O Morto Vivo
— Um morto por dez reais... Mortinho da Silva.
Ainda que as palavras do mendigo com jeitão de filósofo soassem um tanto jocosas, sua voz de barítono, envoltas que estavam na hora mais escura da noite, soaram aos três amigos como um convite ao desconhecido: o silêncio dos garotos denunciou mais que escondeu.
— Não me temas!
Encarou-os coçando um bigodão de destronar o Nietzsche, embora as curtas madeixas deixassem a desejar se observadas sob a ótica Schopenhaueana: Asimov, na tumba, sorriu.
— Quer dizer que estão com medo de um mero morto... Bem morto? Crianças... Vocês deveriam temer os vivos. Quanto mais vivo...
Silêncio.
— Pois bem... – pausou quando retirou do bigode uma taturana, sem perceber que outra cochilava no conforto de uma madeixa. -... Neste caso lhes proponho um... Meio termo? Uma visita a um morto-vivo. – aguardou. - Coloquem a caixola para funcionar: estando ele, não morto por completo, logo, “meio” medo para vocês... Que tal?
O vento silvou, mas os garotos não reagiram.
— Na verdade, mais vivo que morto, e para alguns, um morto-vivo menos morto que muito vivo, talvez um autêntico vivo-vivo... Estão me ouvindo?
Balançaram a cabeça enquanto o maltrapilho estendia a mão para a coleta do dinheiro. Examinou as cédulas e continuou:
-Não, não... Posso ser rígido, bruto e cheiroso, mas nunca, jamais injusto! – os moleques tremiam dos pés à cabeça, mas permaneceram hipnotizados. – Sendo nosso objeto de estudo um morto-vivo, nada mais justo lhes cobrar metade do preço, não é mesmo? – devolveu os cinco reais. – Não gastem com bobagens molecada... Vamos!
Com estas palavras, eles o seguiram rumo ao desconhecido, rumo ao...
***
A proximidade da hora do lobo, em conjunção com a estranha proposta, emprestava um ar de explícita ansiedade às máscaras de pele dos adolescentes, embora nada que sugerisse maldade ou malícia: livres que estavam das manchas e impurezas de uma ainda distante e tediosa maturidade.
— Por que correr crianças? Porque não medir os passos e... Contemplar? – apontou o indicador ao firmamento.
— Sim, nesta idade impressionável... – coçou o bigode antes de continuar. –... a idade da descoberta e maravilhamento... – encarou-os - Contemplem a noite crianças; embriaguem-se em sua profundidade e mistério... Sem temê-la!
Os garotos petrificaram no céu como estátuas de cera.
— Viram? Nada a temer... Sabem por quê? – continuou antes da negativa. – Porque ela, a Noite, está imobilizada... Presa e morta; uma não-existência: massa de indefinição solitária e esquecida, enegrecendo na imensa tumba cósmica conhecida como firmamento, asfixiada pela ciclópica tampa mortuária que alguns chamam, inocentemente, de abóbada celeste! Temam gurizada, mas temam o dia, pois nele, e apenas nele, a horrível claridade ganha asas e nos mostra, como um Demônio da Verdade... Tudo aquilo que não deveria respirar nem existir.
A curiosidade tomou as rédeas e uma antes tímida excitação agora vestia a máscara da ansiedade; um dos garotos empalmou a garganta, enquanto os outros tentavam em vão retornar: era como se as sombras lhes servissem de algemas.
— Quem anda de costas é carangueijo. – olhou-os. - Avante garotos, pois o dever nos chama e a noite... um defunto fedorento!
***
Seguiram-no por avenidas e ruas, atravessaram jardins e ruelas; saltaram buracos, temeram sarjetas, tentaram falar, mas tremeram no frio: o silêncio do silêncio.
— Aqui estamos criaturas silenciosas! – parou bruscamente apontando para uma aglomeração de indefinição.
Olharam, mas não viram nada além da escuridão entrecortada por massas de folhas e estridências metálicas.
— Então? – aguardou – Não falei que estava morta? Mortinha da Silva? Atravessemos a noite, cambadinha... Nosso anfitrião nos aguarda!
Seguiu em frente, mas eles não prosseguiram; porém, quando o vazio alargou a possibilidade de distanciamento e solidão (dentro e fora) o medo mostrou a face: acompanharam-no como uma trindade de sombras e só pararam quando os ruídos intensificaram.
— Ouvem molecada? O vento de braços abertos, nos dando boas vindas.
À frente dos garotos, emoldurado pelo brilho lunar e flanqueado por jaqueiras frondosas, um imenso portão rangia sob a insistência ventosa; acima da grade uma placa anunciava: Cemitério Santa Luzia.
— Ainda que nossa postura e membros denunciem nossa lamentável constituição hominídea, em alguns momentos na vida se faz necessário comportar-se menos como criaturas racionais e mais como ... – girou o pescoço - ... vermes; menos metafórico e um tanto li-te-ral. Vamos, o mistério nos chama!
Rastejaram por uma valeta por baixo da grade seguindo o mendigo.
Em uma área livre de obstáculos naturais, a luminosidade lunar colocava em nítido relevo uma fileira de tumbas e lápides arranjadas com precisão matemática: refulgências peroladas ferindo a escuridão como esculturas marmóreas.
— Aqui estamos cambadinha; contemplem!
Olharam para os lados, mas sonolentos que estavam, esmoreceram como fantoches estafados.
— Cansados pela andada, ou entediados pela mesmice marmórea? Porque não olham pra baixo?
O mendigo varreu uma massa de folhas com o pé; abaixo, a tampa de um caixão encarava os garotos com olhos de mofo e sorriso de sombra.
— Porque não batem na porta? As visitas são vocês...
Silêncio.
— Meio morto, meio medo, meio termo, cinco reais. Tomem o dinheiro e vamos embora... Que perda de tempo covardões!
Como que por impulso, um garoto acenou ao mendigo.
— A curiosidade apodreceu o gato hein? – colocou o dinheiro no bolso. – Então...
Arrastou a tampa de olhos fechados: suou, suou, suou...
— Então molecote?
Os garotos olharam o amigo de olhos vitrificados no caixão.
— V-você nos enganou, devolva nosso dinheiro. – gritou ao mendigo como se saído de um estupor - O caixão está vazio. N-não é justo!
— Cheiroso sim, mas nunca desonesto... Muito menos injusto! – berrou e bocejou. – Agora chega de papo e voltem pra casa, também estou com soninho.
Com estas palavras o mendigo agachou-se, deitou no caixão, e mais vivo que morto, foi dormir o sono dos justos.
FIM