Conto que minha mãe contou.

CONTO QUE MINHA MÃE CONTOU

Este caso, acontecido em 1966, como o afirma minha genitora, foi o mais horripilante que ela presenciara. Presenciara, afirma, pois se deu com um compadre e vizinho seu.

Assim ela conta:

“Meu falecido compadre (que DEUS o tenha se assim o mereceu) chamado Bastião, era o homem mais caridoso que conheci. Durante “toda” sua vida, só pensou em ajudar ao próximo. Às vezes, quando as pessoas perguntavam a ele – pra quê tanta caridade Bastião? Ele respondia: "é pra retardar a morte, meu filho!" E as pessoas seguiam seus caminhos sem entenderem a resposta.

Bastião era casado com a comadre Ana. Uma mulher compreensiva, que amava o marido e os filhos, que eram três meninotes. Compadre Bastião um dia confessou-me:

- Sabe, comadre, só tenho medo de uma coisa nesta vida.

- De quê, compadre?

- Da morte, comadre, da morte!!!

- Não se preocupe, compadre, todo mundo tem sua hora marcada, e não há jeito de mudar isso. Por tanto, aproveite bem a vida, enquanto pode, e esqueça essa intrusa visitante.

- Eh, comadre, será que não há jeito mesmo?

Disse e ficou com os olhos longe... a cismar.

Bem, compadre Bastião continuou sua vida em prol dos outros, muitos e muitos anos. Até que, certa manhã, após uma noite, bem disposto – segundo comadre Ana – não teve forças para se levantar da coma. Como ele sempre saís às cinco horas, logo que passaram das sete, comadre Ana foi a galope até o quarto do marido, ver o que estava havendo. Abriu a porta e o encontrou pálido, tremendo de febre e, os olhos vidrados. Comadre Ana aprontou o maior fuzuê:

- Chamem o médico, pelo amor de Deus! Meu marido está morrendo! Chamem o médico...

Logo a vizinhança acorreu:

- Que é isso, Dona?

- Que houve?

- Acalme-se!

- Traz água com açúcar!

Quando ela conseguiu se acalmar e explicou o acontecido, alguém chamou o Doutor Aranha, que era médico da família. Em menos de trinta minutos ele chegou. Fez algumas perguntas do tipo “comeu algo diferente, apanhou chuva?” e coisas do gênero. Então dirigiu-se ao quarto do enfermo. Assim que bateu os olhos em Bastião, diagnosticou:

- Sem esperança!

O doutor Aranha não era homem de tecer rodeios. Reuniu todos na sal, deu sua versão médica sobre o caso e repetiu a frase:

- Sem esperança!

Se foi dando, a si mesmo, a incumbência de mandar vir o padre Bento, para a extremunção. Momentos depois, chegou o padre. Cumprimentou a todos com o seu “Louvado seja N.S.J.C.”, e subiu ao quarto do moribundo. Fez todo o seu ritual místico e se foi, com a certeza do dever cumprido.

Comadre Ana voltou ao quarto do marido, abriu a janela e sentou-se ao lado dele por alguns momentos. Mas, sentindo que em poucos segundos seria tomada por uma crise de choro, precipitou-se para a cozinha, sentou-se à mesa e, debruçada, debulhou-se em lágrimas infindáveis.

Em dado momento, o Moribundo conseguiu movimentar com os olhos e depois com a cabeça. Olhou ao redor de si e, sentiu a imensa solidão que o envolvia. Olhou pela janela e viu o azul celeste, cheio de vida e energia. Achou tudo injusto e ingrato... e formulou o mais atroz pensamento que o ser humano poderia formular nesta hora:

- Vivi até aqui, fazendo sempre o bem... estou apenas com quarenta anos! Teria muito ainda por fazer... Ah! Se eu vivesse mais quarenta anos, nem que fosse só para fazer o mau!

Mal formulou tal pensamento e sentiu uma energia jamais sentida antes, a envolve-lo numa sonolência profunda. Dormiu feito anjo. Até o dia seguinte, ninguém havia providenciado nada para o enterro, tamanha era a dor e o desconsole de todos.

De repente, todos se agitaram, confusos e interrogativos. Ouviram passos vindos do quarto do morto. Todos os olhares se voltaram para aquela direção e, petrificados de medo, estacaram-se. A porta abriu-se e, por ela, apareceu nada menos que o Bastião! Após o primeiro momento de arrepios de cabelos, desmaios, histerismos, etc, o compadre falou:

- Uê! O que se sucede aqui, minha gente? Há algum defunto na família?

Comadre Ana, que passara a noite debruçada na mesa da cozinha, assomou pela porta da sal e, ao ver o marido são e salvo, precipitou-se para ele, exclamando:

- Bastião, tu tá vivo! Tu tá vivo, Bastião!

Ele replicou:

- É claro, mulher, tenho muito que gozar a vida ainda! E vocês, - completou – podem ir pra suas casas que a festa acabou!

