A Musa parte 1
-Corra, corra, se quiser se salvar... O que está esperando? Você tem tempo ainda para fugir, mas o relógio está correndo. Corra!
Eu acordei assustada. Parecia-me ouvir, ainda ecoando pelas paredes do quarto, aquela voz tenebrosa me dizendo que tinha que fugir. Fugir? De que? Por quê? Minha vida era tão comum como a de qualquer outro.
A única coisa diferente era minha casa, que tinha comprado havia pouco tempo, parcelada por tanto tempo que ficava com medo de morrer sem que fosse minha totalmente. Era um lugar bonito, num bairro tranquilo, afastado do tumulto do centro da cidade. Tinha um muro que a isolava do mundo exterior, e, apesar de ser antiga, era bem feita e bem cuidada, com uma varanda que a rodeava toda. Quando me mudei, pensei que esse era o melhor dia da minha vida. Afinal, nada como uma casa nova depois de um coração partido. No segundo andar ficava meu quarto, pequeno de uma forma aconchegante, um banheiro e uma porta que dava numa espécie de armário. Embaixo das escadas tinha outra porta, e o vendedor me disse que ai era onde ficava a despensa dos antigos moradores. A minha vida continuou como sempre, eu trabalhava quase o dia inteiro como recepcionista num hotel no centro da cidade, e podia ir almoçar a beira mar, o que era maravilhoso. Meu trabalho era estressante às vezes, mas gostava de poder falar com os turistas em diversas línguas, e o salário me permitia pagar a casa e viver bem. Afinal eu não gastava muito, já que não tinha muitos amigos, e geralmente ficava em casa, lendo ou vendo TV.
Uma tarde, no meu hotel aconteceu algo terrível. Um dos hóspedes, um garoto de uns quinze anos, suicidou-se. Eu estava saindo do meu turno, e ouvi o barulho da queda. O garoto tinha se lançado ao vazio, dede o décimo andar, praticamente no momento em que eu atravessava o saguão para sair do hotel. Uma multidão se formou ao seu redor, enquanto os seguranças do hotel tentavam conter a turba até a polícia chegar. Esse garoto era um cliente frequente, vinha com seus pais para passar a maioria dos feriados, e eu o conhecia pelo seu sorriso amável e por seu jeito de moleque levado. Parecia uma criança feliz, e sua morte me chocou imensamente, primeiro por ter sido testemunha direta, e porque apreciava o rapaz e a sua família. Depois desse dia, começaram os pesadelos. Primeiro foi a voz, fria como gelo, me instando a correr, a fugir. Ela interrompia os sonhos mais inocentes, enchendo-me de um pavor gelado que penetrava minha consciência até que acordava tremendo, com um suor frio correndo pelo meu rosto. Depois, as coisas ficaram ainda piores. Uma noite, em que cheguei um pouco tarde em casa, não consegui conciliar o sono, de forma que fui à sala e liguei a televisão, enquanto esquentava água para fazer chá de camomila. De repente, percebi que alguma coisa estava errada. A sala estava um pouco separada do resto da casa por um corredor comprido. Eu sempre fechava as janelas desse corredor, assim como do resto da casa. Eu era meio obsessiva com a segurança, e olhava várias vezes se tinha fechado bem as portas e trancado as janelas. Eu tinha feito isso essa noite também, mas vi que a luz do luar estava penetrando por uma das janelas do corredor. Era uma janela pequena e oval, igual às outras, que tinham sido pintadas de um azul opaco por algum morador anterior. Eu detestava as janelas pintadas, que não deixavam entrar a luz, mas sempre as trancava bem. Essa estava escancarada. Eu senti o vento frio entrar e golpear meu rosto, soprando meus cabelos. Fechei a janela, e esqueci o assunto.
