As Sombras do Lado Errado - Um conto de Lobisomem, os Destituídos
A cidade encontra-se em silêncio quase absoluto, a madrugada está profunda e aos olhos dos seres humanos pouca coisa ocorre de notável. Só que na verdade o mundo está mergulhado em um caos selvagem, onde feras ancestrais caçam entre os muros de concreto e sob lâmpadas de mercúrio que emprestam um tom amarelado aos dentes dispostos a dilacerar suas vítimas. Os humanos não conseguem notar esse caos com seus sentidos simplórios, só que eu não estou limitado a apenas um punhado de informações, eu tenho toda uma ampla gama de sensações para me informar sobre as coisas que existem no mundo, eu sou um lobisomem.
Um zumbido metálico chega aos meus ouvidos de forma tênue junto com um buquê de odores que vão de amônia, passando por lavanda e carmim e chegando a um toque distante de oxidação. O ruído mecânico não existe de verdade, ele é um eco surdo do que acontece entre duas realidades interligadas. Ele é a ressonância que vibra em harmonia com o pequeno bastão metálico que existe tanto no mundo da carne quanto no mundo dos espíritos. Esse som estranho é o que me indica onde está o coração do portal entre essas duas existências.
Vou em direção ao ruído com todo o cuidado que posso ter. Eu farejo o ambiente ao meu redor em busca de outros cheiros que possam confirmar as minhas suspeitas. Não demora muito e os encontro. Eu estava certo. Seja lá o que tenha levado tanto o pai quanto o garoto, foi em direção ao lócus e os cheiros que eu havia sentido próximo da quadra de esportes não mentiriam, a coisa pertencia ao outro lado da realidade.
Eu e minha alcatéia guardamos essa área há muito tempo, mas nunca soubemos da existência desse lugar até então, talvez estejamos cuidando de um pedaço de terra maior do que realmente conseguimos manter. Enquanto me aproximo, aguço ainda mais meu olfato e não percebo outros cheiros que mostrem problemas. Eu observo o espaço com meus olhos físicos e aos poucos procuro entender e entrar em ressonância com o meu lado espiritual, consigo enxergar através do dromo que separa os dois mundos. Não há nada lá. Isso é estranho, pensei que iria encontrar os guardiões desse locus.
Então me concentro ainda mais, aproveito que meus olhos já estão em concordância com o outro lado do espectro do mundo e busco também entrar por completo na mesma conformidade metafísica. Eu sinto meu corpo de carne tornar-se etéreo, eu suponho que meu lado espiritual torne-se físico para acomodar minha nova realidade e como se mergulhasse em águas geladas e inexistentes, eu surjo por completo no mundo das sombras, o lugar onde minha raça chama de hisil. Ao emergir nessas Sombras os símbolos que demonstram quem eu sou brilham prateados como medalhas agraciadas por minha mãe, Amahan Iduth, a Lua.
Não perco tempo em admirar minhas marcas espirituais e procuro me esconder o mais rápido possível. Não quero que a presa que caço descubra que estou próximo a ela, não antes do ataque.
Paro mais uma vez e procuro novamente pelos odores exalados por minha presa. Não demora muito e os encontro, ela não se deu ao trabalho de se esconder, isso está parecendo fácil demais. Então continuo meu caminho através do reflexo do mundo. A selva espiritual deseja me devorar, eu sei disso. Aqui eu sou mais presa do que predador. Entretanto mesmo assim sou guiado por minhas obrigações e continuo indo de encontro ao meu alvo.
Após vários metros dentro da Sombra escuto, de súbito, um grito grave e sofrido. Poucos instantes depois, um outro grito chega a mim, mas dessa vez é mais agudo, contudo o sofrimento é tão intenso quanto o primeiro. Certamente são o pai e o filho sequestrados.
