Última Crônica
Cativo em meu insano delírio nada mais me resta além de escrever, escrevo na esperança de que alguém encontre minhas anotações e, talvez, possa me ajudar. Por onde começar? É difícil contar o que aconteceu, eu mesmo ainda não consigo compreender totalmente. Acho melhor me apresentar primeiro, meu nome é Carlos Eduardo, Cadu para meus leitores, sou cronista do caderno Cidades do jornal Século. Acabo falando, ou melhor, eu falava de tudo em minha coluna, minha marca registrada foi sempre o desdém pelo cotidiano da cidade, as crônicas que escrevo sempre foram amadas ou odiadas, não há meio termo. Mas essa minha última crônica, digo última, pois não sei se terei forças para escrever mais alguma, é sobre um cronista que se envolveu e uma situação no mínimo insólita, para não dizer insana, apavorante ou qualquer outro adjetivo que se possa usar para descrever o inexplicável. Se alguém achar esse texto, imploro que me ajude, não sei ao certo como, ou pelo menos conte minha história.
Sempre quando estava sem ideias para minha crônica semanal eu escolhia algo para falar mal, minhas críticas sempre foram destrutivas, como já disse, é minha marca registrada. Fui à Bienal Municipal do livro na última semana, pelo menos acho que foi na última semana, já perdi a noção do tempo. Estava sem ideias para escrever e resolvi ir lá para conseguir algum material para meu texto, sempre encontro nessas bienais algum escritor fajuto que me rende uma boa crônica. Não é novidade para ninguém que a bienal é fraca, parece mais um desses sebos onde encontramos alguma velharia encalhada. Até mesmo nessa situação eu não me contenho, e foi essa atitude que me colocou nessa situação desesperadora.
Encontrei um estande em uma área afastada, e ele conseguia superar todos os outros, um velho de aparência mórbida expunha livros e revistas com a temática de horror. Sua banca contava com vários exemplares de revistas CreepShow, livros de autores como Alan Poe, Lovecraft, Blackwood, entre outros consagrados da literatura de horror. Sua aparência de certa forma fazia parte do clima que ele queria passar, “parecia ter morrido e esquecido de cair”, escrevi em minha crônica sobre a bienal, e ainda completei “uma criatura daquelas não precisou de muita maquiagem para o seu visual Frankenstein”. Eu me arrependeria amargamente disso.
Conversei com ele um bom tempo, falei que eu faria uma matéria sobre a bienal e ele havia me interessado, o velho pareceu gostar. Ele falava bem baixo e próximo da minha cara, tinha um hálito terrível e seus sussurros eram algumas vezes incompreensíveis. Confesso que nossa conversa rendeu bastante, poderia ter escrito muitas coisas boas sobre meu estranho entrevistado e a bienal. Mas dessa forma não teria graça, com certeza eu decepcionaria meus fiéis leitores, optei por olhar o lado ruim e depreciar o evento e principalmente o velho vendedor.
No domingo minha crônica saiu pela manhã, um sucesso, recebi vários elogios de meus leitores. Se vocês me acharam cruel de escrever sobre o velho, vocês precisam ver que coisas meus leitores me escrevem ao comentarem meus textos. Porém, entre os e-mails de elogio recebi um que pareceu não gostar da minha crônica, dizia: “Cada texto contém o poder de tornar real o que está contido nele. Você não deveria fazer chacotas das pessoas, pois seu texto sempre pode prejudicar alguém”. O remetente era anônimo, não consegui responder, pois o endereço não aparecia, achei estranho e deletei, possivelmente algum hacker.
Na noite de segunda-feira recebi outro e-mail, continha um texto intitulado “Passos na escada”, sobre um homem que estava sozinho em seu apartamento e de repente começou a ouvir passos pesados na escada. Era um texto tenso e que fazia mergulhar em sua leitura, mas fui retirado da minha concentração ao ouvir passos na escada ao lado do meu apartamento. Levantei da cadeira em um sobressalto, quando olhei para o texto, minha ação estava descrita nele. Fiquei assustado e apaguei o maldito texto, os passos cessaram, fui até a porta conferir e não havia ninguém nas escadas.
