A Musa parte 2

Alberto veio morar comigo por uns dias. Eu não conseguia entrar em casa, ver todo o que tinha comprado para eles, o colchonete no canto, o espaço no meu guarda-roupa. Desisti dos dias de folga que tinha conseguido no trabalho e, depois do funeral, fui trabalhar. Tive pesadelos, um atrás do outro, sempre com a voz, agora rindo e dizendo que não podia mais fugir, às vezes com o garoto suicida me tomando pela mão e me puxando, dizendo que já não havia nada a fazer, que a Musa tinha começado sua obra. Nunca antes tinha ouvido falar dessa Musa. E eu acordava com o toque gelado da mão do menino, ou a voz gritando nos meus ouvidos. Uma vez, quase um mês após a morte dos meus pais, quando Alberto tinha voltado a dormir na sua casa, eu sonhei que estava na minha casa, e então vi uma sombra. Quando me virei para ver quem era, vi aquela moça de antes, que me enxergara pela janela da sala, só que desta vez estava bem no meio do corredor que levava da sala à cozinha. Seu rosto era pálido e sem expressão, e seus olhos escuros me fitavam de uma forma feroz, que me fez sentir arrepios e gritar. Acordei suando e com o coração aos pulos. Sem saber por que, tive certeza que essa moça branca era a Musa que o garoto do meu sonho tinha dito.

Nesse ponto, eu estava beirando na histeria. Não conseguia ter uma boa noite de sono praticamente desde a morte dos meus pais. Meus pesadelos, sempre parecidos, sempre com o garoto morto, me faziam pensar e pensar na sua morte, a morte dos seus pais, e dos meus. Comecei a me perguntar se não teria alguma ligação entre eles. E com a Musa. E ao mesmo tempo, me perguntava se não estaria ficando maluca. Afinal, pesadelo é pesadelo, e eu queria acreditar que o que estava acontecendo comigo era fruto do choque sofrido por ver o garoto morrer na minha frente, somado à dor causada pela morte dos meus pais. Eu me sentia cansada, desanimada, e cada vez estava mais paranóica. Uma vez ou outra achei minhas janelas abertas, e isso, junto com alguns barulhos estranhos que ouvia nas vezes que acordava no meio da noite, me faziam estremecer cada vez que chegava a casa do trabalho. Se antes revisava portas e janelas duas ou três vezes, comecei a revisá-las umas dez vezes, antes de ir deitar, e mesmo assim não conseguia mais me sentir segura na minha própria casa. Alberto tentava me distrair, saíamos, ele passou a dormir na minha casa quase a semana inteira, e me acalmava quando eu acordava gritando, tremendo e suando, falando de garotos mortos e de figuras pálidas. Mesmo com a sua ajuda, minha vida estava virando um pesadelo. Comecei a ver a figura da Musa, com seus olhos frios e penetrantes, ainda acordada. A primeira vez eu estava sem sono e decidi ir à sala para ver um pouco de televisão. Antes fui à cozinha para me fazer um chá, e, enquanto esperava o chá ferver, olhei pela janela da cozinha. O muro que rodeava minha casa não permitia que eu tivesse uma vista da vizinhança, mas o céu estava muito claro, cheio de estrelas, com uma Lua cheia brilhante que penetrava na cozinha e tingia tudo com sua luz azulada. De repente, vi, saindo da despensa que ficava embaixo das escadas, uma figura brilhante. Primeiro pensei que fosse algum reflexo da luz da Lua, mas depois vi que essa figura estava se mexendo, como flutuando, em direção à sala. Eu fiquei paralisada, como se tivessem me pregado na cadeira onde estava sentada. Nesse momento a chaleira começou a ferver, fazendo um barulho que me pareceu tremendo, e corri a desligar o fogo. Quando me virei para a porta da cozinha de novo, não havia mais nenhuma figura. Eu decidi tomar meu chá no quarto, e subi as escadas correndo.

