Aconteceu no Cemitério
Isto aconteceu por volta dos meus onze anos de idade. Era rotina, após as aulas, fazer sempre o mesmo percurso a pé; uma rua muito comprida, arborizada e de poucas casas. A população ainda não havia crescido no bairro. Por isto, os terrenos vazios, altos, de matagais, ainda predominavam sobre as residências e muitas, ainda assim, viviam vazias e abandonadas. O armazém do Sr. Haroldo era a minha parada obrigatória para algumas guloseimas e momentos de distração ao disputado pimbolim.
– E então, garoto. Não acha hoje um dia mais do que apropriado para aceitar o meu convite?
A chuva começava agora a cair com toda a força e, por pouco, não cheguei ali ensopado.
– O senhor chama isto de dia apropriado? Onde andam os seus fregueses? Nunca vi este local tão vazio como está agora.
– É que Acabo de abrir. Já estava dia claro quando entrei em casa. Não preciso dizer de onde vim...
– É claro que não – respondi, tirando a jaqueta molhada, jogando-a de qualquer jeito sobre os bonecos do pimbolim.
– Não faça isso! – gritou o Sr. Haroldo. – Vai me estragar o forro; é assim que trata sua diversão favorita?
– Peço desculpas – disse, retirando o casaco. – Falando em diversão, como pode alguém sentir prazer em visitar um cemitério e passar lá horas a ponto de amanhecer o dia? Só de falar já me sinto arrepiar.
– É porque ainda não sabe nem faz ideia das horas felizes que ali desfruto.
– E nem faço questão de saber. Para falar a verdade, não sei por que perguntei. Vamos mudar de assunto, por favor – concluí.
– Agora é que não, garoto. Olhe para esta chuva; isto é o começo de muitas horas de água.
Ele tinha razão. O ribombar dos trovões crispavam-me os nervos de pavor. Sempre fora assim comigo: os relâmpagos e as tempestades sempre me deixaram apavorado. Saiu de trás do balcão de onde comigo falava para olhar lá fora. Pegou de um ferro e baixou até meia altura a porta de aço, pois que a chuva ameaçava molhar sua loja.
– Se quer companhia para brincar, esqueça isso por hoje. Eu mesmo não deixaria o conforto de minha casa para enfrentar este tempo; onde andam seus amiguinhos?
– Não estive, na verdade, com nenhum deles hoje. Retornando às aulas após três dias de gripe não fiquei sabendo da excursão a Petrópolis. Foi uma pena ter saído de casa e dar viagem perdida.
– Nunca terá sido perdida a sua viagem.
– O que o senhor está querendo dizer?
Os olhos do Sr. Haroldo arregalavam-se assustadoramente quando ele falava de sua paixão favorita: o cemitério. A enorme barba grisalha que lhe escondia quase todo o rosto destacava nessas horas, além do olhar tétrico, um conjunto de dentes amarelados, desuniformes.
– Que tal uma troca de interesses? – sugeriu.
– Depende do que o senhor chama de “interesse”.
– É simples: você quer companhia para o pimbolim e eu quero mostrar a você o meu passatempo favorito. Vai recusar este acordo?
– Acho que não teria problema se eu tivesse o dinheiro para jogar.
– Não se preocupe com isso – disse, expondo aqueles dentes horríveis. – Você hoje é meu convidado.
– Ok. Se for assim, não vejo problema em aceitar – respondi contente porque ia brincar e, ao mesmo tempo, orgulhoso pelo plano que já trazia em mente.
– E então, está se divertindo? – perguntou.
– Bastante. O senhor até que não é mau nisto; dá-me um bocado de trabalho para vencê-lo.
– Acho que agora já é o suficiente, não vou conseguir vencê-lo, mesmo – ele disse, após perder a última partida por 5 a 2.
– Esforce-se mais um pouco, não é tão mau. Vamos! Darei mais algumas chances.
– Negativo, meu rapaz. Você vai me dar a última chance. Em seguida, partiremos. Combinado?
– O senhor é quem manda – falei apreensivo.
Ele estava de costas para a rua. Assim, ficava mais difícil para eu por em prática o meu plano que era, simplesmente, sair dali correndo a qualquer momento.
– O senhor deve saber que a posição de quem joga influi muito no resultado; quem sabe, pode não ser este o seu caso?
– Agradeço a sugestão, mas vou continuar desse lado – falou, já um tanto impaciente, lançando a primeira bola.