Dei por encerrado minhas atividades do dia e desliguei o computador. Algum engraçadinho estava tentando me assustar. Mas o texto não saía da minha cabeça, tomei um bom banho, preparei um café, quando ia para meu quarto passei pela porta do escritório e notei que o computador ainda estava ligado, nem a janela do e-mail estava fechada. Eu estava tão perturbado naquela hora que possivelmente poderia ter pensado em desligar o computador sem tê-lo feito, mesmo agora não me recordo bem se desliguei ou não. Na tela uma mensagem de e-mail recebido, abri e novamente era do meu amigo anônimo, dizia: “deveria ter lido o final da estória, agora não saberá o que aconteceu com o personagem, boa noite”.
Fiquei alarmado, como ele sabia que eu não havia lido, resgatei o texto deletado da lixeira da caixa de email e o abri, estava em branco. Desliguei apressado o computador, retirei a tomada da parede, certamente era um hacker, e dos bons, ou talvez alguma vítima das minhas crônicas. Não podia ser o velho da bienal, no estado em que ele se encontrava nem computador ele devia ter.
Sentei-me na poltrona e tomei mais uma xícara de café, estava mergulhado em meus pensamentos quando os passos na escada recomeçaram. Eles pareciam ao mesmo tempo estar descendo dos andares de cima como também parecia estar subindo dos andares de baixo, e se dirigiam a minha porta. Permaneci imóvel, sentado na poltrona, olhando para a porta, os passos pararam em frente ao meu apartamento e uma batida incessante se iniciou, parecia querer derrubar a porta. “Quem está aí”, perguntei, mas não obtive respostas, só as batidas de alguém e parecia apressado para que eu abrisse.
Caminhei até a porta com passos vagarosos, olhei pelo olho mágico da porta, não vi ninguém, mas as batidas continuavam. Irritado abri a porta numa velocidade para pegar o engraçadinho, nem uma viva alma do lado de fora. Naquela hora comecei a ficar com medo, corri até o escritório e peguei minha arma, coloquei uma cadeira ao lado da porta e esperei uns instantes, os passos recomeçaram, abri a porta com a arma em punho e nada, mas ainda pude ouvir passos apressados descendo as escadas dos andares de baixo.
Tranquei a porta com o coração palpitando, liguei o computador, entrei no meu e-mail e lá estava uma nova mensagem recebida, intitulado “fragmentos”, dizia o seguinte: “enquanto o assustado escritor lia novamente seu email sentiu uma presença em seu apartamento, algo parecia estar parado às suas costas, algo que mesmo sem ver fez com que um calafrio percorresse seu corpo”, me virei subitamente para trás apavorado, e nada. Voltei-me para o computador e continuei lendo: “nada, era isso que havia às costas do nosso perturbado personagem, mas embora ele não visse ninguém, sabia que não estava sozinho, algo o acompanhava naquele prédio...” parei de ler novamente.
Aquilo já estava indo longe demais, resolvi ligar para a polícia, porém meu telefone não funcionava, nem o fixo e nem o celular, da mesma forma o computador estava sem conexão com a internet. O que me apavorou realmente, já que eu acabara de receber um email. Peguei minha arma e fui até o vizinho do andar abaixo do meu, pois o apartamento ao lado estava vazio a meses, pedir para usar o seu telefone. Esmurrei a porta e ninguém atendeu, tentei o outro e nada também. Desci mais um andar e nos dois apartamentos ninguém atendeu. Tomei coragem para descer até o térreo, o senhor Omar da portaria estaria lá. Contudo o medo era muito grande, mesmo estando armado, pois meu prédio estava todo irregular havia meses, faltando lâmpadas nas escadas e o elevador não funcionava. Quando me preparava para descer lembrei que o vizinho do apartamento acima do meu era policial, certamente me ajudaria.
