O Escolhido
A cidade era mesmo bonita deste ângulo.
No topo daquele edifício, há 32 andares acima do solo, sentindo o vento noturno balançar meus cabelos como um namorado me contando segredos, era impossível não admirar a beleza da vida. Essa coisa incrível e inexplicável. Poderosa e divina. Vida. Sinto-a pulsando em minhas veias hoje, de uma forma que até então nunca havia sentido.
E ao meu redor ela explode.
Duvido que as pessoas lá embaixo se dêem conta da vida que as cerca. Elas estão preocupadas com seus empregos, seus namorados, seus horários, seus inimigos... mas não com a vida que as anima, que enche de luz a paisagem que eu encaro.
É incrível como posso apreciá-la agora. Algo sinestésico que abraça meus sentidos e me deixa bem próxima de uma epifania sobre o universo, seu tamanho não mais tão impressionante perto do sentimento que me envolve. Os segredos não estavam mais a milhões de anos-luz, eles agora me rodeavam, estavam a centímetros da minha pele, tão perto que se eu fechasse os olhos podia sentir sua presença.
Confesso que sempre quis conhecer os segredos. Desde menina já me sentia pequena em relação as coisas, não do jeito que crianças normalmente se sentem, era como se meu espírito fosse pequeno, e mesmo após crescer pouca coisa havia mudado. Parecia que alguma coisa estava faltando. Alguma coisa que era a chave para que eu entendesse tudo.
E eu entendi que a chave para tudo, a coisa que faltava, a compreensão que eu ansiava, era a vida que me envolvia.
Mas da mesma forma que a amava eu agora a odiava.
Meus pensamentos se calaram subitamente e a sensação que me envolvia desapareceu. Meu corpo voltou a reagir como de costume... Como se um pesadelo estivesse as minhas costas pronto para despejar sua loucura em meu coração. Fechei os olhos não evitando que os pêlos da nuca arrepiassem. O ar que soprava segredos passou a soprar maldições, sutis como as de um assassino no corredor da morte. A sinestesia agora me colocava diante do meu único medo, o culpado por ter me levado ao topo daquele edifício.
O Pecador estava ali.
- Você não pode pular. – O Pecador me disse.
Como sempre prepotente. Como sempre querendo ser quem não era. Eu podia pular. Eu podia tudo.
- Você não pode me impedir...
- BASTA!
Sei que não devia mas mesmo assim tremi, e ao tremer percebi que talvez o Pecador não fosse tão prepotente assim... Talvez eu não pudesse mesmo pular.
- Olhe para mim. – Ele mandou
- Não – respondi encolhendo-me.
- Olhe agora!
E como uma marionete eu virei.
O Pecador era bonito. Cabelos negros e longos mas tão leves que esvoaçavam ao som de uma conversa. Seu olhar era austero como o de um general em um campo de batalha. Os músculos não eram muito proeminentes mas era possível ver a rigidez dos mesmos, vigas de aço que apesar de finas não podem ser dobradas nem como toda sua força. O Pecador era belo para os nossos padrões e isso era um contraste gritante com sua essência.
- Desça daí. – Ele voltou a ordenar.
Eu quis dizer que não, que jamais voltaria para junto dele, mas uma coisa me impediu. A coisa que estava me impedindo desde o momento em que eu tomei a decisão de subir ali.
Com carinho levei as mãos a minha barriga que já começava a inchar.
A vida me impedia de pular.
- Isso é tudo que você sempre quis. – O Pecador começou e a forma como sabia sobre meus pensamentos me fez sentir exposta de um jeito obsceno – Eu te dei tudo o que você sempre quis e agora darei aquilo que você nem sabia existir. Venha. Venha e escolha. O que você escolher será seu.
Seria mesmo? Eu poderia mesmo escolher?
- Eu quero que tudo continue como está. – Desejei.
O Pecador afiou o olhar de uma forma perigosa.
- Isso eu não posso permitir.
- Mas é o que eu escolhi.
- Não! – Ele ralhou e era como se a própria realidade se dobrasse ao som de suas palavras – As coisas têm que mudar! Olhe ao seu redor! Olhe o mundo que te envolve?! O que há de mágico nele para que as coisas continuem como estão?!
Há algum tempo atrás eu não saberia responder aquela questão.
Mas agora eu sabia.
- Há vida...
O Pecador avançou um passo e eu me inclinei para trás em um ângulo perigoso, obrigando-o a parar.
- A vida continuará – o Pecador começou e era visível como tremia para conter outro acesso de fúria – Você continuará viva e seu filho também.
- Nosso filho...
O Pecador sorriu.
- Há muito tempo atrás ele trouxe um filho para que houvesse mudança. Mas a mudança não veio. Agora é minha vez.
- Sua mudança vai acabar com tudo...
- Minha mudança será um recomeço para todos. Todas as flores morrem minha jovem, mas as flores mortas são o adubo para que as flores novas possam nascer.
Inclinei a cabeça permitindo aos meus pulmões sorverem o ar mais fresco que já tive o prazer de sorver.
- Que flores poderão nascer... num campo de morte? – Perguntei, não para o Pecador mas para o universo que nos observava.
Então eu repentinamente sabia o que tinha que fazer e sabia que se não fizesse agora não teria outra chance...
Permiti a meu pescoço continuar erguendo, e quando ele chegou ao máximo minha coluna começou a se dobrar com ele. De olhos fechados eu sentia apenas meu centro de gravidade sendo deslocado de forma perigosa, a vertigem consumiu meus sentidos e a realidade sobre o que estava fazendo me atingiu como um caminhão.
- NÃO!
O grito do Pecador foi o sinal de largada para que minha queda começasse.
Por mais estranho que possa parecer não foi a retrospectiva de minha vida que encheu meu cérebro naqueles últimos momentos, eu apenas me preocupava se estaria condenada por meu suicídio ou salva devido o auto-sacríficio...
A questão logo desapareceu... Ela me seria respondida em poucos segundos mesmo...
Eu ainda consegui ver o Pecador, de pé no topo daquele edifício ele encarava-me com suas indecifráveis feições. Talvez eu tivesse salvado a todos, talvez eu tivesse apenas adiado o inevitável.
Então a um metro do chão tudo desapareceu para dar lugar a um último pensamento...
O de que a cidade, apesar de tudo, era bonita desse ângulo também.
FIM