Macabra coleção

Parado, em pé, braços cruzados, observava gravemente a coleção da qual sentia tanto orgulho. Franco sabia que as pessoas não entenderiam o seu gosto, por isso ainda não a tinha mostrado a ninguém, no entanto não ligava, havia algo de muito prazeroso em fazer aquilo. As suas 23 caveiras permaneciam uma ao lado da outra sobre as quatro prateleiras de madeira afixadas na parede do pequeno quarto pintado de braço, de tão pequeno, mais parecia uma dispensa, ou um armário embutido.

Sabia bem o que o tinha motivado a começar aquela coleção, o marasmo, a mesmice, queria fazer algo diferente, sinistro, imitar os personagens dos filmes de terror que assistia, e trazer mais emoção àquela vida de advogado. Casa, escritório, fórum, era a sua rotina diária. Há mais de um ano violou o primeiro túmulo, achou muito fácil. Foi ao cemitério local á noite, uma terça-feira, aproveitando o pouco movimento nas ruas, subornou o coveiro e este o deixou entrar e fazer o que pretendia. Depois da primeira aquisição não parou mais, queria aumentar a sua coleção.

Naquela noite, uma quarta-feira, enquanto apreciava os crânios de desconhecidos, hesitava. Estava vestido da maneira de sempre quando se propunha a fazer esse serviço, calçava um tênis preto, vestia calças jeans e uma camiseta de mangas longas também pretas. Essa cor era útil quando caminhava à noite pelo cemitério. A hesitação era causada pelos sonhos que o vinham perturbando nas últimas noites.

Em um deles se viu em uma cozinha com móveis antiquados. Uma mulher, usando um vestido azul claro com flores brancas, cozinha. Segurando o cabo da panela com a mão esquerda e mexendo o conteúdo com uma colher de pau na mão direita. Até aí seria tudo normal, o problema é que a mulher não tinha cabeça. Estava de costas para ele, mas quando o percebeu virou-se a fita-lo sem olhos. Estendeu os braços e espalmou as mãos como se pedisse algo. Caminhou em sua direção e ele acordou ofegando.

Em outro sonho estava parado na rua, e um garoto passou montado em uma bicicleta, o menino também não tinha cabeça. Quando o percebeu, parou de pedalar, desceu e caminhou na sua direção, também com os braços estendidos e as mãos abertas. Novamente acordou. Recusava-se a acreditar que os sonhos tinham algo a ver com a sua macabra coleção. Não era supersticioso. “Os mortos estão mortos e não precisam de cabeças”, pensava arrogantemente. Do alto de seus 32 anos não era casado e também não tinha filhos, ou seja, não tinha ninguém para quem contar os pesadelos, não procurou aconselhamento médico ou espiritual. Não precisava de ninguém.

Estava vestido para a ocasião, decidiu-se a não permitir que sonhos tolos o assustassem. Desligou a luz e saiu do quarto deixando todas as caveiras enfileiradas em cima de almofadas. Trancou a porta. Foi ao pequeno escritório que mantém em casa e pegou a bolsa preta com alça que usava para transportar o equipamento necessário para as violações. Nela constavam: uma toalha de algodão, um pé-de-cabra, um grande martelo, uma lanterna, luvas de borracha, um embrulho com mascaras usadas por cirurgiões. Saiu de casa e entrou em seu Corolla, dinheiro não lhe falta. O relógio que trazia no pulso esquerdo marcava 00h30min. Seguiu até o cemitério da cidade.

Já tinha violado túmulos no cemitério local oito vezes, em alguma delas não precisou subornar o coveiro, entrou sem ser notado. As outras violações ocorreram em cemitérios de cidades vizinhas. Nunca nenhum familiar tinha dado por falta dos ossos dos seus parentes. Ele procurava por túmulos de mármore de pessoas que haviam morrido há alguns anos, na certeza de encontrar caveiras cuja “limpeza” dos vestígios orgânicos fosse mais fácil. Lia os nomes nas lápides, mas não os decorava, não se importava.

Chegou ao grande cemitério local, passou direto e estacionou longe. Saiu do carro, foi ao bagageiro e pegou o seu “kit violação de túmulos”. Caminhou. Ficou feliz em perceber que não havia ninguém na rua, estava completamente deserta. Subiu a baixa calçada e foi até o portão, trancado. A casinha de um cômodo só do coveiro ficava próximo à entrada. Arriscou um grito:

- Seu João!

