que carregava dentro de si uma grande e mortal tristeza, que ela, por mais que ele insistisse, não contava de jeito nenhum o motivo. Eles só se encontravam nos dias de sessão do centro. Nunca nos fins de semana, nem durante os outros dias, eles conseguiam se encon-trar, pois segundo ela, seus pais a matariam se soubessem que ela estava namorando.
Por isso ele nunca conseguiu acompanhá-la até a porta da casa onde ela morava, pois seria uma tragédia se alguém da sua família a visse com ele.
Adail não estranhou, porque tinha gente que era assim mesmo. Afinal estavam numa cidade de interior, no começo dos anos sessenta.
Toninha morava numa chácara, afastada cerca de um quilômetro de onde o núcleo urbano terminava. Era a chamada Chácara do Alemão e segundo ela dizia, seu pai era o caseiro da chácara.
Fazia cerca de três meses que eles estavam namorando e o Adail achou que era hora de ir falar com os pais dela. Afinal não fazia sentido aquele namoro às escondidas, como se esti-vessem praticando um crime. Disse a ela que gostaria de falar com os pais dela para oficializar o namoro. Mas queria que ela confiasse nele e contasse os problemas que ela parecia ter com a família. Para ganhar a confiança dela confessou os crimes que havia cometido, as penas que estava pagando para afastar o encosto do espírito do cunhado, e instou com ela para lhe con-tasse a razão daquele eterno semblante de tristeza e desespe-rança que ele via no rosto dela.
“Eu me perdi por amor”, disse ela, depois de muita insistência.
Então, esse era o segredo dela, pensou. Ela havia se entregado a um rapaz, ele se aproveitara dela e depois a abandonara. Isso é que significava, para uma moça naqueles tempos, se perder.
Não era mais moça, por isso aquela tristeza, aquela máscara de angústia e desesperança que ele julgava ver na face. Talvez achasse que nunca mais um rapaz honesto fosse se interessar por ela. Aqueles eram tempos e lugares onde essas coisas marcavam para sempre uma garota e as empurrava para o rol das perdidas.
“ E o sujeito que a enganou, o que aconteceu com ele?”, perguntou Adail.
“Quando soube que eu tinha ficado grávida, ele sumiu”, ela disse.
Essa não era uma coisa muito fácil de aceitar naqueles tempos e naquela cidade. Adail passou muitos dias pensando no caso. Toninha então, era uma daquelas meninas que havia perdido a virgindade e se tornara mãe solteira.Situação compli-cada. Entendia agora porque ela não queria ser vista com ele. Se a família não a abandonara, era porque, de certo haviam perdoado o deslize dela. E se perdoaram, tinham medo que ela se metesse em outra fria. Por isso o pavor dela em vista com outro rapaz.
Pensou bastante no caso. Sem dúvida era uma falta grave a dela. Mas parecia que pouca gente sabia do caso, porque nunca ouvira qualquer comentário sobre esse assunto, fosse no centro espírita que eles freqüentavam, fosse dos seus amigos. Também parecia que ninguém conhecia a Toninha.
Isso o tranqüilizou. Talvez ninguém soubesse, mesmo, desse caso. Ponderou que ele também tinha um/ita culpa para pagar. Tinha sido um ladrão e um assassino. Quem sabe essa não fosse a redenção definitiva para o seu caso. Talvez redi-mindo a namorada ele poderia afastar definitivamente o encosto do espírito do cunhado, que ele ainda sentia que estava por perto.
Afinal de contas ele amava de verdade aquela menina. Pensar em viver sem ela era algo que lhe parecia insuportável. Soube disso depois das duas semanas que passou sem vê-la. Parecia que a vida tinha perdido todo o sentido.
Durante três semanas ela não apareceu no centro espírita para a sessão da semana. Não suportando mais a ausência dela, ele, no dia seguinte Adail encheu-se de coragem e foi até a casa da Toninha, decidido a falar com os pais da menina. Não tinha importância o erro que ela tinha cometido. Nem que tivesse tido filho com outro cara. Ele o criaria como se fosse dele. Ele a amava. Ele perdoaria tudo.
Queria casar-se com ela o mais rápido possível. Tinha certeza que seu pedido ia ser um alívio para a família dela. Afinal, todo mundo sabia que moça que se perde desse jeito difi-cilmente encontra marido. Assim, ele contava como certo que os pais dela iriam aceder.
“ O Senhor deve estar louco, ou então está fazendo brincadeira de mau gosto”, disse o sisudo indivíduo que o atendeu na casa do caseiro da Chácara do Alemão.
“Como assim, senhor? Não é aqui que mora a Toninha? O senhor não é pai dela?”, perguntou Adail.
“ Eu tenho duas filhas, mas são ambas casadas e nenhuma delas mora aqui nem se chama Toninha”, respondeu, com uma cara de poucos amigos, o caseiro.
“Mas ela disse que morava aqui”, insistiu Adail. É uma moça magrinha, bem franzina, tem um rosto bem branquinho, cabelos pretos, compridos.”
O caseiro franziu ainda mais o cenho. “Olha moço”, disse o caseiro, agora demonstrando uma incontida impaciência. “ Se o senhor quer saber, a única Toninha que se parece com essa moça que o senhor está descrevendo foi uma tia que eu tive. Ela morava aqui e era irmã do meu pai.Era uma vagabunda que se perdeu com um rapaz e ficou grávida. Morreu de parto, junto com a criança há uns quarenta anos atrás. As duas cruzes que você vê na entrada da chácara foram postas lá por causa deles.”
O Adail voltou a ser um cara mau e sinistro. Perverso e perigoso ele já era. Mas depois disso tornou-se também um sujeito amargo e triste. Largou o trabalho e só podia ser visto à noite, rondando a Chácara do Alemão. Tomava todas, fumava um baseado, depois ficava sentado no barranco, em frente às duas cruzes.
Parecia uma alma penada. Nunca mais foi ao centro espírita. Certa vez, passados uns três meses depois daquele dia em que ele foi à chácara, o velho caseiro, o sair pela manhã para buscar pão, encontrou Adail deitado de bruços ao pé de uma das cruzes. A princípio não estranhou, pois já o havia visto outras vezes sentado no barranco, em frente das cruzes, como se fosse uma sentinela da morte montando guarda no túmulo da sua amada. Nunca ligou, pois sabia que o cara era um bêbado contumaz. Talvez tivesse tomado todas e dormido.
Mas ao tentar acordá-lo verificou que ele tinha um canivete de molas esperado no coração. Estava morto.
Nunca se descobriu quem o matou ou se ele morreu pelas próprias mãos. Como ele tinha um histórico complicado a coisa ficou por conta de alguma briga e ninguém se preocupou em desvendar o mistério. O pessoal da polícia logo arquivou o caso e é bem possível que tenha ficado satisfeita em se livrar de mais um problema. Nada mudou naquele bairro. Apenas as cruzes que eram duas passaram a ser três. E o local ficou conhecido como Três Cruzes.
Hoje, a Chácara do Alemão não existe mais. Foi vendida para uma imobiliária nos anos setenta e tornou-se um bairro elegante da cidade. Mas durante muitos anos as três cruzes que se via no local provocaram muitos comentários. Pouca gente sabia o verdadeiro motivo delas. Houve quem afirmasse que elas foram plantadas na época de Dom Pedro I, quando ele passou pela região em direção à então vila de São Paulo. No lugar, diziam, havia um rancho de tropeiros onde ele passara a noite com a sua comitiva. As cruzes foram postadas em homenagem à missa que foi rezada ali. Outros diziam que as três cruzes eram o resultado de uma chacina que ocorrera no local no inicio do século. Três pessoas teriam sido mortas ali de emboscada.
O que maioria concordava era que o local era realmente mal assombrado. E que quatro almas errantes costumavam ser vistas por ali. Duas eram de homens, uma era mulher e a outra era de um nenenzinho de colo. Um dos homens gritava pedindo de volta a vida que lhe fora tirada; a mulher se lamentava pela sua inocência perdida; a criança chorava pela chance, que não teve, de viver, e o outro pedia preces, velas e perdão pelos pecados que havia cometido na vida.
Quem disse que viu e ouviu essas coisas jura que tudo é verdade. Mas a maioria das pessoas sempre achou que tudo não passa de lenda urbana. Na verdade, o local onde as três cruzes estavam fincadas era um lugar onde o vento era tão comum e tão forte que parecia falar. Ainda hoje é assim. De noite parece que tem gente conversando na solidão das ruas desertas daquele bairro onde ficava a Chácara do Alemão. Deve ser isso que impressiona o espírito das pessoas que passam por aquele local.
Para terminar, vou dizer que as pessoas que conheceram o Adail testemunharam que ele era, mesmo, muito, muito perverso. O centro espírita que ele freqüentava ainda existe hoje e algumas pessoas que o freqüentam dizem que o espírito dele, às vezes, usa um dos “cavalos” da sessão para pedir reza, velas e despachos para ajudá-lo a se guiar no mundo da escuridão onde ainda hoje ele está vagando.