Essa noite, quando consegui finalmente conciliar o sono, sonhei com o garoto. Eu estava com ele num caminho sombreado por árvores altas e robustas. Ele estava em silêncio, e simplesmente andávamos, até que em algum momento ele tomou minha mão. Foi uma sensação terrível, sua pele estava fria e dura como pedras, e quando tentei soltar-me ele apertou com força. Depois olhou dentro dos meus olhos, e sua angústia invadiu meu ser. Ele começou a gritar, e a correr, me puxando com ele pelo caminho, que se fazia cada vez mais empinado, e eu corria atrás dele até que, sem saber como, nos encontramos num quarto de hotel, desses hotéis baratos de camas duras e assoalho poeirento. Ele seguia prendendo minha mão, mas não me olhava mais, simplesmente estava de costas, e o silêncio enchia o lugar. Eu tentei me livrar do seu aperto de novo, e ele me puxou com força contra ele, subiu no parapeito da janela e pulou no vazio, me levando junto com ele. E ai, enquanto caíamos, ele me disse: - Você esperou demais. Já não pode escapar.
Acordei tão assustada que não consegui mais dormir. Parecia ainda tinha o menino agarrando minha mão. Senti um arrepio quando vi minha janela totalmente aberta. Eu tinha-a fechado, como sempre. Quis saber mais sobre esse menino que assombrou meu sonho. Lembrei-me de que na última vez que ele se hospedou no hotel não vi seus pais. Acessei os registros dos hóspedes, em um momento em que o trabalho estava andando devagar, e confirmei minha lembrança. Só uma pessoa tinha ocupado o quarto 1091 nesse final de semana, o garoto. Depois, em casa, procurei na internet alguma informação sobre os pais do menino, que eram pessoas bem conhecidas. O que achei me surpreendeu, e me fez sentir mais interessada ainda no menino. Vários meses antes de ele tirar sua vida, os seus pais morreram. Ninguém sabia as causas das mortes, simplesmente um dia tinham amanhecido na sua cama, mortos. Não teve sinais de violência nos seus corpos, nem a porta tinha sido arrombada. O garoto tinha ficado em choque durante muitos dias, e, interrogado pela polícia, tinha falado algumas coisas sem sentido. O jornal não dizia o que.
Passou bastante tempo antes de voltar a ter pesadelos com o garoto. Depois de um tempo deixei até de pensar nele, e no que tinha acontecido com seus pais. Minha vida estava indo bem: comecei a namorar um velho amigo, meu trabalho estava prometendo uma promoção, meus pais viriam me visitar no final do mês. Uma noite eu estava me arrumando para sair a jantar com Alberto, meu namorado, e ouvi um barulho vindo do teto. Parecia o estalo de madeiras batendo uma na outra, e achei que fosse algum galho de árvore que tivesse caído no telhado, já que estava ventando muito lá fora. O céu prometia um temporal. Alberto ligou avisando que ia demorar a vir para me buscar, porque o trânsito estava horrível. Eu terminei de me maquiar e decidi aproveitar o tempo para terminar de ler um livro que tinha começado e deixado pela metade havia um tempo. Quando ele chegou, eu deixei o livro aberto, virado em cima da mesa que eu tinha do lado da minha poltroninha. Depois de uma noite adorável, mesmo com a tormenta que começou a cair justo quando chegamos ao restaurante, voltei à minha casa. O que achei me gelou o sangue nas veias, como se diz. Ao entrar, um vento frio golpeou meu rosto, e percebi que as janelas da casa inteira, pelo menos do piso interior, estavam abertas. Meu livro não estava mais na mesa, estava fechado em cima do sofá. A água penetrava pelas janelas abertas e tinha molhado o assoalho, formando pequenas poças de água. Eu não consegui me mexer durante um tempo. Não sabia se gritar, sair correndo, ou simplesmente entrar e fechar as janelas. Pensei em ligar para Alberto, afinal ele não devia estar longe, tendo apenas me deixado em casa, e foi o que fiz. Ele voltou, enquanto eu esperava no portão de casa. Não me importei nem um pouco em me molhar. Quando chegou, entramos juntos em casa, ligamos todas as luzes. Ele me ajudou a verificar se tinham forçado a fechadura, fechou as