Não precisou chamar de novo, o barulho de paços acusava a aproximação do único coveiro, João Sousa, viúvo, 55 anos, um homem de expressão rabugenta. Ele o reconheceu de imediato:

- Você de novo?

- Sim. Vai me deixar entrar?

O coveiro ficou pensativo olhando para ele. Franco entendeu. Botou a mão no bolso e puxou uma nota novinha de R$ 50,00. João nem se mexeu. Puxou outra nota de R$ 50,00. Nada. Mais uma.

- Vamos, é tudo o que tenho! Exclamou Franco.

Ganhando apenas um salário mínimo, João mal conseguia sobreviver, aceitou. Destrancou o portão permitindo que o visitante entrasse. Depois de fechá-lo mais uma vez, sem trancar, o coveiro se despediu, deu as costas e dirigiu-se para sua casinha onde parecia assistir a um filme, enquanto caminhava exclamou:

- Espero que escolha um dos bons!

O coveiro nunca ajudava, apenas permitia a entrada do intruso. “Ladrão”, pensou Franco enquanto via João sumir na escuridão. Quem seria mesmo o ladrão? O certo é que sentia uma sensação estranha, mas já estava ali, e tinha gastado R$ 150,00 naquela empreitada. Continuaria. A sensação também.

O cemitério era bem iluminado, possuía postes de luz por toda a sua extensão. Não precisava de lanterna ali dentro. Olhou alguns túmulos até que se deparou com um, todo trabalhado em mármore branco.

- É esse! Exclamou baixinho.

Deitou a bolsa no chão, agachou-se, abriu o zíper, pegou as luvas e as calçou, em seguida colocou uma das máscaras no rosto, protegendo boca e o nariz e por último o pé-de-cabra. Agachado, começou a fazer força na lateral esquerda do túmulo, na fresta que separa a grande caixa da cobertura. Ouviu um estalo. Tinha conseguido separar a grande lápide de sua base. Agora era só empurrar. Quando ia começar sentiu um arrepio que lhe subiu pelas costas. Que sensação aterradora. Parou. Ainda agachado olhou ao redor. Voltou a empurrar, ouviu passos. Levantou de um pulo:

- Quem está aí?

Não houve resposta.

- É você João? Essa brincadeira não tem graça!

Silêncio.

- Estou armado! Mentiu.

Ligou a lanterna e apontou para todos os lados. Nada. Respirando fundo voltou ao que estava fazendo. Empurrou mais a lápide do túmulo até essa se afastar proporcionando espaço para ver o apodrecido caixão no seu interior. A visão veio junto com um cheiro insuportável. Antes de começar a mexer no caixão, mais um barulho. Quando virou a face, o choque o fez de um impulso chocar as costas contra a base do túmulo de mármore.

Seus olhos viam, mas não acreditava. Dezenas de pessoas sem cabeça formavam um semicírculo ao sei redor, estava pressionado contra o túmulo, sem ter como fugir.

- Quem são vocês?

O silêncio foi a resposta.

- O que querem?

Todos ergueram os braços ao mesmo tempo, estenderam as mãos e caminharam em sua direção. Sabia que queriam apenas o que era deles. O grito de terror foi rapidamente abafado.

Parado, João sentia o vento frio da manhã se mesclar com os primeiros raios solares, uma sensação muito gostosa, dessas que apenas as pessoas simples sabem aproveitar. O relógio marcava 6h30min. O dia começava.

Sem expressão alguma no rosto João observava o corpo sem cabeça, estendido no chão. Ao seu redor uma grande possa de sangue que tinha se espalhado e agora parecia grudado ao chão. Ao lado, um túmulo intocado. Enquanto observava, murmurou uma pequena frase que ouvira sua mãe pronunciar incontáveis vezes:

- Com os mortos não se brinca.

Virou as costas e dirigiu-se até a sua casinha. Estava com fome, ia preparar o café e nesse meio tempo ligar para polícia. “Nunca descobrirão quem fez isso”, pensou. Naquele dia cavaria mais uma sepultura.

FIM.