O dia da volta
Sempre tive um gosto meio mórbido para tudo: cinema, literatura, música, até para mulheres, sempre preferi as meio góticas. Vai entender. Quando estava de serviço sempre gostei de ficar no posto mais alto, em cima da caixa d’Água, de lá podia ver grande parte da cidade, mas o que mais me chamava à atenção era ficar olhando o cemitério próximo a Vila Militar ficava pensando na frase de Romero:
“Quando no inferno não houver mais lugar, os mortos caminharão sobre a terra”
Sobre isso nunca tive dúvidas, algo dentro de mim fazia eu acreditar que era verdade. A minha única dúvida era se eu estaria aqui quando acontecesse ou se seria um deles. Acho que no fundo eu sempre esperei por aquele dia por isso ficava lá observando.
O expediente havia acabado, era pouco mais de 18h, estava sentando fumando um Marlboro quando vi o primeiro deles começar a remover a terra de sua sepultura de dentro para fora. Hoje consigo lembrar claramente daquele dia. Tenho quase certeza que no momento um pequeno sorriso brotou em meu rosto. Era estranho não se parecia nada com os filmes, eles se moviam como pessoas normais um pouco sujas, ou faltando um pedaço. Os primeiros a sair ajudavam os outros, parecia que algo de humano restava neles. Parecia.
Tudo mudou quando um Rabecão entrou no cemitério seguido por um cortejo de carros. Os “ex-mortos” começaram a atacar os humanos numa velocidade que nem parecia que a pouco mais de cinco minutos estavam mortos. Eles apenas atacavam e quando as vítimas caiam ao chão os ex-mortos já buscavam uma nova vítima. Não demorou muito para que todos houvessem sucumbido.
Levantei-me logo após o ultimo ex-morto cruzar os portões do cemitério e alcançar a rua. Então notei que algo era igual aos filmes, os humanos atacados começaram a levantar e andar em direção à rua. A infecção em breve não poderia ser controlada.
Corri até o meu alojamento de comandante da guarda, conferi se a pistola 9mm estava carregada, municiei um carregador sobressalente com 15 tiros, municiei meu fuzil 7,62mm e informei ao Oficial de dia o ocorrido. Como imaginei ele deu risada e não acreditou. Fiquei em condições, porém não abandonei minha guarda. Já passava de 21h quando a guarda do quartel informou que havia pessoas atacando pessoas na rua em frente ao quartel. Assim que soube, o Oficial acreditou no que eu havia dito e informou no rádio para eu descer com o restante da equipe. A ação estava começando, meu dedo já coçava no gatilho antes mesmo de sair da guarda.
O caos era maior do que eu imaginava. A infecção havia se proliferado rapidamente. Guarnecemos o portão principal e começamos a chamar as pessoas que ainda estavam em pé para dentro. Vários dos “ex-mortos” vieram em nossa direção. Apenas tive tempo de gritar:
“Mirem na cabeça, fogo à vontade!”
A operação durou cerca de meia hora, salvando sobreviventes e devolvendo “ex-mortos” ao reino das sombras. Num determinado momento avistei uma moça sendo atacada por três deles, não hesitei em pular para o lado de fora da segurança do portão e puxar o gatilho de minha pistola em um dos três “ex-mortos”. Grande foi minha surpresa quando o cão fez um estampido seco informando que não havia mais munição na câmara. Meu último disparo havia estourado os miolos de um ser que vestia um uniforme de padeiro ou algo do tipo. Agora sem munição minha única opção foi calar a baioneta no fuzil e partir para o combate corpo-a-corpo. O primeiro golpe atravessou a testa de um ex-motorista-de-rabecão, o segundo errei de uma mulher que um dia foi uma linda viúva. A garota ruiva que eu tentava salvar conseguiu se livrar do ex-garoto-com-camiseta-do-spiderman golpeando-o no rosto com uma bolsa. A garota ruiva correu para dentro do quartel enquanto a ex-viúva tentava me morder e o ex-garoto-com-camiseta-do-spiderman se levantava. Enterrei a baioneta e parte do cano do fuzil na nuca da ex-viúva quando senti uma dor no braço, a princípio achei que era o fim, que havia sido mordido. Logo notei que o movimento final da ex-viúva foi tentar me bater, porém apenas me arranhou de leve no braço esquerdo. Assim que arranquei o fuzil da sua nuca, me preparei para o combate com o ex-garoto-com-camiseta-do-spiderman, que avançou sem pensar em minha direção, então vi que o azar ainda estava comigo, a baioneta estava presa na nuca da ex-viúva. Virei-me e preparei para correr quando ouvi algo caindo atrás de mim. O ex-garoto-com-camiseta-do-spiderman jazia no chão da rua sem um pedaço da cabeça. Um dos soldados viu meu ato heróico e resolveu partir em meu auxílio acertando em cheio a testa do ex-garoto-com-camiseta-do-spiderman com um tiro de 7,62mm.