A partir daquele dia, tudo mudou na vida de comadre Ana. Bastião não trabalhava mais, cometia todo tipo de atrocidades com os animais, ensinou ao filho caçula como esfolar um gato vivo... Coitada da comadre, não entendia nada. Sofria. Chegou a preferir vê-lo morto, mas logo se arrependeu de tal pensamento.

Certa tarde, estava toda a família reunida na sala. Era aniversário do caçula. Comadre Ana fizera uma festinha íntima e me convidara. Aceitei de bom grado. Bastião bebia e falava grosserias. Eu duvidava do que saía dos seus lábios. De repente, ele levantou-se da mês, e tentou violentar comadre Ana na frente de todos! Seus olhos estavam em brasa. De sua boca escorria uma baba nojenta e pegajosa. Comadre Ana, que já estava uma mulher acabada, franzina com tanto sofrimento, encontrou forças, não sei de onde, e empurrando-o gritou:

- Tu não é meu marido! Meu marido está morto. Por Deus, vá de retro Satanás!.

Ouviu-se um estrondo, um grito sinistro ecoou por toda a vizinhança. Um cheiro de enxofre espalhou-se por toda a casa. Ah. Foi horrível! Estremeço só de lembrar. No lugar onde estava o compadre, digo, o demo, havia um esqueleto e, ao seu lado, brilhava uma aliança.

Comadre Ana, com os olhos cheios desse eflúvio divino que Deus doou aos homens, pegou a aliança e, colocando-a no dedo daquela carcaça humana, exclamou:

- Este é o meu marido!

Isto eu vi, com estes olhos que a terra há de comer.

Mas a história não acabou ainda. Os sofrimentos de comadre Ana ainda não cessariam. Parecia sina.

Bem, foi feito um exorcismo na casa, pelo padre Bento. Os restos mortais de compadre Bastião foram incinerados, por vontade de comadre Ana. Parecia que tudo voltava ao normal.

Passados alguns meses, comadre Ana mandou me chamar e falou-me, apreensiva:

- Comadre, estou com um pavor imenso a sufocar-me a garganta e o ventre.

Procurei tranqüiliza-la:

- Calma, comadre, Deus é bom, pode ser do compadre Bastião...

Ela nada respondeu. Apenas me olhou, angustiada. Eu não vou descrever aqui o sofrimento de comadre Ana durante a gravidez.

Finalmente nasceu a criança. A expectativa era imensa, pois, apesar de só eu saber concretamente das suspeitas de comadre Ana, todos os vizinhos cochichavam:

- Filho do demo...

Nasceu normal. Um lindo e loiro bebê. Para alívio da comadre e meu, e frustração dos vizinhos.

Bem está o que bem acaba! Comadre Ana era só sorrisos!... Era o renascimento de compadre Bastião. Ah, depois da bonança vem a tempestade. Talvez, no fundo do seu coração, comadre Ana soubesse, pressagiasse a terrível verdade. Certa vê, em minha casa, me pedira um punhal de prata, com o cabo em forma de cruz, que ficava sempre pendurado na parede. Dei sem cogitar, pois também pressentia. Passou-se o tempo. A criança completaria três anos em vinte e cinco de dezembro.

Noite de Natal! Os sinos das igrejas badalavam a meia noite... Os três irmãos brincavam no terreiro iluminado. O aniversariante dormia no quarto. Comadre Ana havia preparado uma pequena ceia. Então, foi ao quarto que outrora fora de seu falecido marido e que agora pertencia ao caçulinha. Eu não sei explicar o porque de levar consigo o punhal de prata. Havia muito que o tinha deixado esquecido na gaveta do armário da cozinha. Talvez, procurando algum utensílio, para usar nesta data tão especial. Talvez houvesse visto e resolvido tirá-lo dali.

Ao abrir a porta do quarto, viu seu filho dormindo placidamente. Mas, a janela? Estava certa que a fechara. Um frio subiu-lhe pelo corpo, e só. Comadre Ana estava moldada com tantos sofrimentos, não perdeu a calma. Dirigiu-se lentamente para a cabeceira do filho e acariciou-lhe os cabelos. Sentiu um ligeiro arranhão na mão... Levantou o punhal e enterrou-o no coração do filho.

Ecoou por toda a vizinhança um choro esganiçado de criança... Comadre Ana morreu um mês depois. Durante aqueles trinta dias, não falou, não comeu, não saiu do se quarto. Só orava em pensamento, de joelhos.

Os filhos foram morar com uns tios. A casa foi demolida, anos mais tarde, por uma empresa de outro estado. No lugar foi construída uma casa de negócios. Os donos, que eram três irmãos, ficaram milionários!

... Dizem que fizeram pacto com o demo...”

POETADADOR
Enviado por POETADADOR em 01/02/2007
Reeditado em 06/08/2018
Código do texto: T365499
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