A Força dos Pequenos*

Palmeira Santa não chegava a ser uma cidade, era apenas um ponto entre Arapira e Salgueiro, no árido sertão pernambucano. Não podendo contudo ser chamada de ponto perdido, pois Palmeira Santa tinha dono: Juvêncio de Oliveira, ou melhor o Coronel Juvêncio.

O coronel não era o dono de toda terra, mas era o dono da água, o açude ficava em suas terras, assim como os três poços financiados pelo governo. A força de Juvêncio estava marcada pela sede e garantida pelos jagunços. O coronelismo histórico era vida e fato para Palmeira Santa, quem não trabalhava no engenho do coronel o servia na plantação. Desafetos não existiam, afastados pela truculência do Coronel e pelos jagunços chefiados pelo capataz Terêncio.

Ninguém tinha certeza de quando aquele homem surgiu, veio com o vento seco da caatinga, vestia as sobras de uma túnica marrom amarrada pela cintura com corda de couro, cabelos brancos e desgrenhados, em suas mãos um cajado e uma cabaça, postou-se no largo da capela de frei Antão, largou suas alpercatas junto ao cruzeiro e descalço começou a pregar.

Como souberam seu nome foi uma incógnita, mas o povo o chamava de mestre Soriano, gritava sobre um levante, uma revolta dos pequenos, ele estava ali para anunciar que os pequenos se reuniriam, não haveria mais plantação nem engenho, pois quando os pequenos se reuniam não podia pará-los.

– Todos qui tão mi ovindo vão sabê, num vai tê mais nada depois, eu vim pra dizê... num vai tê engenho nem coroné. Vai caba tudo, uns pequeno si uni e são mais forti que jagunço.

Não tardou e um grupo começou a juntar-se em roda, o rosto do nordestino é marcado pela seca e fome, contudo ao ouvir as palavras de Soriano um brilho ameno se injetava nos olhos.

Ninguém buscava agradar mais ao Coronel Juvêncio do que Severino e ao perceber a aglomeração desandou a relatar-lhe o ocorrido. Encontrou o Coronel já aborrecido, não que houvesse algo, era apenas o humor constante do coronel. Severino tirou o chapéu de couro e com olhos baixos ficou aguardando o coronel dirigir-lhe a palavra.

– Qui tu qué Bil?

Severino desembestou a falar sobre o que Soriano dizia: Os pequenos se unirem e não sobrar plantação nem engenho, sobre as pessoas se ajuntando para ouvi-lo e os murmúrios de aprovação.

Juvêncio ouviu sem se alterar, quando Severino encerrou disse apenas:

– Ce feiz bem Bil. Vai chamá o Terêncio, manda ele juntá u Raimundo i u Tião. Eu vô lá amostrá quem vai cabá cuá prantação.

Momentos depois o coronel chegava ao largo da cidade, acompanhado por três jagunços de confiança e Severino que exibia um sorrio desdentado de servo obediente. Padre Quécio observava tudo a porta da igreja e correu a falar com o Coronel – A Igreja não tem ligação com isto Coronel, não sei de onde veio este romeiro. O Coronel interrompeu-o com um gesto e o padre resignou-se a seguí-lo enquanto se aproximava do pregador.

Juvêncio não chegou a ouvir as palavras de Soriano, apenas abriu caminho entre a multidão que se encolhia abaixando a cabeça, isto não pertubou o romeiro, este parecia não perceber as pessoas ao seu redor, fosse uma platéia de pedras ele falaria do mesmo modo. O coronel golpeou Soriano, dois dentes apodrecidos caíram de sua boca, mas este impassível continuou a gritar que os pequenos estavam se reunindo e nada mais podia pará-los. O Padre Quécio, percebendo a fúria do coronel afastou-se buscando refúgio na sacristia. Ainda pode ouvir o coronel chamar o capataz, Terêncio aproximou-se de Soriano, cuspiu fumo e empurrou Soriano jogando-o ao chão.

– Tu vai guincha qui nem porco – em seguida deslizou uma peixeira pela garganta de Soriano, este contudo não proferiu um gemido qualquer, apenas desabou como um saco vazio.

Juvêncio voltou-se para a multidão calada e segurando seu chapéu com ambas as mãos começou a discussar sobre o mal que aquele homem era, que deviam todos se acalmar que tudo ficaria bem, nem o coronel, nem nenhum dos jagunços percebeu que Soriano se erguia até que este começou novamente a gritar.

– Os piqueno tão cumigo, cêis vão vê sua força agora.

Terêncio foi o primeiro. Da boca do Soriano, de seu nariz e mesmo da chaga recém aberta em sua garganta saiam em profusão pequenos... diminutos insetos, não eram maiores do que mosquitos, mas tinham a aparência de vespas e voracidade de gafanhotos. Investiram sobre o jagunço tomando seu corpo como uma mão demoníaca, este gritou apenas por um momento enquanto as diminutas criaturas picavam e devoravam sua pele, depositando e fecundando ovos numa velocidade profana.

As pessoas gritavam, Bil correu para a igreja, mas foi alcançado por um grupo dos insetos que vinham da cabaça de soriano, largada ao pé do cruzeiro junto as alpercatas, outra nuvem veio da caatinga, as pessoas tombavam e urravam de dor, Juvêncio descontrolado sacou sua arma e disparou contra a nuvem apenas atingindo o vazio. Ainda tentou correr, mas os insetos que vinham da caatinga tomavam a cidade por todos os lados, não proferiu um gemido sequer.

Passaram dois anos, dois funcionários do IBGE percorriam o caminho de Salgueiro para Arapira, quando um deles olhando uma prancheta comentou:

– Devia ter um povoado por aqui, acho que foi mais um tomado pela seca. Ainda tiveram a bondade de dar carona a um romeiro, cabelos brancos, vestindo o resto de uma túnica marrom levando apenas um cajado e uma cabaça.

*Este conto é uma adaptação de uma HQ de Flavio Colin.