Dia Sangrento
Estava deitado sobre o manto negro da morte, tudo parecia tão sereno, o mundo podia ter parado de repente, e era isso que havia acontecido.
Estava cercado por uma platéia desamparada, as pessoas ao meu lado provavelmente não se moviam, permaneciam de olhos arregalados, assustadas, entretanto seus gritos jaziam presos naquele intervalo de tempo que meu subconsciente havia criado, como se o tempo tivesse dado um tempo para eu compreender toda aquela tragédia, isto é; “se eu ainda tinha algum subconsciente”.
Levantei-me e por reflexo resolvi enxugar o rosto, ainda sentindo vestígios acalorados daquela gota quente em minha testa, porém ela havia secado e seu rasto havia desaparecido. Meu coração estava fora do compasso. Percebi que não estava bem e com a visão ainda turva avistei o motorista do carro, ele estava com as mãos à cabeça, as lágrimas presas a sua face enquanto um olhar cercado de melancolia abraçava seu espírito.
Pude ver também o inexperiente policial que segurava seu radio quase que colado aos lábios, apenas mais um jovem de seus dezoito ou dezenove anos ao máximo, que decerto acabara de passar em um concurso e estaria em seus primeiros dias exercendo aquela honrosa função.
O garoto fardado estava atônito, a expressão rancorosa em seu rosto dava indícios de um possível estado de choque, era como se ele tivesse acabado de disparar uma bala certeira, mas ainda assim o homenzinho insistentemente tentava acionar o socorro.
A minha frente, havia também algumas crianças, que na calçada à margem da rua olhavam inertes para o corpo ao meu lado.
A pobre professora que escondia a beleza de seu rosto por detrás de seus óculos de lentes espessas vislumbrava de semblante perturbado suas próprias mãos, em pânico, um olhar desolado e apreensivo. Lágrimas secas como chuva de inverno visitavam suas bochechas e se afogavam na chuva de sentimentos que ela mal tentava conter. Seus punhos cerrados e trêmulos agarravam-se a algo o qual queria se livrar, mas ao mesmo tempo desesperadamente ela segurava aquilo com todas suas forças.
Olhei para o céu, aquela tarde me trazia sensações múltiplas, ódio, amor, tristeza e muita, muita dor. Vi as nuvens passageiras que carregadas levavam a chuva para algum outro lugar longe dali. O sol intenso e imenso flutuava entre suas próprias chamas, mas nem mesmo todo esse seu calor aqueceria suficientemente aqueles corações que ali haviam se partido.
O mundo ao meu redor desmoronava, enxerguei o apocalipse com meus próprios olhos que até então deviam estar vendados por uma força que de certo eu desconhecia.
Avistei o meu corpo. Ele estava derramado ao solo, tingido de sangue. Mais atrás estava minha moto despedaçada, sua frente afundada na dianteira do carro daquele mesmo motorista. O mesmo homem que ainda mantinha as mãos a cabeça.
Olhei para o chão e vi minhas entregas, seis pizzas grandes. Lembrei-me da pressa, da mísera gorjeta que ganharia por aquele trabalho, mas que daria ao menos para comprar duas caixinhas de leite para minha filha tomar antes de ir para a escola.
Pensei nela, minha mente trouxe aquele rosto angelical, senti o toque de seus ainda pequenos cachos encaracolados, lembrei-me da sensação confortante de sentir a leve respiração dela sobre meu corpo, e minha doce imaginação fez com que sentisse o abraço afetuoso e inocente, aquele mesmo abraço que eu sempre recebia ao chegar a minha casa.
Olhei para as caixas entreabertas, amassadas e manchadas por aquele vermelho carmesim que até poderia ser comparado com catchup, mas não, era meu sangue, era o seu sangue.
Murmúrios invasores de meu sofrimento, sussurros de espanto e de reprovação por tamanha tragédia fizeram com que o relógio da vida voltasse a se mover.
O choro calado dos estranhos que se aglomeravam como urubus carniceiros. Não bastasse isso tudo, um cão sarnento, gordo e fedorento, chegou abanando o rabo. O animal tinha uma enorme ferida em suas costas. Uma bicheira que revelava a carne viva e pútrida que era rodeada de moscas que pousavam sobre aquela fétida ferida. O animal maltratado pelo desleixo da sociedade lambia o sangue e mastigava simultaneamente aquela pizza com enorme prazer, enquanto que quase sorria de felicidade por ter encontrado um lanche tão apetitoso.
