O MISTÉRIO DO VELHO CASTELO - PARTE 14
Seguiu até a porta da sala, sentou-se nos degraus da escada, e resolveu esperar por Ricardo ali mesmo, nem que fosse a noite inteira. Apoiando as mãos na cabeça e no joelho, sentiu falta da casa dos Monteiros, e perguntou a si mesmo como eles estariam se virando lá. Será que não seria melhor se dormisse na casa dos seus patrões? Assim ele poderia ajudar Ricardo durante o dia no que ele precisasse, e a noite faria uma janta e dormiria nos Monteiros. Então ele se lembrou, que quanto mais rápido terminasse o serviço, mais rápido ele estaria em casa novamente. Era melhor que fosse desse jeito.
Os grilos cricrilavam nas moitas, e hora ou outra era possível escutar o barulho de uma coruja, não muito distante dali. Armand suspirou e olhou no relógio. Eram quase 22h e Ricardo não aparecera. Ele já estava ficando preocupado, quando viu luzes de uma carruagem surgirem ao longe no final da praça. Ergueu a cabeça para poder enxergar melhor, e notou que o menino que ele havia enxotado, estava parado no canto da rua, de costas para ele. A carruagem estacionou e o menino subiu, não dentro da cabine, mas na frente, junto ao cocheiro.
Armand ficou olhando a carruagem se aproximar, quando se súbito, ela parou em frente ao casarão. De dentro dela, Ricardo desceu rindo e agradecendo ao cocheiro.
-Não quer entrar?
-Já está tarde Sr. Ricardo. Vou-me indo embora. Tenho que colocar meu filho na cama ainda. -Disse olhando em direção ao garoto
Armand não pode deixar de intervir.
-Desculpe-me, ele é seu filho?
-Sim, é sim. O nome dele é João, igual ao pai.
-Peço desculpas. Ele estava a pouco aqui em frente e eu o expulsei. Não sabia que era seu filho.
-Tudo bem senhor. Não tem problema, o coitado é mudo veja só. Não teria como avisar ao senhor.
Dizendo isso, o cocheiro deu um puxão nas cordas e foi embora. Armand observou a carruagem sumir na curva da esquina, e então se virou em direção à calçada.
-Armand, me desculpe à demora. O tintureiro não estava em casa e por isso demorou. Resolvi dar uma volta e passar lá amanhã. Espero que não se aborreça.
-De forma alguma senhor. Como hoje eu não tive tempo de conhecer a casa inteira, não sei onde fica o gerador e acendi a lareira, como o dia está fresco, resolvi esperar pelo senhor aqui fora – mentiu.
Ricardo e Armand entraram na sala. Estranhamente o cachorro dormia tranquilo sobre o sofá, e a porta do porão estava fechada. Armand achou aquilo esquisito, mas achou melhor não falar nada naquele momento. Depois do dia que passara, a única coisa em que ele pensava era em dormir.
-Armand, se você não se importar, eu quero que o cachorro durma do lado de fora, no jardim. Não gosto de animais dentro de casa.
-Certamente senhor. Vou deixa-lo lá fora.
-Venha comigo antes. Vou lhe mostrar onde fica o gerador. Foi a parte mais difícil da minha mudança – disse ele rindo – esse trambolho pesa bastante. Imagine como foi coloca-lo no porão.
-O gerador fica no porão?
-Sim, ele fica lá, é o melhor lugar pra colocar ele. Como é frio lá embaixo, ele não superaquece.
-O senhor não prefere que eu coloque o cachorro lá fora, enquanto liga o gerador?
-Quem disse que eu vou ligar? É você quem vai fazer isso de agora em diante, meu amigo. Vou lhe ensinar os comandos.
Ricardo e Armand desceram a escada com cuidado. O primeiro com um lampião aceso iluminava o caminho até o gerador, enquanto o segundo torcia para que nada fora do normal acontecesse. O barulho da água caindo ali se fazia ouvir e ia ficando cada vez mais alto. Era possível perceber que Ricardo havia instalado o gerador próximo ao córrego de água, com certeza o ponto mais úmido da casa.
