Curiosidade
Sabia que deveria entrar. Parado em frente à porta de sua residência Fernando observava a pequena casinha abandonada, muito próxima, do outro lado da rua. Desde criança lembrava-se de famílias que lá chegavam, mas não permaneciam por muito tempo. A velha história da casa mal assombrada, típico. Havia duas verdades: a primeira, não acreditava em uma letra do que diziam, e diziam muita coisa, fatos desencontrados e a segunda é que há mais de dez anos ninguém havia se mudado para lá. O progresso chegava à cidade, novos prédios eram construídos, mansões brotavam por todas as ruas, inclusive na que morava. A sua casa era muito confortável, era um jovem de 20 anos, estudante de Direito e não trabalhava, seus pais tinham dinheiro.
Mas naquela noite, após regressar muito tarde da universidade e se preparar para entrar em casa, viu alguém conhecido, ou melhor, conhecida. Agnes, sua linda colega de sala por quem acalentava um sentimento não correspondido, entrou na casa abandonada, acompanhada de mais duas pessoas, que pareciam ser homens. Não o perceberam observando ao longe. