Estrada sem volta
Noite densa em uma pequena estrada em algum lugar na América Central. Um rapaz caminha sob uma fina chuva de outono. Uma jaqueta, uma calça jeans que já perdera o tom azul, uma camiseta do AC/DC, um tênis All Star sujo no pé, um boné surrado na cabeça e uma mochila nas costas com seus únicos pertences.
Há algum tempo que não passam carros por ele. A estrada está deserta. Ele tem sono, mas não pode parar ali, em algum momento vai achar um hotelzinho onde passar a noite e descansar seus pés. Já faz algum tempo que deixou seu lar para trás e resolveu partir em direção ao infinito. Em alguns momentos relembra sua vida antes.
Morava numa pequena cidade no Rio Grande do Sul, a cidade não era tão pequena a ponto de todo mundo conhecer-se, mas também, não era grande de forma a que quisesse ficar lá até encontrar a clareira no fim da trilha. Seus pais tinham uma casa próxima à escola onde estudou quando novo. De certa forma pode dizer que levava uma vida perfeita, seus pais eram muito bem casados, tinha um irmão mais novo com quem brigava de vez em quando, mas que sabia que os dois se adoravam. Tinha uma namorada linda, embora ele mesmo não se achasse muito bonito, sempre se perguntava como conseguiu alguém como ela. Sofia era linda, corpo esbelto, curvas acentuadas, cabelos castanhos claro, quase loiros, lábios carnudos, lindos olhos verde-esmeralda. Ele a amava, mas achava que ela não queria muita coisa com ele não. Ele era assim mesmo, sua vida era perfeita demais para qualquer um menos para ele próprio. Não era aquilo que queria. Queria algo mais, só não sabia o que. Havia se mudado para essa cidade com sua família quando tinha 14 quase 15 anos. Quando se formou na escola com 17 anos resolveu que aquela vida não era para ele. Não prestou vestibular como os outros garotos de sua idade e ficava apenas em casa, bolando viagens pelo mundo. Seu pai sempre brigava com ele por não tentar fazer uma faculdade, nem se quer procurar um emprego. Ele não agüentava mais aquela vida. Perfeita demais para ele, não era o que queria, não havia nascido para aquilo.
O dia tão aguardado chegara seu aniversário de 18 anos, não pela festa, não pelos presentes, Pablo nunca ligara para essas coisas, pelo contrário, odiava reuniões de família de qualquer tipo. O aniversário era tão aguardado por que com ele vinha o melhor presente de todos, a maioridade. Um dia após seu aniversário pegou a mochila olhou nos olhos do pai e disse que iria botar o pé na estrada. O pai no começo não acreditou muito, mas viu que o garoto falava sério quando se despediu da mãe e do irmão. Ainda tentou com que o filho ficasse em casa, mas esse não queria saber de mais nada, já era maior tinha sua liberdade. Como falei sua vida era perfeita, mesmo assim o pai ainda lhe deu um dinheiro e disse para que fosse em companhia de Deus. Aquela foi a última vez que viu seus pais e seu irmão. Antes de sair da cidade despediu-se dos amigos que o chamaram de louco, de certo modo ele também achava isso. O pior foi despedir-se de Sofia, ela chorou muito, disse que o amava e que queria ir junto. Pablo olhou nos olhos dela e disse que também a amava por isso mesmo que não a levava junto. Era uma trilha sem destino que acabaria em lugar nenhum. E ele sabia disto desde o momento em que colocara o pé na estrada, mas algo dizia a ele que não, que sabia desde o momento em que começou a usar o cérebro como uma pessoa.
A estrada escura revela ao longe uma luz de neon. Aproximando-se Pablo nota a silueta de um motel de estrada, enfim um lugar para passar a noite. O atendente o olha com um ar de curioso. Pablo não gosta muito daquilo. Por morar grande parte da sua vida na fronteira com a Argentina fala um espanhol fluente e não tem problemas em se comunicar.
- O que foi? Nunca viu ninguém como eu por aqui? – perguntou o rapaz-
- Pra falar a verdade nunca vi ninguém por aqui nesse horário. – respondeu o atendente-
- Só quero um quarto para passar a noite e pela manhã boto o pé na estrada novamente.
- O quarto custa 50 pesos a noite. Adiantados.
- Sem problema.
O rapaz tira o dinheiro da mochila paga o balconista e pega a chave do quarto.
- Antes de eu ir me responda uma coisa.
- Sim
- Qual a distância da cidade mais próxima?
O balconista solta uma gargalhada e responde:
- 30 quilômetros adiante, você tem muito que andar ainda.
O rapaz parte em direção ao quarto só quer um banho quente e uma boa noite de sono. Tira da mochila uma camisa nova que comprou na última cidade por onde passou e um par de meias. Aproveita para lavar algumas roupas na pia do banheiro. Toma um gostoso banho. Massageia os pés e vai dormir.
No sonho Sofia vem lhe trazer lembranças. O único arrependimento dele até hoje foi deixá-la. E por isso ela sempre vem assombrar seus sonhos. É o anjo dos seus pesadelos. Às vezes ele ainda pensa como seria se voltasse, ou quem sabe se não tivesse nem partido.
Acorda com o sol em seu rosto.
Entrega a chave ao balconista e pergunta se não há mais ninguém nos quartos e também onde pode comer alguma coisa. O homem lhe diz que o único lugar onde arranjar comida por ali é nas máquinas que ficam próximo ao estacionamento e diz também que havia outro rapaz que partiu mais cedo. Pablo vai até as máquinas e compra uma coca-cola e um “Fandangos”, pensa como e impressionante que essas porcarias existem em todo mundo. Já faz uns dois dias que não come uma comida de verdade.
Caminha durante quase toda manhã. Nota que o sol está chegando próximo ao seu ponto mais elevado, olha para o relógio e vê as horas: 11h28min da manhã. É hora de descansar. Sai da estrada até encontrar algumas árvores frutíferas. Tem um farto almoço de frutas. Usa sua mochila como travesseiro e deita um pouco para descansar sob as árvores. Acordou por volta de duas horas da tarde. Colocou algumas frutas em sua mochila e colocou novamente os pés na estrada.
O sol escondia-se no horizonte e a lua já despontava magnífica no céu quando chegou à pequena cidade chamada Santa Lorena. A cidade era igual a tantas outras que já havia visto em suas andanças. As ruas de paralelepípedos com grande parte delas de terra batida mesmo. Uma pequena praça central onde ficava a igreja e algumas lojinhas de comércio em volta. Mais ao longe se avistava uma casa maior no alto de um pequeno morro onde achou que devia funcionar a escola. Mais uma cidade que talvez devesse sobrar se o mundo acabasse em uma grande guerra. Não encontrou nenhuma pousada ou algo do tipo, mas indagando aqui e ali descobriu que o padre tinha um quartinho atrás da igreja que poderia emprestar para que passasse a noite.
Foi conversar com o padre que caridosamente lhe emprestou o quarto e lhe ofereceu um farto jantar.
Estava meio sem sono e ficou deitado voando por lembranças de outros lugares, outros povoados e as milhares de pessoas que conhecera em seu caminho sem destino.
Há alguns anos atrás quando ainda estava em seu país natal, costumava passar alguns dias nas cidades às vezes até meses quando gostava do lugar, hoje isso era mais raro. Fazia três semanas que estava naquela cidade ao sul do grande estado do Pará, quando o gado começou a morrer de maneira estranha. Todo o sangue era drenado de dentro do animal que morria seco. Vários veterinários avaliaram os animais e nenhum conseguia dizer que doença ou peste era aquela, até o dia em que acharam dois furinhos em um dos animais. Foi então que as estórias fantásticas começaram a surgir. Alguns acreditavam que era um vampiro que não queria ferir humanos e até preferiam que fosse assim, estavam até dispostos a sacrificar alguns animais para não serem atacados. Os mais religiosos diziam que era alguma praga divina enviada para alerta-lhes de que o mundo estava acabando, e acreditem se quiserem cada dia surgiam mais pessoas que acreditavam nisso. Outros ainda acreditavam ser uma doença. Bom, idéias é o que não faltava. Certa noite um dos fazendeiros acordou para ir ao banheiro e ouviu um mugido de dor de um boi catou sua espingarda e saiu de casa. Quando chegou ao local só teve tempo de ver seu animal morto e um estranho vulto peludo correr sobre quatro patas para dentro do bosque. No outro dia pela manhã vários fazendeiros e mais o chefe de polícia se juntaram e entraram no bosque armados atrás do tal vulto. Pablo, como havia sido muito bem acolhido naquela pequena cidade, foi junto ajudar. Acharam uma trilha próximo ao local onde o fazendeiro vira o vulto entrar no mato, seguindo a trilha encontraram pegadas de um animal de quatro patas, pegadas semelhantes às de cachorro, porém maiores. Seguiram as pegadas até uma caverna. O chefe de polícia definiu que montariam tocaia ali fora e esperariam o ser sair de lá, pois lá dentro no escuro eles seriam mais vulneráveis fosse o vulto o que fosse. Aguardaram até noite alta quando ouviram barulhos vindos da caverna, eram passos, unhas batendo contra o chão. Prepararam as armas assim que o vulto saiu da caverna e tentou atacar foi fuzilado. Os veterinários avaliaram o animal e chegaram à conclusão de que não passava de um cachorro-do-mato. No final até foi engraçado.
Mas não fique pensando que Pablo só fez coisas boas nessa vida, existiram coisas ruins também.
Certa vez quando passava pelo Equador conheceu um moço chamado Juan que lhe deu abrigo e alimento. Juan era muito amigo de Miró e os dois costumavam freqüentar o bar onde Pablo parou para descansar. Fizeram amizade e Pablo foi convidado para passar alguns dias num quartinho que havia nos fundos da casa onde Juan morava com a esposa e os dois filhos. Depois de dois meses Juan e Miró vieram lhe procurar em segredo para convidar para o que estavam tramando. Os dois estavam com problemas com traficantes que haviam lhe emprestado dinheiro para as plantações que não deram certo, os traficantes ameaçavam suas famílias. O plano dos dois era assaltar o banco onde os traficantes guardavam seu dinheiro, roubariam meio milhão para pagar os traficantes com seu próprio dinheiro e ainda sobraria o bastante para fugirem dali com suas esposas e filhos e dar um pouco para o forasteiro. Era um crime sem vítimas já que as únicas vítimas seriam os verdadeiros criminosos. No dia do roubo tudo ocorreu como havia sido planejado. O dinheiro estava em um lugar seguro onde só Juan sabia. Juan e Miró haviam marcado a data para pagar os traficantes e já haviam marcado a data para sumirem com suas famílias. Só esperariam a poeira sobre o roubo baixar um pouco. Porém o pior aconteceu algumas semanas depois Juan e Miró foram encontrados mortos em um beco próximo ao bar que freqüentavam. Muitos desconfiavam de que eles haviam roubado o banco e de que os traficantes haviam se vingado, mas nunca mais se ouviu falar daquilo e nunca mais se viu o dinheiro. Alguns dias depois do ocorrido Pablo resolveu voltar à estrada.
Pela manhã o padre lhe ofereceu um gostoso e farto desjejum. Algumas frutas para que levasse em sua caminhada e colocou em seu pescoço um crucifixo para lhe dar proteção. Pablo partiu. Novamente parou por volta de meio-dia e descansou. Acordou por volta de duas horas da tarde comeu uma maçã que o padre havia lhe dado e seguiu. Era quase uma da manhã e nem sinal de um hotel ou algo do tipo na estrada para descansar, via-se em seu rosto que estava exausto. Sua mochila estava pesada, deveria haver ainda uns quatrocentos e cinqüenta mil nela. Eu poderia ajudar a carregar, mas acho que ele não gostaria de saber que estou seguindo ele. Mesmo eu sendo seu irmão mais novo.