De volta ao quartel Raquel (a garota ruiva) contou que havia descido na estação de trem quando alguns malucos atacaram sua família. Ela foi a única sobrevivente.
Na contagem geral duas baixas militares, muitas baixas civis e 21 sobreviventes civis.
Ninguém conseguiu contato telefônico com ninguém de fora, o que nos prova que não foi um caso isolado. O Oficial conseguiu contato com outros quartéis via rádio, mas ninguém sabia o que estava acontecendo, a única coisa que sabíamos é que estes ex-mortos se multiplicam mais rápido que coelho no cio.
Fui eleito o segundo no comando pelo vasto conhecimento no assunto, se é que havia algo a ver com filmes e livros. A minha primeira ordem foi isolar os feridos por medo de contágio. Apenas um casal idoso havia sido mordido, o resto eram pernas, braços, ossos quebrados e muita dor de cabeça.
Como esperado algum tempo depois o casal de idosos viraram ex-vivos e logo em seguida ex-mortos, ainda conseguiram atacar dois soldados que estavam de guarda na enfermaria. Os quatro estavam foragidos dentro dos muros do quartel, o que era um perigo para todos os sobreviventes.
Alguns dias depois os dois soldados atacaram no canil levando com eles mais alguns sobreviventes. O senhor idoso foragido foi encontrado tentando entrar no alojamento e foi executado, a senhora sua esposa foi executada alguns dias depois próximo ao rancho. Os nossos maiores problemas eram os dois soldados com seus seguidores, que estavam em grupo de quinze e o crescente número de ex-mortos que começavam a chegar junto aos portões de nossa fortaleza.
Durante uma noite um de nossos soldados estava de guarda e confundiu o Oficial - que havia saído sabe lá Deus por que – com um ex-morto e o tornou um morto de verdade com um tiro na cabeça. Eu assumi o comando e como primeira medida juntei um grande grupo e entramos no mato dentro do quartel para caçar os dois soldados com seus seguidores. Conseguimos aniquilar com a ameaça de dentro, porém isso nos custou várias vidas. Ficamos em um total de 25 sobreviventes civis e militares. Aos poucos conseguimos restabelecer comunicação com outras fortalezas. Mais sobreviventes começaram a chegar e depois de passarem por um exame médico eram bem vindos à nossa sociedade.
Hoje cinco anos depois do que eu chamo de “O dia da volta” os sobreviventes aprenderam a viver em várias “fortalezas” espalhadas pelo mundo. É realidade que existem muito mais ex-mortos do que sobreviventes, e vivemos como se fossemos presidiários nessas fortalezas. Mas a vida continua, não existe mais criminalidade, desigualdade social, os sobreviventes aprenderam a viver numa sociedade onde um precisa do outro. Isso me lembra a frase: “Deus escreve certo por linhas tortas”.
Cientistas estão desenvolvendo um soro que pode reverter os efeitos da infecção e fazer as pessoas que foram infectadas por ex-mortos voltarem a ser como eram antes.
A minha dúvida foi respondida. Eu estava aqui, e posso dizer que se isto tudo fosse um filme de Romero, eu seria um dos personagens principais.
Hoje eu sou como um líder dentro de nossa fortaleza. Nunca imaginei que com apenas 27 anos poderia chegar a ser tão importante. Hoje sou casado, amo minha esposa Raquel (lembram dela?) e meu filho de 1 ano e meio Adão, escolhemos esse nome porque pelos registros ele foi o primeiro a nascer nesse novo mundo. Ele é um garoto muito forte para a idade dele, os médicos falaram que é uma anomalia genética que poderia ser um novo degrau na cadeia evolutiva.
Às vezes quando fico aqui em cima no posto mais alto, ainda observando o cemitério, sinto como se alguém visse pelos meus olhos, como se houvesse outro alguém dentro de mim. Espero que os cientistas não demorem, às vezes tenho pensamentos assassinos e a cicatriz no meu braço esquerdo não para de coçar.
Fortaleza Sudeste 2, BR, 15 de Janeiro de 2014.