-Pronto Armand, chegamos. Segure o lampião para mim e chegue mais perto. Irei ligar o gerador agora. Preste atenção, pois até terminarmos as coisas por aqui, é você quem virá ligar o gerador, todos os dias às 17h30min. Precisamos economizar energia. Disseram-me quando cheguei que só é possível comprar Diesel em São Bento. O galão tem 30 litros, e já deve estar na metade. Dessa forma, meu conselho é que mesmo com o gerador ligado, você ligue a luz só quando necessário. Ainda não sei quando virão ligar a força aqui. Ouvi dizer que leve mais duas semanas talvez, e com certeza não quero ter que ir a São Bento tão cedo. Por isso, vamos economizar.
Ricardo girou uma chave no painel do gerador e esperou. Uma luz verde acendeu e o aparelho tremeu, começando a funcionar. O som de uma correia gasta girando ruidosamente fez-se ouvir, e então ele empurrou uma alavanca para cima, localizada ao lado do painel. Mais uns instantes e tudo se iluminou, exceto lâmpada vermelha que Armand viu queimar diante de si quando estivera no porão anteriormente. Ou seja: o porão ainda estava escuro.
-Senhor, me desculpe. Mas hoje à tarde enquanto desci no porão para terminar o serviço da caixas, a lâmpada vermelha que ficava em cima da mesa apagou. Agora que liguei os fatos: como aquela lâmpada estava acesa com o gerador desligado?
-Isso é fácil Armand – disse Ricardo tirando um maço de cigarros do bolso e caminhando em direção à saída do porão -. Aquela lâmpada fica ligada a uma velha bateria de carro que eu tenho. Como eu passo muitas horas aqui embaixo e não tenho iluminação, achei melhor usar a fonte da bateria, do que gastar com o gerador, pois o simples fato dele estar ligado já consome combustível. Tenho essa bateria já faz algum tempo. É provável que ela tenha descarregado, ou simplesmente a lâmpada deve ter queimado mesmo. Ambas já são muito velhas.
Ao subir a escada saindo do porão, Armand notou a claridade que emanava pelas frestas da porta. A luz da sala já estava acesa, e a lareira não seria mais necessária. Aquela claridade era um alívio aos seus olhos, depois de tudo o que tinha vivenciado naquele dia. Ao passarem pela porta aberta por Ricardo, se depararam com Rex esperando na soleira. Quando Armand saiu e virou-se para fechar a porta atrás de si, o cão deu um ganido agudo, recuando com o focinho no chão e os olhos fixos no escuro. Alguma coisa ali naquele porão o incomodava, e algo dizia a Armand que não eram ratos ou baratas.
-Vou subir até meu quarto, tomar um banho e dormir. Coloque o cachorro pra fora da casa. Assim que você abrir a porta da cozinha, verá que tem uma pequena lavanderia do lado esquerdo da soleira. Pegue uns panos e coloque no chão, para que nosso amigo não morra de frio esta noite. Lamento muito não ter mostrado o jardim pra você. Ele costuma ser horrível durante a noite, por isso não se assuste com a paisagem.
-Pode deixar Senhor.
Ricardo deu uma tragada no cigarro e fitou Armand por um instante. Soltando a baforada que dera, por fim resumiu:
-Amanhã sem falta eu lhe mostro o jardim. Você verá que ele costuma ser bem menos feio durante o dia. Não se apresse em subir. Deixarei o lampião do lado de fora do meu quarto. Caso precise dele durante a noite, não hesite em usá-lo, e lembre-se de apagar todas as luzes aqui embaixo antes de subir. Boa noite.
Dito isso, ele deu meia volta e subiu até seus aposentos. Armand não se demorou também. Sentia suas costas doerem, e queria poder subir enquanto seu patrão estivesse acordado. O medo de ficar sozinho naquela casa o envergonhava, mas naquele instante, ele não dava muita atenção a isso. Passando pela cozinha, que também estava com suas luzes acesas, Armand procurou por uma vela nas gavetas do armário, só que, no entanto, não encontrou nenhuma. Lembrou-se da que havia deixado cair no porão, mas não estava disposto a descer lá só para não ter ir para seu quarto na escuridão. Com certeza a presença de Ricardo naquela casa, e a sua tranquilidade em relação a ela ajudaram a melhorar o animo de Armand, que resolveu por um instante deixar seus medos de lado.
