Uma busca por carinho

Não era mais o mesmo. Seu coração batia num compasso diferente, e um estado de alerta percorria sua pele. À sua frente, o corpo de Gisele esparramado no chão, enquanto uma poça de sangue se formava ao seu redor.

Seu nome era Bob, e tudo o que conhecia era a antiga casa onde morava desde suas primeiras lembranças. O quintal fielmente cuidado por Gisele, a cozinha onde ela de vez em quando lhe dava alguns petiscos, a sala com o sofá em que ele passava o tempo deitado com a cabeça em seu colo, enquanto ela lhe acariciava, e o quarto, no qual Gisele não o deixava entrar.

Nunca entendeu como aquilo aconteceu tão rápido. Numa madrugada, alguém tentou entrar pela porta. Gisele morava sozinha, e Bob era acostumado com isso. Com exceção dos filhos que dificilmente à visitavam, só recebia o carteiro de tarde; então quando ouviu aquele barulho na porta e um homem de máscara preta entrando, não pensou duas vezes. Com sua força, Bob pulou sobre o homem, derrubando-o sobre o fogão e ferindo seu braço com os dentes, mas logo veio outro que ele não pode prever, e bateu em sua cabeça violentamente com alguma espécie de taco. Eles tinham um cheiro diferente, estranho, sujo, ruim.

Bob não conseguia se mover, e tudo o que pôde fazer foi assistir a cena, enquanto ela era espancada com aquele mesmo pedaço de madeira que usaram para bater nele, até que caiu no chão sem mais se mexer, no quarto que ele nunca podia entrar.

Eles levaram muitas coisas da casa e foram embora em alguns minutos. Bob tentava reunir forças pra se levantar e ir até Gisele, mas só conseguia rastejar devido aos ferimentos. Quando chegou até ela, sentiu um cheiro forte de sangue, e não podia mais reconhecê-la pelo rosto. Ele mexia em sua mão, esperando uma reação dela. Conseguiu se levantar e andou em volta do corpo caído, como se procurasse alguma forma de recuperá-la.

No dia seguinte, uma vizinha constatou a porta arrombada e tocou a campainha. Não tardou para que viessem dezenas de pessoas na casa de Gisele e Bob, incluindo os filhos, que a levaram embora, apesar das tentativas frustradas de Bob de não deixá-los tocarem nela, o que só lhe rendeu alguns gritos nervosos do pessoal, que decidiram deixá-lo acorrentado enquanto faziam o trabalho.

Agora estavam todos juntos, todos que Bob se lembrava já terem visitado Gisele. Seguiam uma caixa de madeira, onde tinham deixado ela dentro. Ele a acompanhava quieto. Seguia o cortejo até pararem frente à uma enorme pedra, sob a qual ela foi colocada e coberta de terra.

Todos iam embora, um a um, enquanto Bob olhava apreensivo para o chão de terra. Não queria sair de lá. Mesmo quando foi puxado por um jovem que em pouco se assemelhava a ela, foi obrigado à mordê-lo na mão que o segurava para que lhe deixassem em paz.

Os dias passavam, e ele teimava em não deixar aquela pedra com terra recém movida. As pessoas do cemitério levavam comida e água pra ele, de vez em quando, e era o que bastava. Não ligava para a casa que havia deixado, tudo o que lhe importava era quem estava agora ali enterrado, e que não ia mais voltar. Bob sabia disso. Ele viu toda a cena quando aconteceu. Só não podia abandonar aquela que nunca o abandonara. Mesmo quando ele a trouxe problemas estragando algumas de suas coisas.

Prometeu então que não iria mais sujar o chão se ela voltasse. E que também não pisaria mais na grama que ela cuidava. Não faria barulho de noite e esperaria quetinho a hora de comer.

Não adiantou.

Ele passava pelas outras pedras, e imaginava se em cada uma delas estaria uma pessoa importante pra alguém. Uma pessoa que fosse tudo o que esse alguém conhecia, e que não poderia viver sem ela.

