Encantador de espíritos

Sempre sozinho, isolado, incompreendido e ridicularizado pela sua aparência e hábitos considerados excêntricos. Apesar de simpático, estava sempre só. Até o pai, com quem vivia, não o perdoava, criticava-o bastante por não sair por aí à noite, namorando, participando de farras. Encontrava alento apenas na música. Em um mundo dominado por um ritmo musical que é a mistura dos sons extraídos da guitarra e da sanfona, com músicas sem letras ou que possuem forte apelo sexual, Gabriel sentia alento no violino, às vezes, tarde da noite, em seu quarto, as lágrimas se mesclavam com o som do instrumento musical, cujas melodias eram sempre tristes, melancólicas. Lamentava estar sempre só, ser considerado estranho. Alto, magro, pele muito branca e cabelos negros e encaracolados. As maçãs salientes do seu rosto ossudo não o tornavam um grande atrativo para as meninas.

O violino de madeira de cor marrom envernizado era o seu melhor amigo, tocava para si mesmo, pelo menos era o que pensava. A noite estava agradável, sentado em um pequeno banco de madeira, com um livro de notas musicais aberto à sua frente, extraia algumas melodias. Com o instrumento apoiado no ombro esquerdo mantinha os olhos fechados. De repente não se sentia mais só, parecia estar sendo observado. Abriu os olhos, jurou ter visto alguém à sua esquerda encostado à parede. Não havia como alguma pessoa ter entrado ali, a porta e as janelas estavam fechadas.

Parou de tocar e olhou fixamente na direção de onde jurava que estava o vulto, virou a cabeça para os dois lados, vistoriou o ambiente. Não havia mais ninguém. Parou. Respirou fundo. Continuou. Mais uma vez sentiu algo estranho. Interrompeu-se. “O que é isso?”, pensou. Tomou coragem. Naquela noite estava só em casa, seu pai tinha um “compromisso”. Sabia que ele estava com mulheres bem mais jovens. Voltou a tocar, e aí, vagarosamente, estranhos começaram a surgir, por todos os cantos, muitos. Alguns simplesmente apareciam, outros emergiam das paredes e porta fechada. Mesmo ante o absurdo, não parava de tocar, estava em choque, olhava para todos os lados, via mais pessoas surgindo.

Possuíam aparência e roupas distintas, homens de terno e gravata negros, mulheres com garbosos vestidos brancos com rendas e bordados, senhoras com vestidos floridos, homens com camisas brancas e simples calças de linho cinza, crianças com terninhos negros, idosos, idosas, adolescentes, jovens. Todos com expressão de sofrimento nas faces amargas e olhos sem vida.

Independente do que vestiam, ou da aparência, aqueles seres não estavam mais vivos, disso Gabriel tinha certeza. Estava quase em uma crise de nervos. As notas começavam a destoar.

- Quem são vocês? O que querem? – perguntou.

Não houve resposta verbal. Uma senhora com um longo vestido branco que não lhe permitia ver os pés apenas ergueu o braço direito todo coberto e com o dedo indicador de mão muito alva apontou para o violino.

- Quer que eu toque?

Entendeu o silêncio como um sim. Parou por alguns segundos, rodeado de almas penadas. “A minha música está trazendo conforto para estas pessoas que não deveriam estar mais aqui”, pensou. “Por que não? São a minha plateia, o meu público”, concluiu.

- Se querem que eu toque então eu toco – disse simplesmente, como se falasse com uma plateia comum em um concerto de música clássica.

Tocou e todos ficaram ali parados a escutá-lo. As feições de todos modificaram-se levemente, passando a expressar paz. Gabriel estava feliz, tinha um público que parecia apreciar a sua música triste. “Será que isso acalma essas almas penadas?”, tornou a meditar. Sentia-se muito bem, não estava mais só. Tocou até perto do amanhecer, com o cansaço maior do que a vontade, teve de parar.

- Obrigado por me ouvirem, mas é hora de vocês irem.