-Vem Rex – chamou enquanto abria a porta da cozinha.
Estava frio lá fora, e a neblina cobria quase todo o quintal. Era possível ver mesmo no escuro, a sombra de algumas arvores, e um pouco mais a sua frente, algumas moitas disformes. No final do jardim, havia uma sombra mais forte e sólida que Armand presumiu ser o muro. Algumas estátuas e a sombra da fonte também apareciam em meio a neblina, borradas em um tom escuro e sombrio, e por um instante, Armand se sentiu em meio a um grande mausoléu.
-Realmente esse lugar é horrível de noite – pensou enquanto caminhava até a soleira e colocava os panos para o cachorro próximos a porta. Rex, obediente e calmo se deitou e encolheu a cabeça em direção à cauda. O cachorro também parecia exausto, e tudo o que queria naquele momento era dormir.
Armand fechou a porta da cozinha e pegou um balde com água para apagar o fogo da lareira. Chegando à sala, o fogo já estava baixo. Ergueu o balde sobre as chamas e foi jogando água aos poucos, até que a fumaça branca e quente atingiu seu rosto fazendo seus olhos arderem. Pronto. O fogo fora apagado. O pesado tic-tac do relógio agora estava mais forte, vencendo o silêncio que se instalara ali, fazendo-o se lembrar de como seu dia havia sido extenso. Era hora de dormir.
Seguindo em passos lentos em direção à cozinha, Armand depositou o balde sobre a pia e apagou a luz. Dessa vez, caminhou mais rápido até a sala, onde já não tão surpreso, mas muito desconfortavelmente, constatou a porta do portão entreaberta.
-Maldição – pensou – vou colocar uma fechadura nessa porta para ela não abrir mais.
Sem se deixar levar pelo medo, Armand deu passos decididos até a porta, puxando-a para frente com força, para que se fechasse de uma vez. No entanto, apesar de seu esforço para puxa-la, ela não cedeu. Puxou com mais força e nada. Era como se estivesse emperrada, ou como se alguém do outro lado estivesse segurando a maçaneta.
Ainda sem se preocupar, Armand abaixou e olhou por debaixo da porta. Não havia nada. Então, com mais raiva do que medo puxou a porta mais uma vez, só que violentamente.
-Não adianta – um sussurro ecoou de trás dela – pode tentar, mas não adianta – disse a voz enquanto ele puxava a porta. Foi então, que repentinamente a porta cedeu e se fechou, fazendo Armand cair no chão.
Se colocando de pé rapidamente, ele ainda pode ouvir em um tom muito baixo a voz rouca dizer até desaparecer por completo:
-Vou sair daqui... Queiram vocês ou...
A voz tinha sumido. Trêmulo e nervoso, Armand correu até as escadas e seguiu para seu quarto. Sentia sua cabeça doendo, e resolveu acreditar que tinha ouvido coisas, graças à pinga que tomara no armazém de seu Carlos, apesar de os fatos ocorridos antes disso dizerem totalmente o contrário.
-Armand, você já terminou? – era a voz de Ricardo vinda do banheiro.
Por um instante aquela voz o aliviou. O tom do normal, do simples e do real acalmou seus sentidos e Armand respondeu com a voz animada:
-Sim senhor! O senhor precisa de mais alguma coisa?
-Não, obrigado – vinha à voz ecoada das paredes do banheiro – você apagou todas as luzes?
“Droga” – pensou. Ele havia se esquecido da sala.
-Acho que me esqueci de uma.
-Armand, precisamos economizar – o tom de Ricardo era calmo, porém corretivo – volte lá e apague, sim?
-Certamente senhor.
Armand desceu as escadas praguejando mentalmente o azar de ter esquecido aquela lâmpada ligada. O interruptor ficava do outro lado da sala, e inevitavelmente ele não podia deixar de olhar em direção à porta do porão, que para seu alivio estava fechada. Andando a passos rápidos, ele apagou a luz e deu meia volta em direção à escada. Quando estava no meio dela, seus passos se converteram em uma corrida cheia de tropeços e esbarrões. Lá embaixo, o som de uma maçaneta rangendo levemente, foi o suficiente para seu desespero.