janelas e me ajudou a secar o chão. Tudo parecia em ordem, não faltava nada em casa. Só o livro tinha mudado de lugar. Eu não entendia como era possível que todas as janelas estivessem abertas, quando eu as verificava duas vezes antes de sair. Alberto me disse que talvez a força do vento as abriu, afinal eram velhas. Do livro, ele só me perguntou se eu tinha absoluta certeza de que o tinha deixado na mesa perto da poltrona. Eu disse que sim, eu me lembrava bem, porque era ali onde geralmente o deixava. Ele ficou comigo essa noite, e eu, depois de tomar uns quantos chás de camomila, fiquei abraçada nele até conseguir dormir. Essa noite voltei a sonhar. Dessa vez, eu estava no meu trabalho, e ouvi a voz gelada, que me mandava fugir. Eu obedeci, mas parecia que não avançava e, quando olhei atrás, o garoto estava atrás de mim, querendo me alcançar. Eu não parava de correr, até que cheguei, sem saber como, a minha casa, e vi uma moça muito bela que me olhava desde a janela da sala. Eu senti muito medo e não quis entrar em casa. O garoto veio e me pegou a mão, e seu contato, frio como pedra, me fez gritar. Acordei com a voz do garoto me falando: - Você não pode mais fugir. Ela já a alcançou. Alberto não estava mais do meu lado. Eu não consegui mais dormir, pelo qual fiquei assistindo televisão até o momento de me preparar para ir a trabalhar.
Tudo estava pronto para a chegada dos meus pais. Como minha casa só tinha um quarto, eu iria dormir na sala, e já tinha preparado o colchonete, arrumado meu quarto e feito um espaço no guarda-roupa para que eles pudessem acomodar suas coisas. Também tinha pedido uns dias de folga e preparado um roteiro de todas as coisas que iríamos fazer juntos. Fazia quase um ano que não via meus pais, que moravam em outro país desde que eu saí de casa, e estava emocionada com a sua visita. Eles já conheciam Alberto, mas agora o tratariam como genro, em lugar de ser simplesmente meu amigo. Esse dia eu trabalharia, eles chegariam ao hotel e todos juntos iríamos para minha casa, que eles ainda não conheciam. Porém, nada foi como eu tinha planejado. Meu turno terminou e eles não tinham chegado ainda. Eu fiquei no saguão do hotel, olhando a porta para ver se chegavam. Liguei para o celular do meu pai, mas dava caixa postal. O mesmo aconteceu com o celular da minha mãe. Estava cada vez mais preocupada, quando meu chefe me chamou ao seu escritório. Ele primeiro me perguntou se eu não tinha visto o jornal, mas como eu estava trabalhando até meia hora atrás não tive oportunidade. Então ele olhou nos meus olhos, me mandou sentar, e me contou. Tinha acabado de receber uma ligação da polícia. O avião em que meus pais viajavam tinha sofrido um acidente no momento da aterrissagem, pegando fogo. Tinham conseguido salvar os passageiros, mas alguns ficaram presos no fogo, morrendo sufocados pela fumaça. Eu já imaginava o resto. Ele me disse que meus pais tinham ficado, junto com outras duas pessoas, presos no fogo, e estavam mortos.
O chão começou a se mexer embaixo dos meus pés. Eu vi o rosto do gerente se esvair até ficar como um borrão na minha frente, e depois vi tudo escuro. Ainda bem que estava sentada, pois minha força tinha ido totalmente embora. Eu só conseguia pensar nos meus pais, em tudo o que iríamos fazer, em todo o tempo que se passou sem vê-los, sem falar com eles. Não sei o que aconteceu a seguir, tudo na minha cabeça é muito nebuloso. Lembro-me que o gerente disse que teria que identificar os corpos, ligar para a polícia, ou algo assim. Eu creio que liguei para Alberto, pois a figura dele ao meu lado em cada momento penoso desse e dos dias seguintes é a única coisa clara em tantas lembranças escuras. O funeral foi alguns dias depois disso. Meus irmãos, que moravam perto dos meus pais, vieram para o funeral, e me prometeram que se encarregariam de todos os trâmites de sucessão que teriam que fazer no país onde moravam. Eu confiava neles, e não queria saber de ter que mexer com documentos. Sentia-me culpada, afinal eles morreram por vir a visitar-me.