À noite, vultos brilhantes andavam sobre a grama. No início Bob estranhava eles, mas agora era como se entendesse. Eles saíam de lugar nenhum, e sumiam com o nascer do Sol. Alguns se comunicavam com ele, perguntavam por que estava ali, o que ele queria; mas Bob não sabia como respondê-los.

Uma noite, um deles lhe perguntou se queria ter Gisele ao seu lado de novo. Bob fez que sim. Perguntou-lhe se queria fazer com aqueles homens o mesmo que fizeram com Gisele. Bob fez que não. Só queria ficar com ela pra sempre. Conhecia todas as suas manias, seus hábitos, aquilo que ela falava, seu sorriso, seu amor. Então esse espírito foi embora, parecendo decepcionado com ele.

Mas voltou no dia seguinte, e fez uma proposta: se Bob apagasse a luz da vida deles, o espírito o levaria para onde Gisele estava. Ele nem pensou duas vezes, e num pulo, firmou seu acordo.

A Lua parecia maior naquela noite, como nunca esteve antes. Bob andava pelas ruas e becos, à procura dos homens maus. O espírito lhe deu uma força desconhecida. Sentia que agora era o mesmo tipo que Gisele. Podia até mesmo falar com as pessoas sem levantar a menor suspeita. Seguiu seu olfato, que não lhe abandonara, e acabou por parar em uma enorme mansão, com muitas pessoas dentro e música alta tocando. Com as roupas que pegara de uma vitrine, deixaram-no entrar sem suspeitas. Era um salão gigantesco, escuro, com umas 150 pessoas pulando ao som de uma batida pesada e luzes finas que de vez em quando iluminavam alguém. Bob, com seus olhos treinados para o escuro, procurou o rosto e o cheiro daqueles homens. Enquanto procurava, uma jovem esbarrou nele, e Bob tentou entender o que ela dizia:

- Uau! Seus olhos estão brilhando no escuro, ou eu que já estou muito doida?

- Quem é você? - perguntou ele, diante da abordagem.

- Meu nome é Samira, mas pode me chamar de Sammy! Vem cá, você dança?

- Quer dizer igual esse pessoal pulando aí no meio?

- É isso aí!

Bob olhou para os olhos da moça. Ela era, sem dúvida, muito bonita. Imaginou se Gisele costumava ser assim quando jovem.

- Não, obrigado. Estou procurando alguém. - disse Bob.

- Ok, foi mal então... - disse a menina, indo embora.

Do nada, Bob sente aquele cheiro sujo que sentira dos homens maus, passando pela frente dele. E lá estavam, os dois, andando cada um com um copo na mão e uma garota do lado. Bob foi atrás deles, até que sentaram em uma mesa e começaram a beber com as garotas.

Sem ter outra ideia, Bob encostou-se na parede e esperou. Esperou, esperou, até que ambos os homens levaram as garotas para fora. Ele acompanhava de longe. Entraram num estacionamento.

- Ei! - disse Bob. Todos viraram-se para ver quem era. Tarde demais, Bob já estava em cima de um dos homens, aquele que primeiro tentara passar pela porta de sua casa. Ele mordia seu rosto, arrancava pedaços de sua face à cada ataque, até que o homem parou de se mover. Quando virou para procurar o outro, uma das garotas estava desmaiada, a outra chorando assustada. Sentiu uma pancada na cabeça, e viu aquele homem que já havia batido nele antes, armado com um pedaço de ferro. Bob já conhecia seus movimentos, e desviou do próximo golpe. Antes que percebesse, havia partido o pescoço do sujeito ao meio, e ele sangrava cachoeiras.

Então Bob foi embora, voltar ao cemitério. Sentado sob a pedra de Gisele, viu aquele vulto brilhante que lhe fizera a proposta.

Quando aproximou-se dele, as luzes tomaram conta do lugar e de seu corpo.

Bob nunca mais foi visto.

Conseguiu aquilo que queria: era novamente um cão de Gisele, eternamente ao lado de sua dona.

O Estagiário
Enviado por O Estagiário em 05/06/2012
Reeditado em 06/06/2012
Código do texto: T3707432
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