Começaram a desaparecer tão repentinamente como haviam surgido, uma a uma aquelas dezenas de pessoas mortas iam para o desconhecido. Eram muitos. Ao final daquele dia repetiu o mesmo ritual, e mais uma vez os espíritos vieram. Atenderem o seu chamado. Pensou que mais pessoas deveriam ver aquilo. Havia descoberto pessoas que apreciavam a sua música. Então decidiu estender o show para que mais gente pudesse apreciá-lo.

Já era tarde, 23h00. Vestiu uma calça social negra e calçou seu melhor par sapatos sociais pretos. Vestiu uma camisa branca com rendas e babados nos punhos e na gola. Envergou um grande sobretudo negro, no melhor estilo gótico, e foi até a praça central da pequena cidade. Estava deserta, como o esperado de uma quarta-feira, mas sabia que as cinco pessoas que mais detestava nesse mundo passariam por lá. Tinha certeza, sempre andavam em bando e para eles não importava o dia da semana, sempre era dia festa e bebedeira. Já o tinham humilhado antes. Na ocasião ninguém fez nada, mas desta vez não estaria só. Sentou-se em um dos bancos de concreto da bela praça com canteiros de grama e árvores nativas, e começou a tocar.

- Não apareçam ainda – sussurrou para os espíritos.

Dentro de instantes os cinco jovens: Castro, Felipe, Cláudio, Fabio e Fagundes se aproximaram velozmente de carro. Jovens privilegiados, de famílias abastadas, vinham de uma farrinha na casa de outros amigos de costumes semelhantes. Todos estavam aparentemente alcoolizados, uns mais, outros menos. Pararam o veículo ao ver Gabriel e não pensaram duas vezes, foram até ele.

- O que faz aqui, idiota? – perguntou Castro com uma voz arrastada. Um cheiro insuportável de cerveja o acompanhava.

- Por que não pergunta aos meus amigos? – respondeu Gabriel sem se dignar a olhá-lo.

Por um instante havia parado de tocar, mas recomeçou quando respondeu a pergunta do inquisidor. Os cinco não entenderam. Ele estava só, se entreolharam demonstrando incompreensão na face.

- Está louco? – indagou grosseiramente Felipe, conhecido por tentar resolver tudo na base da pancada – Não tem ninguém com você!

- Olhe em volta – respondeu Gabriel sem erguer a cabeça e agora de olhos fechados.

Quando franziram o cenho e olharam ao redor perceberam-se cercados por dezenas e dezenas de pessoas que nunca viram na vida, face e olhos sem vida. Não havia espaço para correr. O sangue congelou nas veias de todos.

- O que é isso?! - Gritou Felipe.

- Amigos, eles estão me incomodando – comentou Gabriel com um aspecto sínico e um leve sorriso no canto direito da boca, sempre a tocar.

As almas viraram-se para os cinco e caminharam lentamente, fechando-os, deixando-os sem saída. Naquele momento se tornaram seres materiais, como se tivessem voltado a possuir carne e osso. Começaram a passar as mãos pelos jovens baderneiros, barrando a sua tentativa de fuga, arranhando-os e arrancando as suas roupas, sem, contudo, usar de força que pudesse resultar em morte.

Os gritos dos amigos pode ser ouvido a quilômetros, em meio a empurrões e tropeções finalmente conseguiram romper o cerco e correr em direção ao carro que saiu rasgando asfalto.

- Parece que eles não vão incomodar outras pessoas por muito tempo.

E quando contarem aos outros amanhã, creio que ninguém acreditará, estavam bêbados. Obrigado, amigos. Lá em casa continuo a tocar para vocês.

Gabriel parou com as tristes melodias, guardou o violino em sua caixa, tirou o sobretudo pendurando-o no braço esquerdo, e seguiu de volta para casa, onde recomeçaria e seguiria tocando até o amanhecer. Agora tinha amigos para ouvi-lo.

FIM.