A origem da maldição do Cemitério Abandonado

Enterrava mais um corpo. A cova era rasa, não tinha disposição para cavar uma profundidade de sete palmos, e aos seus olhos, aqueles a quem depositava na última morada não eram seres humanos. Já havia sepultado muitos naquele local isolado, a mando de seu patrão, um cemitério clandestino, distante, utilizado apenas para aquelas pessoas.

A febre amarela estava dizimando a população de escravos negros, o dono da fazendo não ligava para a vida daqueles a quem explorava, e em meados do século XIX a vida de um cativo não tinha valor quando este não pudesse mais trabalhar.

Naquele dia, Jacinto trabalhava sozinho, a tarde começava a dar lugar à noite. Com a pá jogava a terra sobre a nova vítima da doença. Estava cansado, queria ir embora, terminar com aquele serviço que tanto odiava, quase tanto quanto a própria vida, mas fazia por falta de opção. Com seus 40 anos sentia não ter mais futuro, o suor escorria pela sua testa marcada pelo sol, correndo pelo rosto cheio de ódio, com rugas e barba por fazer.

Quando o serviço chegava ao fim, e o cadáver do velho escravo idoso estava quase todo coberto de areia, este abriu os olhos, e debilmente ergueu a mão direita. Ainda não estava morto.

- Me ajude – disse quase em uma voz quase inaudível.

- Ainda não morreu? – rosnou Jacinto – Morre logo desgraçado!

E continuou a jogar terra como se não tivesse ouvido o clamor do moribundo. Enfim, enterrou o velho escravo, que por muitos anos serviu a família do grande fazendeiro em sua lavoura de café. Viu a mulher morrer e os filhos serem vendidos como se fosse uma mercadoria qualquer, a sua vida foi uma lástima. Aparentava praticar o catolicismo, participava das celebrações oficiais na fazenda, mas no seu íntimo, longe da visão dos chefes brancos, perpetuava a antiga religião dos antepassados, uma forma silenciosa de resistência, adorando forças da natureza e entidades estranhas aos escravocratas.

Antes de concluir o “serviço” Jacinto viu o velho se erguer parcialmente da cova, por entre a terra, seu rosto enrugado, negro e sujo de areia o encarou. Os olhos estavam em fogo. A mão direita também ganhou a superfície. Jacinto ouviu o que pareceu uma prece, em um idioma desconhecido.

- Te tragaremos – finalizou o velho.

Jacinto olhou para os lados, não viu ninguém, já era noite. Jamais presenciara algo assim, não era a primeira pessoa que enterrou viva, mas fora a primeira a ter forças para sair por entre a terra e falar-lhe algo estranho. Jogou mais areia sobre o morto e o deixou lá. Enquanto voltava para a fazenda em uma velha carroça de madeira puxada por um cavalo, sentiu algo diferente, um sentimento de arrependimento. “Talvez não tivesse agido bem com os escravos”, pensou.

Dias depois estava de volta ao mesmo local, novamente sozinho, ninguém o quis acompanhar, não gostavam dali, nem do serviço. Enterrava mais um corpo, dessa vez a doença e o sofrimento tinham vitimado uma criança. O sol raiava forte, fazia calor. Quando concluía e preparava-se para ir embora pensou ter ouvido uma voz. Olhou para os lados.

- Jacinto....Jacinto...Jacinto...- diferentes vozes o chamavam aos sussurros.

Sentiu-se dominado pelo terror, algo estava errado, os mortos pareciam estar falando com ele de dentro da terra.

- Vem...vem...vem...- pronunciavam.

Quando corria para sua velha carroça uma mão semidecomposta saiu da terra e agarrou seu tornozelo.

- Como? – se perguntou.

Mais mãos saíram da terra e o agarraram, dezenas de mãos demoníacas o puxavam vagarosamente para o interior da terra, afundava.

- Nããããããooooo! Me soltem! Malditos! Ahhhhhhh! – gritou.

Nada adiantou, foi tragado vivo, da mesma forma que havia enterrado tantos que ainda respiravam. Sua última expressão antes de

acompanhar os mortos foi de desespero. Desapareceu. Na fazenda poucos ligaram para o seu sumiço, passado dois dias foram procura-lo e viram o cavalo pastando ao lado do pequeno cemitério clandestino usado para enterrar os escravos da fazenda. Não havia sinal do Jacinto.

Ao ser enterrado vivo, a última prece do velho escravo tratou-se de uma maldição dirigida ao seu coveiro, mas por conter tanta dor acabou se alastrando por toda aquela área que viria a se tornar um Cemitério Abandonado, pois os parentes dos que ali repousaram deixaram de visita-los com o correr dos anos, não gostavam de se aproximar daquele local onde tinham certeza, repousava uma maldição.

Com o passar do tempo uma pequena povoação surgiu nas proximidades, e não demorou para que mais pessoas desaparecessem sem explicação, e logo alguns compreenderam que não era recomendado caminhar pelas redondezas do Cemitério Abandonado, no entanto, esse justificado temor não impediu que ao longo dos séculos, pessoas continuassem a ser puxadas para dentro da terra e acompanhar os mortos em sua eterna falta de paz.

FIM.