A Ceia dos Malditos
 
 
            Todos gostavam de agradar primo Ângelo, menos eu.
            Naquelas obrigatórias reuniões familiares, que sempre eram na casa dele, a minha infelicidade era solitária.
            Ângelo não poupava gastos e a cada ano a residência estava mais requintada e completamente redecorada:
            - O que ele faz com os móveis antigos? – Perguntavam.
            - Usa como fogueira. – Respondi despertando olhares irados de todos. O traje da festa era branco, para combinar com as cores da casa. Se soubessem a vontade que tive de sujar-me de lama e rolar por aquelas tapeçarias e valsar sobre os sofás deixando o grotesco do marrom por toda parte...
            - Boa noite! – Ângelo interrompeu-me os pensamentos aparecendo no alto da escada com um meio-fraque alvíssimo. Destilava suas mesuras para com todos, principalmente com as primas que não se cansavam de admirá-lo:
            - Sempre foi o mais bonito... E o mais inteligente... E o mais aquilo e mais isso... – E minha vontade era arrancar fora o seu pescoço. Fui um dos últimos que veio a cumprimentar destilando sua falsidade:
            - Primo Anselmo, seja bem-vindo.
            - Obrigado. Saiba que é sempre um horror estar aqui.
            - Sempre bem-humorado... Sempre, sempre... – E dava-me tapinhas no rosto.
            Enquanto bebíamos o rublo licor, destilado nos próprios alambiques da mansarda, chegando a meia-noite. Ângelo convidou-nos à mesa principal:
            - Essa idéia do branco, foi ótima! – Dizia prima Gorette, uma gorda papuda que não se cansava de deitar olhos fumegantes ao anfitrião que, imponente como um pavão, tomou a cabeceira da mesa enquanto tomávamos nossos lugares:
            - Para essa noite única, quando a família novamente se reúne, encomendei um prato especial. – Os serviçais avançaram trazendo enormes bandejas prateadas com suas tampas abobadadas. Cada convidado tinha um serviçal ao seu lado. O chatíssimo discurso continuava:
            - Queridos primos e primas, pelo bem de nossa família, pela saúde de todos, no milésimo aniversário que faço hoje, convido-os a apreciar essa iguaria. – Ordenou que as tampas fossem levantadas e, para nossa surpresa, em cada bandeja havia um bebê humano vivo, embora adormecidos por hipnose para que seu choro não estragasse a surpresa. Prima Gorette bateu palmas em êxtase. Os famigerados bebedores de sangue, que não podiam ver a luz do dia, entregaram-se ávidos ao terrível ataque. Peguei o meu bebê, enquanto a mesa e os trajes brancos se tingiam de vermelho e me retirei daquela impensável carnificina. Quando me preparava para saltar de uma das janelas do palacete, Ângelo interceptou-me com suas mãos agora em garras e com os olhos ardendo em brasa enquanto suas enormes presas cintilavam:
            - Já vai tão cedo, primo? Não apreciou o banquete?
            Encarando-o firmemente, respondi sem temor:

            - Vou fazer esse lanchinho em casa, se não se importa. – Saltei pela
janela e corri por entre árvores sobre troncos e pedras. Longe dali, deixei que a lua banhasse o bebê que quase morria de frio. Fiquei admirando aqueles olhinhos cheios de vida, brilhantes, clamando pelo seio da mãe que devia chorar, em algum lugar pela volta da filha que lhe fora roubada. 

 
     Poderia usar dos meus poderes psíquicos e encontrar a mãe e, no caso de estar morta, poderia achar um lar humano para aquela doce criaturinha. Poderia fazer tantas coisas, mas poderia vencer aos meus instintos de monstro? Senti o seu cheiro forte e a pulsação do pequeno coração acelerar. Sem pestanejar, cravei-lhe os dentes com força e aquele néctar encheu-me de vida, da mais pura vida que poderia almejar. Ângelo era um pavão esnobe, mas sabia promover uma ceia como ninguém...


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