Só Alberto sabia o que acontecia comigo. Porém, aos poucos, a falta de sono e a paranóia foram afetando meu trabalho. Meu chefe me obrigou a tirar umas férias, mas eu estava apavorada com a ideia de ficar em casa uma semana inteira, sozinha, já que Alberto estava muito ocupado com um projeto do trabalho, e ficaria toda a semana até muito tarde na oficina. Porém, a despeito de todos os meus medos, os primeiros dias foram muito tranquilos. Não vi nenhuma sombra, e não tive pesadelos. Depois de umas boas noites de sono, e tendo os dias livres para descansar, comecei a ficar mais relaxada. Até pensei que devia ter estado muito cansada para ter começado a ver fantasmas. E conclui que o que precisava mesmo era dessas férias. Domingo à noite fui deitar cedo, porque teria que voltar a trabalhar no dia seguinte. Estava cansada e peguei no sono apenas coloquei a cabeça no travesseiro. Eu não me lembro se estava sonhando algo antes, mas começou de novo meu velho pesadelo. Do nada estava numa praia, e Alberto estava comigo. Eu estava deitada, tomando sol, enquanto ele se preparava para dar um mergulho. As ondas estavam muito calmas, quase inexistentes, e ele nadava até bem adentro do mar. Então, o garoto suicida me pegou pelo pé e me puxou para me virar de costas. Depois, ele me disse que me levantasse, e, apenas obedeci, pegou minha mão, com seu já conhecido toque frio, e começou a correr. Eu chamava por Alberto, mas ele não estava mais no mar. Não o via em lugar nenhum. E então, eu vi a Musa, em pé na beira do mar, que começou a ficar agitado, com as ondas chegando cada vez mais fortes, cuspindo espuma branca na areia macia, me impedindo de ver onde estaria meu namorado. A Musa me olhava com seu olhar penetrante, e parecia que sua boca estava torcida em um meio sorriso que me fez começar a tremer. Eu não parava de chamar por Alberto enquanto tentava me livrar do aperto do garoto, que me levava cada vez mais longe da praia. –Foge, você tem que correr, é o único que lhe resta a fazer!

Acordei com o toque do celular. Minha cama estava toda bagunçada, eu me sentia infeliz, como se ainda estivesse mergulhada no pesadelo. A princípio não reconheci a voz ao telefone. Era uma moça, chorando, me perguntando se eu era a namorada do Alberto. Depois de um momento, reconheci a voz da irmã de Alberto. Ela me disse que algo terrível tinha acontecido. Alberto estava morto. Ele tinha saído da sua oficina e estava entrando no seu carro quando foi atropelado por um homem bêbado. O corpo dele tinha sido prensado entre os dois carros, e o impacto tinha sido tal que o corpo tinha ficado totalmente amassado, chegando a se dividir ao meio quando separaram os veículos. Eu fiquei ali, sentada na cama, sem saber como reagir. Sem saber se devia reagir. Parecia que todos ao meu redor estavam morrendo. Eu não falei muito mais com a irmã de Alberto, que também não tinha muito que falar, e simplesmente chorava desconsolada do outro lado da linha. Desliguei o celular e desabei a chorar. Alberto, meu amigo, meu namorado, aquele com quem fazia planos para o futuro, o único que sabia de todos meus pesadelos e minha histeria, tinha morrido!