Enquanto subia para o sétimo andar pude ouvir passos apressados vindo dos andares de baixo, apavorado comecei a correr, e os passos pareciam se aproximar rapidamente, cheguei ao apartamento do policial e comecei a esmurrar a porta rapidamente, foi quando ouvi passos descendo a escada também, em pouco tempo eles me alcançariam, esmurrei com muita força, tão desesperado que não conseguia nem gritar. Quando me preparava para desistir ouvi alguém vindo em direção à porta, estava aliviado, porém os passos na escada não cessaram, comecei a forçar a porta para entrar e quando ela abriu cai para dentro. Qual não foi o meu espanto e horror quando percebi que ninguém havia aberto a porta, e o pior, eu estava de volta ao meu apartamento, liberei-me por um instante de meus terríveis pensamentos e corri para fechar a porta. Os passos pararam em frente a ela e uma batida ensurdecedora teve início, corri para pegar minha arma que estava no chão e disparei três vezes em direção à porta, as batidas cessaram, não tive coragem de abrir para ver.
Sentei na cadeira e vi que havia um novo email, hesitei em abri-lo por um segundo, minha mão circulou trêmula sobre o mouse até que finalmente eu o abri e dizia “sentado em sua cadeira lendo esse fragmento, nosso perdido personagem sentia-se pesaroso por não ter lido o texto ‘passos na escada’ até o final. Não era de se admirar já que sua extrema vaidade o impedia de ler qualquer texto que não fosse o seu”. O abominável ser que me lançara nesse pesadelo assustador também era capaz de falar o que eu estava sentindo e pensando, seria alguém que eu conhecia? Retomei a leitura para ver se descobria algo, mas nas linhas seguintes dizia “Com um inédito interesse por textos alheios, o cronista procurou em vão uma saída para seu infortúnio. Seu senso de humor havia desaparecido, ele não achava graça alguma nessa crônica sobre sua vida”.
Afastei-me e quase lancei o meu computador na parede, mas me contive, lembrei-me da portaria, eu teria de encarar os passos na escada para chegar ao térreo. Recarreguei a arma e desci correndo, os passos recomeçaram atrás de mim, havia descido os seis andares até o térreo, mas não cheguei a lugar nenhum, as escadas simplesmente continuavam e andares e mais andares se revelavam. Foi quando percebi que todos os andares que eu descia eram o sexto, onde eu morava. Os passos começaram novamente a vir em minha direção e a porta do meu apartamento estava trancada, comecei a bater com força, empurrava tentando arrombar. Três tiros partiram de dentro quase me acertando, cai para trás e a porta se abriu revelando para meu terrível espanto que o autor do tiro era eu, olhou com a arma em punhos depois fechou a porta. Os passos na escada diminuíram, e pude ver que o autor dos passos também era eu, saltou minhas pernas e entrou apressado para o apartamento. Levantei-me atônito, um horror inexplicável me anestesiou de tal forma que só pude levantar e entrar também, não havia mais nada a fazer.
Não chorei, não gritei, simplesmente sentei-me em frente ao meu computador após receber meu último email: “Foi então que o desafortunado e mesquinho personagem percebeu que era inútil, não havia para onde ir. Seu mundo particular, de onde ele humilhou e desdenhou várias pessoas se tornou sua prisão, um labirinto de degraus, onde sua única companhia era ele mesmo”.
Não tenho mais medo, todo o meu terror e estranhamento inicial cedeu lugar a um amargo conformismo. Às vezes ouço as vozes de meus vizinhos, ando na escada e vejo-os passando, mas desaparecem tão rápido que não da tempo de clamar por atenção. Esses espectros da realidade e esses esporádicos sons, quase inaudíveis, só servem para trazer uma migalha de esperança, tão insidiosa quanto essa prisão em que fui lançado. Ás vezes acho que estou morto, preso no limbo, ou acredito que estou sonhando e que logo acordarei. Se os leitores desse texto puderem pelo menos dar algum sinal para eu saber se ainda existo faça, deixe um bilhete, escreva no meu computador ou nas paredes, nenhum de meus textos anteriores foi respondido, esse é meu último grito de socorro, por favor, entendam.
Arquivo morto do Jornal Século