Presa Fácil
Escolho a dedo, um rosto simplesmente lindo, e uma boca que desejo demais, troco alguns e-mails, sempre de forma descompromissada, sempre sondando lentamente, leva quase 10 meses, mas descubro tudo o que me importa: lugares que freqüenta, nome de amigos e até algumas incertezas próprias da idade. Será fácil agora.
Aguardo ansioso o fim-de-semana, a sexta-feira me encontra conferindo minha bagagem, duas facas de cerâmica, Rohypnol no frasco de colírio, formol no de adoçante, roupas e luvas cirúrgicas. Espero o dia atingir às nove horas e ligo para minha secretária dizendo que não me sinto bem, até brinco que eu devia tê-la escutado no happy hour de quinta e ter sido moderado, ela gargalha e deseja-me melhora e um bom final de semana, pergunta se desejo desmarcar o churrasco de domingo, mas digo que até lá estarei ótimo e desejo conhecer os filhos dela. Sempre busco ser um patrão adorável.
Embarco no vôo das 11:00hs, decolamos com um desagradável atraso de 45 minutos, mas como previsto chego no aeroporto de Confins em pouco mais de uma hora, o pior momento para mim é o desembarcar no aeroporto, um medo insano das minhas facas serem percebidas pelos seguranças ou de terem descoberto a falsidade dos meus documentos.
Nada transcorre, vou ao balcão de informações e pergunto por locadora de veiculo, uma atendente loira de sorriso indelével me indica três. Agradeço-lhe e me afasto, tendo a certeza que ela sequer percebeu minha existência enquanto falava.
Na segunda loja encontro o que busco, um Focus preto, vidros com insufilme. Dirijo sem destino apenas me acostumando com o carro, almoço em um bar qualquer, daqueles sem nome e sem higiene, mas também sem memória, mesmo que o dono do local me reencontrasse pessoalmente jamais poderia afirmar ter-me visto antes.
Afasto-me da cidade e encontro um lugar ótimo, suficientemente ermo sem ser demasiado afastado. Adormeço dentro do carro e acordo com o cair da noite, troco de roupa, substituo o “TênisJeansCamisaPolo” pelo coturno e sobretudo, coloco óculos escuros e acelerado dirijo-me ao “360º”.
Encontro a casa em plena, mas tranqüila festa, góticos apesar da negritude das roupas, são dóceis e apreciam o macabro apenas em estética e literatura.
Vasculho o local com os olhos, encontro-a e meu coração dispara, ela é mais bela e doce do que as fotos mostravam, aproximo-me e jogo a isca, após meses sei tudo o que falar, da ultima edição do “The end” às Flores do mal de Augusto dos Anjos. Uso frases estudadas e planejadas durante meses buscando tocar seu intimo a todo momento.
As horas que rastejaram durante o dia agora possuem asas e voam velozmente. Olho para baixo encarando os pés dela e com uma timidez fingida e elaborada convido-a para procurar outro lugar. O rosto dela se ilumina ao aceitar.
Pago nossas contas, busco o carro e enquanto ela se aproxima eu saio do carro e como um cavalheiro antigo, abro-lhe a porta, ela entra sem receio, murmura algo através do vidro e eu sem entender nem me importar retribuo com um sorriso.
Chegou ao local onde passei a tarde, desço saltando do carro e abro a porta do passageiro e estendo-lhe a mão, ela desce graciosa, olha para a noite e suspira profundamente, certo de sua distração eu saco uma das facas do sobretudo e invisto contra ela.
Nem a vejo se mover, num momento ela estava a dois passos de mim, olhando para o céu noturno, no outro ele segura meu braço, com a mão livre tento socar-lhe, mas ela crava seus dedos em meu braço, o sangue escorre lento enquanto a dor me derruba, minha faca perde-se no chão.
– Fica quieto, no chão – diz ela sem se alterar.
Minha mão esquerda tateia o bolso do sobretudo buscando minha outra faca, assim que a encontro sinto algo explodindo em minhas costelas, a dor não deixa dúvida de que alguma coisa se partiu.
– Eu não mandei ficar quieto? Ela pergunta enquanto tateia meu bolso, encontra a faca e com os olhos injetados de fúria a usa como estaca em minha mão. Eu tento gritar, mas ela me impede com facilidade apenas segurando meu queixo.
– Você demorou muito, mas eu tinha certeza que vinha, você é presa fácil.
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Quatro dias depois o noticiário mostrava que o empresário Carlos de Almeida Diniz, desaparecido há alguns dias foi localizado morto, atacado por algum animal que devorou grande parte de seu corpo. Um jornal sensacionalista ainda contava que Carlos estivera em uma casa noturna na data em que a policia atribuía sua morte; passara horas olhando para o vazio, conversando sozinho, outro revivia a estória do chupa-cabras, atribuindo a este o ataque. Ninguém da policia divulgou e sequer se questionou do porque o empresário estar portando documentos falsos.
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Sophie suspirou e desligou a TV, estava saciada por enquanto, ligou o computador e foi publicar um novo conto, tecendo uma teia de palavras, buscando atrair outra presa fácil.
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Para quem não conhece, esta é Sophie: http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=14884