Assim que ele entrou no corredor que dava para seu quarto, ele se deparou com Ricardo o olhando aparentemente preocupado.
-Está tudo bem? Parece que você viu um fantasma.
-Está tudo bem senhor. Apenas tropecei na escada enquanto subia.
-E desde quando você sobe as escadas correndo?
-Apenas me assustei lá embaixo. Pareceu-me ouvir um barulho vindo do porão e achei melhor subir depressa.
-Sei... – a expressão de Ricardo ficou séria – Vou dormir agora. Apague a luz quando terminar o banho. Seja rápido.
Ricardo deu as costas para Armand e entrou no seu quarto. Ao pé da porta estava o lampião. A luz do corredor estava ainda estava acesa. Ele preferiu deixar assim até terminar de tomar seu banho, e em seguida, apagaria e iria se deitar.
Entrou em seu quarto e viu que também havia iluminação sobre ele, o que era muito bom. No escuro, quando o medo vence a razão e os olhos perdem o senso de estarem abertos ou fechados, a luz é uma ótima amiga. Satisfeito, sentou-se sobre a cama e abriu sua mala. Suas camisas estavam dobradas sobre suas meias, e dentro do guarda-roupa havia uma toalha pendurada sobre um cabide. Debaixo de sua cama, um par de sandálias brancas estava cuidadosamente embalado em um saco plástico. Sua chegada havia sido preparada com antecedência.
Deu uma olhada por sobre a janela e contemplou o jardim. Estava tudo calmo e escuro, a não ser pela névoa amarelada que passava lá fora. Tirou seus sapatos, rasgou o plástico em que estavam as sandálias, pegou seu pijama e toalha e seguiu em direção ao banheiro.
Vinte minutos depois, Armand já estava debaixo da coberta. Colocou seu relógio despertador para tocar às 04 horas, assim teria tempo de preparar um café para Ricardo, antes que ele acordasse.
-Talvez amanhã eu arrume aquela biblioteca.
Armand pensava porque levaria tanto tempo para ficar naquela casa, com tão poucas coisas a fazer.
Virando-se de um lado para o outro sobre a cama, Armand não conseguia pegar no sono. Tentava não pensar nos estranhos acontecimentos daquela noite, mas não podia deixar de ligar os fatos. Desde que viu Ricardo pela primeira vez, coisas estranhas vinham acontecendo. Não sabia se isso era apenas fruto de sua imaginação, ou se havia alguma presença, alguma coisa realmente mal naquela casa, ou pior do que isso: algo que quisesse fazer mal a ele.
A aparente calma de Ricardo o incomodava, talvez ele estivesse escondendo alguma cosia dele? Lembrou-se de que havia perguntado a ele sobre o primeiro dia em que o vira, na praça, em frente à casa dos Monteiros, e de sua relutância em responder.
Era improvável pensar que Ricardo sofresse com alguma coisa do tipo, pois sua calma era perturbadora. Só que de um modo geral, Ricardo era uma pessoa estranha, e bem no dia em que Armand julgava ter um ladrão dentro da casa de seus patrões, lá estava ele, olhando pela janela, até o momento em que percebeu que estava sendo observado. Tudo isso as três da madrugada, o que não era normal para pessoa nenhuma.
Armand tentou não ligar os fatos. Ricardo era um policial, e talvez tenha realmente visto alguém rondando o bairro e o seguido, possivelmente até a casa dos Monteiros. Talvez ele tenha ficado lá fora, observando, para ver se estava tudo bem.
Envolvido em meio a estes pensamentos, Armand tentou dormir como pode. Resolveu tentar pensar em outras coisas, pois o medo tinha daquela casa era nítido, e ele já havia se conscientizado disso. De lá de cima, era possível ouvir o som do relógio, fazendo eu trabalho, contando os segundos e os minutos.
Armand dormiu mal. Teve pesadelos, e acordava constantemente assustado e empapado de suor, apesar do vento frio que entrava pela janela. Seu maior desejo era sair daquela casa e voltar para sua vida normal. Por fim, conseguiu dormir definitivamente, pensando em quanto tempo iria demorar em terminar seus afazeres e voltar para junto de seus patrões.
Continua...