– Posso ir ao banheiro? – eu disse, após o término da partida.
– Claro, já sabe o caminho. Fico aguardando.
Ao retornar, não vi sinais do Sr. Haroldo. Onde teria ido?
Não pensei duas vezes. Agarrei a jaqueta e corri para ganhar a rua. Mas, qual não foi a minha surpresa e o meu susto quando caí e, por muito pouco não arrebentei a boca no chão, não fosse a própria jaqueta ter amortecido o choque da minha queda.
– Aonde pensa que vai, espertinho?
Era a voz do Sr. Haroldo, agachado ao lado do balcão, próximo à porta de saída, pois já suspeitava da minha intenção.
– Então, é essa a confiança que me passa, seu moleque?
– Não, Sr. Haroldo ... Quer dizer... Eu...
– Sente-se aí e me espere – apontou para uma cadeira; eu obedeci. Desceu em seguida e raivosamente a porta de aço, cerrando totalmente o local.
Eu não cabia em mim de tanto medo. Comecei a sentir no baixo ventre aquela dorzinha incômoda; isto me era familiar, denotava perigo à vista. Justamente com esta sensação, uma vontade incontrolável de gritar, anunciar ao mundo o meu desespero. Não conseguia livrar-me de tal estado, mesmo ciente de que isto seria o mesmo que nada; quem poderia ouvir meu apelo?
– Acompanhe-me – disse ao retornar, fechando atrás de nós a porta dos fundos do armazém.
Diante de minha visão estendia-se enorme corredor murado. Das residências que o ladeavam eu não via mais do que as pontas dos telhados e algumas chaminés fumegantes. Queria poder entender o que ia ao espírito do Sr. Haroldo. Somente me daria conta de sua excentricidade no momento em que penetrássemos no interior do cemitério.
Ao final do corredor estendia-se uma vasta área totalmente arborizada. À medida que caminhávamos, minha ansiedade aumentava. O efeito bucólico da paisagem deveria, pela lógica, causar em mim um desprendimento natural, mas não era isso o que eu sentia. Ao contrário, a sensação era de tolhimento mental e físico. Sentia-me arrebatado por estranha força. Queria correr, mas o medo impedia-me totalmente. A tranquilidade do Sr. Haroldo, na frente, a passos de mim, era a causa da minha inação. E se tivesse uma arma ou, quem sabe, deixado armadilhas pelo caminho? Tal era o meu estado; não conseguia controlar meus pensamentos embaralhados. Deixei, por fim, me conduzir. Sei que tínhamos pela frente alguns minutos de caminhada. Sabia que a rota convencional para o cemitério não era aquela; estávamos indo de encontro à parte de trás, sem acesso ao interior, logo, teríamos que contorná-lo. Ali era um trecho meio intrincado de floresta onde eu mesmo nunca havia passado.
Não mais chovia, restava a friagem que incomodava e um vento insistente vindo de encontro ao peito, gelando a face. Alguns charcos no caminho não representavam obstáculos para o Sr. Haroldo. Era como se, olhando-o, visse nele uma criança grande. Despreocupadamente, atascava ambos os pés no atoleiro e não parecia sequer dar por isso. Tínhamos que atravessar um trecho de mata escuro e muito úmido. Não existiam trilhas, eram espécies altas, ricamente copadas, de cujas ramagens desciam grossos pingos. O chão, musgoso e escorregadio, requeria cuidados no pisar, mas, o que me enchia de pavor era o pensamento de haver por ali cobras e isto acabou por dissipar o resto da minha autoconfiança e do meu autocontrole.
O Sr. Haroldo percebeu a minha mudança ao virar-se e ver-me paralisado. Por ter, a princípio, desconfiado da minha reação. E, chegou a puxar-me pelo braço para que eu continuasse. Exprimiu sua ira contra moleques iguais a mim e encheu-me de ameaças. Desculpei-me o quanto pude. Falei do meu horror a cobras e, por fim, para dobrar a sua falta de sensibilidade, mesmo porque alcançara o auge da minha resistência, pus-me a chorar. Ele então, mais por impaciência do que por dó do meu estado, acabou cedendo: abrandou pela primeira vez o tom de voz sem, todavia, abandonar a peculiar arrogância e o jeito autoritário. Enaltecendo sua coragem, explicou-me porque ia quase diariamente àquele lugar tétrico. Elogiou-me pelo fato de ser um privilegiado, pois, nos quase três anos em que o fazia, era eu o primeiro a acompanhá-lo.