Meu chefe me deu mais uma semana de férias. Ele tinha visto toda minha tragédia, a perda dos meus pais, e agora de Alberto. Eu passava os dias em casa, olhando para o vazio, tentando não dormir para não ter pesadelos, apenas me alimentando. Comecei a perder o controle de mim mesma. Não sabia mais se era dia ou noite, ou que dia da semana era. A irmã de Alberto me ligava às vezes, assim como meus irmãos, mas o resto do tempo eu estava isolada do mundo. Não tinha mais vontade de sair de casa. Uma tarde, estando eu deitada no sofá, tentando assistir um pouco de televisão, senti que tinha alguém comigo. Olhei para o corredor, e vi aquela figura pálida de novo, me encarando. Eu sabia que não estava sonhando. E sabia que o que estava vendo era real. A Musa ficou me olhando com sua mirada fria e seu sorriso perverso me fez arrepiar. Ouvi, então, uma voz perto de mim, a voz do garoto. –É agora. Chegou o momento. Você não aproveitou sua oportunidade, não fugiu. Ela pegou você, e pegou os seus.

Eu soube que ela me queria. Ela, que tinha infernizado minha vida, invadido meus sonhos, me fazendo enlouquecer. A Musa, parada no meio do meu corredor, queria terminar a destruição que tinha começado. De repente, entendi o que tinha acontecido com o menino suicida. E percebi que a única forma que ele teve de se livrar da Musa foi o suicídio. Ela tinha levado seus pais, como levou os meus, tinha levado o garoto à beira da loucura, como fez comigo. E ele tirou a própria vida. Eu não queria morrer. Mas, como me livrar dessa maldição? Eu tinha ficado atenta, olhando nos olhos aquela figura tenebrosa. De repente, como em um piscar de olhos, ela sumiu. Mas eu sabia que não iria embora. E não sabia como me libertar dela.

Um dia, eu decidi sair de casa um pouco. Talvez, se passasse umas noites fora, me livraria dessa presença assustadora que tinha invadido minha casa e meus sonhos. Talvez o que eu precisava era a companhia de outros seres humanos. Depois de ter decidido assim, fiquei mais calma. Comi em uma lanchonete o que me pareceu ser a melhor refeição que já tinha comido, entrei num hotel pequeno, mas bem arrumado, e paguei algumas diárias. No novo quarto, me sentia a salvo dos olhares malignos da minha perseguidora. Porém, tive um pesadelo. Desta vez eu estava no meu quarto, arrumando a mala para ir embora para sempre. Então, senti o olhar penetrante da Musa na minha nuca, e senti um arrepio, mas não olhei para trás. E ai, o garoto entrou no quarto, e me disse que não poderia fugir mais, porque havia perdido minha chance. Como sempre, me pegou pela mão e apertou firme, e, mostrando-me a janela do quarto, me disse que a única saída para mim agora era fazer o que ele tinha feito. Assim dizendo, me puxou para perto da janela, subiu no parapeito e pulou, me levando consigo. Acordei, gritando, e me encontrei no quarto anônimo do hotel em que tinha me hospedado. Eu soube, nesse momento, que o garoto tinha razão. Mesmo estando em outro lugar, os pesadelos iriam me perseguir, porque eu não podia viver sem dormir. A morte foi se mostrando para mim como um descanso. Nela eu não sonharia mais, não teria mais pesadelos, a Musa não iria me perseguir. E resolvi que, se devia fazer algo, tinha que fazê-lo agora, antes de me arrepender da minha decisão. Então, abri a janela de madeira do hotel, puxei a janela de vidro e subi no parapeito. O vento frio golpeava meu rosto, e, na calma que me inundou depois de me decidir, parecia que o vento me dizia para pular logo, me beijando com seus lábios frios, me chamando para me abandonar a ele. Assim, olhando para baixo para me assegurar que a rua estivesse vazia (não queria que a Musa achasse outra vítima na minha morte), vi por última vez a cidade, iluminada com suas luzes noturnas, com os poucos carros que há por ai na madrugada circulando na rua, e ouvi o silêncio relativo que a noite trazia. E então, com um pequeno pulo e os olhos fechados, me lancei ao vazio, e senti o vento me pegando com seus dedos fortes enquanto assobiava nos meus ouvidos, se senti a gravidade me puxando, me puxando... E me libertei da Musa.

Viviana Carolina
Enviado por Viviana Carolina em 20/05/2012
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