Senti meus olhos em brasas e uma imensa vontade de chorar chegou junto a soluços secos e inaudíveis, entretanto lágrimas não existiam, não existiriam mais, nunca mais.
Caí de joelhos sobre mim mesmo, minha alma era o que restava de minha vida, atravessei meu próprio corpo como se ele não existisse, e entendi que estávamos separados para sempre, e eu estava morto.
Tentei segurar-me com as próprias mãos, mas elas escorregavam no ar sem ao menos sentir o calor que ainda restava em minha antiga pele. O sangue, aquela gota que eu sentira brotar de minha testa, estava lá, guiada pelo rasto de uma enorme ferida, a carne esparramada pelo manto de asfalto negro.
E por fim a vi, a linda criança, seus olhos inocentes, e vi a professora ainda segurando o pedaço da blusa que se rasgou quando ela tentou puxá-la para si. Um único e misero descuido e lá estava ela na frente do carro, lá estavam todos eles. O motorista havia desviado, mas bateu contra minha moto que vinha acelerada.
A criança reconheceu-me imediatamente, segundos para que tentasse correr até mim e um segundo para sentir o fino barulho de sua camiseta rasgar-se e mais um feche de luz para que seu pequeno corpo fosse esmagado pelo carro do policial que freou bruscamente ao vê-la, mas sem tempo e tampouco reflexo ele a acertou em cheio. O corpo bateu contra o asfalto e seus ossos quebraram-se.
Enquanto eu olhava para trás e via a minha pequena filha que havia acabado de abanar a mão para mim, com seu corpo dilacerado sobre a avenida, senti um baque e assustei-me com o carro que me acertava em cheio.
Tudo porque a vida é assim, uma intensa correria. O tal capitalismo, minha pressa em fazer aquelas malditas entregas. A falta de atenção do homem que ouvia a musica no rádio. O acaso que colocou aquele jovem policial dentro do carro de policia, com as sirenes ligadas, sem motivo algum, apenas com o intuito de ganhar alguns minutos no transito.
Eu estava morto, minha filha também, mas o estranho era que eu ainda não a via. Olhei para aquele sol brilhante e intenso e descobri que aquele não era o sol. Era um anjo a levando embora. Ela não me reconhecia, apenas seguia de mãos dadas com ele, flutuando, cada vez mais distante e mais imperceptível, até que ambos se perderam de meus olhos.
Confuso, vi a ambulância chegar. Minha esposa desceu do carro de meu irmão e correu de encontro ao corpo já coberto por aquele cínico pano branco que a cobria. Ela estava aos gritos, inconsolável e agressiva. Amaldiçoava Deus e a mim, e a toda sua vida. Ela simplesmente desistiu de viver.
Abruptamente senti-me puxado por uma força maior, como se um imã me fisgasse e quando percebi estava sendo arrastado por essa mesma força na direção de meu corpo. Foi quando ela se levantou e veio na direção da maca que seguia para ambulância. Um médico tentava a todo custo me reanimar. Ela então segurou minha mão e gritou:
- Você não vai morrer, eu não posso perder vocês dois! Não me deixe sozinha agora! - Foi aí que eu apaguei, me vi cercado por uma escuridão tremenda. Horas ouvindo vozes, sem enxergar nada, como se estivesse preso num cofre escuro. Trancafiado com meus maiores anseios. As horas se tornaram dias, os dias meses, até que no sétimo mês a luz venceu a escuridão e eu vi a luz, a luz dos olhos apagados de minha esposa que se abrilhantaram ao ver os meus piscando em câmera lenta. Ela sorriu para mim, me abraçou e disse:
- Seja bem vindo meu amor. – Olhei-a e meus olhos se encheram de lágrimas mais uma vez. Ela estava sentada, usava um vestido longo, estava linda, divina, estava grávida. Sem forças para falar apenas a ouvi dizer. – Um mês depois eu descobri que tinha engravidado, é uma menina, amor. O nome dela será Angélica, pois decerto ela deve ser um anjo.
Daquele dia em diante nunca mais falamos naquele amaldiçoado dia, aquele terrível dia sangrento.
Fim!