– Mas, Sr. Haroldo, diga-me por caridade, o que é que o senhor vai fazer neste lugar? – perguntei, ainda um tanto amedrontado, nem tanto agora com ele, mas por causa do pensamento no cenário lúgubre e misterioso de um cemitério.
Sendo eu não mais do que uma criança e, a julgar pela minha inocência, um cemitério seria o último lugar do mundo que gostaria de visitar em vida, embora já soubesse, de muito, ser isto inevitável a qualquer um. Ali, porém, não tinha eu vontade própria; mais do que forçado a uma circunstância, via-me presa de um maníaco. Não tinha, portanto, escolha.
Consegui afastar parte da minha apreensão após sairmos da mata. Surgiu à frente um denso arvoredo, um chaparral coberto de faias. Ao longe, avistava o muro do cemitério alongando-se encosta acima e vislumbrei as criptas enfileiradas, parte delas refletindo a luz solar que, timidamente, se espraiava. Sepulcros suntuosos, aqui e acolá, encimados por estátuas, ornamentos marmorizados, pequenos obeliscos quebravam a triste monotonia. Mausoléus havia que eram como casas, com portões de grade, varandas e muitos outros enfeites que, dada a minha distância, não conseguia identificar. Descemos a pequena elevação para atravessarmos o bosque, após o que, começamos a contornar o muro.
– Esperemos aqui um pouquinho, não vai demorar – disse ele essas palavras no momento em que me fazia parar.
Estávamos ainda a muitos metros do portão. Fez-me sentar junto com ele na beira da calçada e mostrou-me algo tirado do bolso de sua jaqueta. Embalados grosseiramente em papel jornal havia maços de cigarro e uma garrafa com bebida alcoólica. Explicou-me então o Sr. Haroldo porque ia diariamente ao cemitério. Segundo me disse, logo começaria por ali o movimento de pessoas e carros, mas ele tinha que esperar o coveiro e era aquele o ponto de encontro. Isto se tornou uma rotina macabra na vida do Sr. Haroldo desde que há três anos perdera a mulher, paixão maior e insubstituível de sua vida; contou-me pormenorizadamente a sua história. O ar cansado, a magreza extrema e o nervosismo que emanava deste homem davam veracidade a cada palavra e, ligando os fatos, fui forçado a acreditar e a concluir o que antes apenas desconfiava: a doença obsessiva do Sr. Haroldo urgia um tratamento imediato. Contudo, eu não acreditava ser aquilo possível; teria que ver com meus próprios olhos para acreditar.
O homem a quem ele esperava surgiu em uma esquina e, pela aparência deste, aliada à fisionomia do Sr. Haroldo, que logo se iluminou, concluí ser ele o coveiro; não passava de um velhote mal vestido e viciado. Recebeu satisfeito o embrulho e deixou nas mãos do outro uma chave; recebeu também algumas moedas e se afastou, sumindo para dentro do cemitério. Esperamos impacientes a abertura ao público. Já ali dentro, em contato com outras pessoas, me vi mais calmo e sem medo; diria a esta altura que minha sensação maior era de uma pulsante curiosidade. Caminhamos bastante entre tumbas e mausoléus e, confesso, me distraía na leitura das inscrições lapidárias com que cruzava e na apreciação de pormenores, pois tudo para mim era novo e fascinante.
O Sr. Haroldo já nem ligava a minha presença. Aproximamo-nos de um mausoléu de impressionante beleza. Os nomes dos que ali se encontravam nada tinham a ver com a sua família. Sem dar por mim, abriu o portão de grades. Entramos. Os esquifes ali estavam em número de seis. Ele dirigiu-se a um deles em especial que destoava dos demais em sua totalidade. Era bastante largo e com furos em uma das laterais. Obnubilado, aproximou-se e, ao destravá-lo após erguer a tampa, pouco faltou para que eu tivesse um desmaio. Ali estava, semi embalsamado e totalmente conservado, o corpo de uma mulher, a esposa do Sr. Haroldo. Ao lado deste, espaço para mais um corpo e era onde este homem apaixonado, ou antes, doentio dormia todas as noites.
– Este é o meu lar. Não vejo a hora de adotá-lo definitivamente – disse, como despertando de um transe e sem olhar para os lados.
– Até a noite, minha querida – completou, beijando a face da morta e virou-se a minha procura, mas eu já ia longe nessa hora.