O velho do chapéu de palha

Lara era uma garota de boa vida, acostumada aos desafios da cidade grande, talvez isso a tenha feito subestimar as pessoas da pequena cidadezinha de São Miguel onde passava as férias. Há pouco mais de uma semana na casa dos tios, sua pele branca, cabelos loiros e olhos verdes, despertavam os olhares masculinos por onde passava, sorria disso com a prima. Sabia que a cidadezinha de cinco mil habitantes era dada a lendas e tinha medo de um sujeito qualquer que diziam rodeá-la à noite, mas não dava importância.

Naquela noite decidiu ir a festa no pequeno clube local. Muita bebida, dança, gritaria, algazarra e brigas que os seguranças apartavam. Queria beijar, namorar, mas nenhum dos rapazes lhe agradava, até a chegada de um jovem alto e forte, rodeado de amigos. Aquele parecia ser diferente.

Logo estabeleceram contato. Com a conversa descobriu que ele não era de São Miguel, mas de outra cidade alguns milhares de habitantes maior. Os beijos começaram ainda na pequena boate, até que decidiram sair. Falou à prima que chegaria em casa antes do amanhecer, e que não se preocupasse. Cumplice na ação, a prima cedeu de cara e desejou-lhe que aproveitasse a noite.

O jovem de nome Gonçalves era bem de vida, funcionário de uma estatal, guiava um Sedan. Lara ficou encantada. Entraram no veículo e se distanciaram um pouco do centro da cidade, saindo das ruas de paralelepípedos e entrando em uma estrada que não conhecia. Perguntou para onde iriam, e ele respondeu que para um local “mais isolado”, conhecia bem aquelas redondezas. Estacionou em uma estrada de terra, sem nenhuma casa nas proximidades. Embora preocupada, Lara se deixou levar. Conversavam pouco e beijavam muito. Até que Gonçalves tentou avançar, e pedir mais do que Lara queria. Ela começou a se contorcer e tentar afastá-lo, mas não conseguia, não tinha forças.

- Pare! – disse em desespero.

- Relaxe, eu sei que você queria isso e vai gostar muito! – disse ensandecido o jovem.

- Socoooooooorrro! – gritou. Ao que parecia, não havia ninguém para ouvir.

Houve um solavanco no carro, como se tivesse sido balançado. Gonçalves ergueu a cabeça. “O que teria sido isso?”, pensou. Achou melhor não dá atenção e continuar o que estava fazendo, até sentir um segundo e um terceiro solavanco. Sentou no banco do motorista, e apurou a vista, olhou para todos os lados. Saiu do carro. Lara permanecia no banco do carona, segurando a blusa e chorando, olhando para o seu agressor.

Gonçalves andou ao redor do carro, olhou os pneus, parecia não haver nada de anormal. Fez mais uma volta em sentido horário. Quando ia entrar de novo no veículo, um homem velho, aproximadamente 1,60 metros, negro, de barba branca, vestindo calça e camisa negras, bastante surradas pelo tempo, usando sandálias de couro e um chapéu de palha, surgiu.

- Que susto me deu seu velho imbecil! – disse Gonçalves.

- Deve parar com o que estava fazendo com essa moça, ela parece não estar gostando – retrucou.

- Vá pro inferno! Isso não é de sua conta! Se não sair eu bato em você – disse o jovem subestimando o idoso a sua frente.

Com a mão esquerda o velho empurrou a porta do carro e a fechou.

- O que isso? – quis saber o jovem.

- Deixe essa menina ir e você também poderá partir tranquilamente– respondeu.

- Idiota! Você pediu isso velho asqueroso! – Gonçalves deu um passo em direção ao idoso e desferiu um soco com o punho direito.

Não contava que o idoso fosse segurar seu soco com a mão esquerda como se pegasse uma pequena bolinha de borracha. À medida que apertava o punho, os gritos de Gonçalves ecoavam pela noite. Ele dobrou os dois joelhos, implorando para que o soltasse. Ainda dentro do carro, Lara assistia a tudo incrédula. “Como um idoso pode se defender de um jovem atlético?”, pensou.

- Agora vai deixa-la ir?

- Sim – respondeu Gonçalves, chorando. – Me solte, por favor.

O velho deu a volta pelo carro e abriu a porta do passageiro.

- Você deve vir comigo minha menina. Seus tios devem estar preocupados. Já está perto do alvorecer.

Sem pensar duas vezes ela saiu. Os dois começaram a andar pela pequena estrada de terra, em direção à cidade. Finalmente ela perguntou:

- Conhece meus tios?

- Oras, conheço todo mundo dessa cidade – respondeu ele – e também sou muito conhecido.

Ela o olhou, incrédula. Acostumada a valorizar o luxo da cidade, a garota não via importância no idoso que caminhava mansamente ao seu lado, além do fato de tê-la salvo de um estupro.

Caminharam longo tempo em silêncio.

- Ainda não agradeci. Muito obrigada por me salvar.

- Não foi nada, apenas não gosto que mexam com as pessoas dessa cidade, ou que sejam ligadas a ela – respondeu o velho.

- Você mora na cidade? Não o vi nesses dias – ela comentou.

- Claro que moro, moro nas redondezas e zelo por todos.

Eram 4h30mim. O dia começaria em breve. Já se avistava as luzes dos postes. Começavam a chegar na área mais urbana com casinhas bonitas e ruas calçadas.

- Não me disse seu nome – falou a garota.

-Me chame apenas de Velho do Chapéu de Palha, gosto desse apelido – respondeu com um sorriso.

- Bem chegamos, se seguir por essa rua vai dar na casa dos seus tios – explicou apontando com o braço – até outro dia Lara – disse o velho.

-Obrigada, espere! Não disse meu nome, como sabia? – quando se virou para encara-lo ele não estava mais ali. Tinha sumido. Ela parou por um momento sentindo algo estranho.

- Havia algo diferente nesse sujeito – falou baixinho e seguiu.

Quando chegou em casa seus tios estavam agitados. Os dois acordados. Quando a viram pararam de repreender a filha e voltaram-se para ela. Como poderia ter feito aquilo com eles. Lara pediu desculpas e foi sincera ao explicar o que aconteceu inclusive a parte do socorro. Quando descreveu o homem que a tinha ajudado, houve silêncio. Ela percebeu que os três ficaram brancos, parecia que seus olhos saltariam das órbitas.

- Não é possível – disse o tio – Ele é só uma lenda.

- Mas muitos afirmam o terem visto – disse a mulher – Então Lara foi mais uma.

Lara não entendia do que estavam falando. Até lhe explicarem mais uma vez sobre uma antiga lenda local de um homem velho que habita os arredores da cidade. Ele teria sido morto há muito tempo, e seu espírito agora vagueia por aí, em busca de boas ações. Todos tinham medo, mas muitos afirmam já o terem visto. Lara empalideceu. “Tinha sido ajudada por uma alma penada”, não teve dúvidas. Passado o susto, o dia transcorreu normalmente.

Seguindo o contrario do que faria uma pessoa sensata, ela saiu mais uma vez à noite e se encaminhou até um ponto distante das casas, onde tinha visto o velho pela última vez. O relógio apontava 20h30mim.

- Se pode me ouvir – falou em voz alta- vim apenas agradecer mais uma vez. Obrigado por me salvar.

Esperou um momento. Não viu nada, baixou a cabeça, virou-se e foi embora.

Sentando em uma pedra a certa distância o velho a olhava, do escuro. Seus olhos eram pesarosos.

- De nada – disse para si mesmo.

Pôs-se em pé e começou a andar. A sua sina continuaria.

FIM.