Avanço mais e então paro por detrás de pequenas paredes de tijolos repletas de limo, a cena que eu vejo me é inquietante. Dentro da área formada pelas paredes, algo como se fosse uma casa em construção, um imenso monstro se inclina sobre os dois humanos que procuro. O sangue de ambos ensopa a terra abaixo deles. O espírito é quase branco fantasmagórico, grande, com braços longos e dedos finos, sua pele repuxada aparenta ser resistente. Algumas placas de couro reforçam a idéia de dureza. Há também uma enorme boca, repleta de dentes maciços como pedras, que permanece escancarada, assustadora, mas a coisa não se alimenta dos dois caídos, ele apenas os corta sistematicamente. Pequenos espíritos, fragmentos de sentimentos, se formam com a dor e o sofrimento daqueles dois. Eu não entendo, mas parece que o espírito maior está estudando a ambos.
Antes de atacá-lo observo atentamente seus movimentos enquanto pacientemente tortura suas vítimas. Aquilo me deixa nervoso, é contra a natureza de meu povo torturar sua caça, está contido no juramento que fizemos à Mãe que nós devemos caçar sim, mas também devemos respeitar nossas presas. Eu até gostaria de estudar mais tempo o que esse monstro está fazendo, para tentar entender as razões alienígenas que o levaram a esse ponto, mas ver a cena me deixa nervoso, eu sinto os meus demônios interiores uivarem com fúria. Eles tentam me compelir a atacar. Contudo eu me controlo e observo, fascinado com o conhecimento. A conclusão que eu chego depois de alguns minutos é que o espírito estuda uma maneira de tornar-se Duguthim, ele pretende aprender como entrar em ressonância com um corpo humano para poder cavalgá-lo e controlá-lo no mundo da carne. Não posso mais permitir que essa blasfêmia prossiga.
De um lance eu pulo já em transformação, meu corpo cresce, os músculos poderosos de minha raça se tornam ainda mais vigorosos e eu ataco com brutalidade, pegando o monstro de surpresa. De tão atento à sua pesquisa profana ele não se deu ao luxo de vigiar sua área e ignorou os guardiões do mundo. Acerto o que seria o pescoço da besta em um ataque calculado. A fera urra de dor. Minhas mordidas entram cada vez mais em sua carne fictícia, mas eu não consigo abate-la tão rapidamente quanto imaginei. O espírito me golpeia com força, revidando meu ataque com um poder sobre-humano. Sou arremessado contra uma das paredes, certamente quebro alguns de meus ossos, mas não será isso que me fará desistir. Ponho-me de pé prontamente e o ataco novamente, nos engalfinhamos como animais. Em uma luta frenética nos digladiamos com selvageria. Minha mandíbula se fecha com fúria sobre aquela pele grossa. Seus dedos finos rasgam minha carne, expondo vísceras, ossos, músculos, a dor é incômoda, mas minhas obrigações são mais importantes. Como inimigos ancestrais nós lutamos, e como lobisomem eu venço. À pancada final seu corpo efêmero explode em milhares de pedaços de sua carne espectral, aquilo me cega. Eu uivo forte e comemoro minha vitória! Mesmo assim eu sei que perdi muito sangue durante a batalha e as feridas que o espírito esculpiu em meu corpo demorarão a cicatrizar.
Viro a cabeça para o lado e vejo o pai e o filho. Em seus olhos está estampado o pavor e a loucura de ver o mundo das sombras e de ver um Filho de Luna lutar com toda a sua glória. Não há nada que eu possa fazer por eles. Mordo seus pescoços e termino seus sofrimentos de maneira rápida.
Eu concentro minhas forças para amenizar a dor que sinto e quando meus sentidos se tornam mais claros, percebo com angústia que antes do espírito branco outros cheiros e outros tipos de sangue estiveram naquele mesmo local em vários momentos anteriores. Suas impressões espirituais ficaram marcadas nos muros e no chão. Ao longe escuto os grunhidos ferozes de espíritos mais fortes que odeiam meu povo. Não posso enfrentá-los sozinho.
Corro em direção ao locus, preciso voltar com urgência para o mundo físico e conversar com o alfa de minha alcatéia. Preciso informá-lo que o monstro estava estudando como se esconder de nós no mundo físico e que outros antes dele também o fizeram. Deve haver alguns espíritos escondidos no mundo da carne.
É hora de caçar.