Saindo da Rotina

O castelo era o mesmo, a pintura impecável, o tapete fofo e o veludo vermelho que cobria algumas paredes. Livros, muitos deles. Objetos de prata finamente polidos que refletiam o brilho fraco do lustre imponente. Cadeiras fofas, almofadas ricamente trabalhadas e enormes cortinas compunham a beleza daquela sala. À noite, como sempre, seria agitada. Ele não se sentia empolgado como antes. Esqueci de mencionar os espelhos, havia uma sala só para eles. Três enormes espelhos que guardavam um segredo mortal. Ele olhava ao redor, mantinha aquele local impecável sozinho, pegou o hábito da compulsão por limpeza há algumas décadas.

A noite chegou rapidamente, ele ainda estirado no sofá mantinha os olhos fechados. Não pense que ele está dormindo, isto é impossível. Enquanto degustava o vinho, de uma safra rara, ele pensava em sua longa vida, em todas as coisas que presenciou. Relembrava seu primeiro dia naquela forma, o terror que perpassou seu ser e a herança que recebeu. Deslizou o dedo pela borda da taça, sorriu para um espelho sem ver seu reflexo. Presas enormes puderam ser vistas, passou devagar a língua pelos lábios. Pousou a taça na mesinha e apoiou os cotovelos nas pernas. Olhou seu lustre detalhadamente. Suspirou novamente, dirigiu-se para seu quarto. Uma enorme coleção de roupas o aguardava, deslizou os dedos frios por todas e escolheu a que mais se encaixava para a ocasião. Vestiu seu corsário azul marinho, colocou uma camisa branca e por cima um casaco também azul marinho que continha cordas e botões dourados. Calçou botas negras. Prendeu o cabelo em um rabo de cavalo baixo.

Retornou para a sala principal, serviu-se de mais e vinho e sentou-se. Um fio de cabelo teimava em pousar em sua testa alva, ele não ligou. As horas passaram rápidas e ele ouvia ao longe os convidados chegarem. O sorriso deu um toque sombrio a sua face. Manteve-se imóvel, não era difícil agir assim para um predador. Diferente dos outros dias, o lustre principal estava acesso e o seu brilho destacava a riqueza do local. Os convidados chegaram encapuzados, com tochas nas mãos e quase todos revelam um pavor no olhar. Ouvir o galopar de tantos corações causava frenesi naquele milenar ser. Com o som de um trovão a porta foi arrombada, a luz se ausentou do local. Apenas sombras medonhas, produzidas pelas tochas, eram vislumbradas.

-Tenham cuidado, ele pode estar em qualquer lugar. Usem as tochas. _Falou uma voz rouca e trêmula_

-Não se preocupe senhor, estamos alerta. _Outra voz, esta mais enérgica, tranquilizou a todos_

Sem se mover no sofá ele olhava devagar a comitiva, sorria desdenhoso. Cada coração era um chamariz para seu instinto, cada rio de sangue pulsante secava-lhe os lábios. Ele escolheu o que tinha o melhor cheiro. Lamentava-se por não haver nenhuma mulher na comitiva, o gosto destas é sempre melhor. Ficou de pé e a sala de espelhos ganhou vida. Riu da ingenuidade mortal. Três da comitiva, que tinha um total de cinco, caminharam seduzidos para os espelhos. Manteve-se de pé, observou que o mais cheiroso ia para a sala adjacente, era o mais corajoso. Inclinou-se devagar e mais rápido que o seu pensamento seja capaz de raciocinar ele abateu o primeiro, o líder. Nada foi ouvido nem mesmo um gemido. Os dentes cravados na jugular encontraram o sangue pulsante, ele bebeu o néctar devagar sentindo na língua o gosto ferroso, sorriu. Sugou até o corpo ficar enxuto. Sentou-se novamente, coçou o queixo e balançou a cabeça. Suas virgens faziam barulho demais. Gritos, injúrias, quebradeira; pânico e pedidos de clemência eram o que se ouvia daquela sala. O silêncio reinou novamente, não pense que ele se esqueceu do herói da noite.

Caminhando sorrateiro e alerta pelo corredor, ele não se assusta com as imagens horrendas que decoram aquele espaço. Na sala o outro dispensa suas virgens, que sem tocar o chão voltam para seus espelhos. Ele salta e se agarra no teto, gosta do efeito que a sua imagem real causa nos desavisados. Rasteja sem fazer barulho, observa e um sorriso cintilante molda sua face. Com um salto espetacular se posiciona de pé na frente daquele que cheira melhor, não existem palavras que definam a expressão dele.

-Hoje é o dia da sua morte, aberração! –A voz enérgica parte para cima dele, armado com todas as coisas que ele acredita serem capaz de extirpar a semi-vida daquilo._

-Não tenha tanta certeza meu caro, seu sangue só aumenta minha força e determinação.

Um salto, um corpo que voa para longe, sangue que escorre de um corte profundo na cabeça. A determinação não lhe abandona, ele se levanta cambaleante e ganha um bravo! jocoso. Munido de coragem inabalada, ele ataca com água benta, causando feridas profundas na pele da aberração. Um grito monstruoso é ouvido e seu corpo é arremessado para longe, tendo agora o braço direito quebrado. Ele geme baixo, seus olhos enchem-se de lágrimas e ele se afasta do mal.

-Tolo mortal, está água imunda apenas me fere. Vocês não aprendem mesmo! _A voz gutural exprime o ódio de ter a feriada aberta, ele caminha novamente para cima do outro_

-Venha aberração, venha receber o que tenho para você._A voz antes enérgica agora vacila um pouco_

-Estaca? Alho? O que você tem mais para mim? _Diz a criatura agora exibindo sua vestimenta humana_

Ele desliza até o outro, aperta sua garganta levantando-o. O olhar da vítima não exprime apenas o vazio e ele não reluta. A criatura observa aquilo e não entende. Observa mais e se pergunta se tudo aquilo vale a pena, se viver daquela forma ainda lhe traz prazer. Solta a garganta e o outro cai num baque oco. A criatura se afasta a escuridão.

O sol desponta devagar, um dos dias mais claros já vistos naquelas paragens. O outro com seu braço quebrado ganha os jardins do imponente castelo, ainda não acredita que saiu vivo daquele castelo. Da sacada de um dos quartos ele presencia uma cena memorável. Um homem alto, branco e de cabelos negros o observa. Ele para e olha fixo, faz o sinal da cruz. O homem permanece imóvel. O sol caminha rápido iluminando o jardim, o lago e começa a tocar a sacada. Ele continua a observar e não acredita em seus olhos. Caminha devagar, agora não precisa ter pressa. Olha novamente na direção do castelo e fala para se mesmo num sussurro.

-Todos têm seu dia de tédio, até mesmo os imortais.

FIM

Valéria Oliveira
Enviado por Valéria Oliveira em 20/05/2012
Código do texto: T3678198
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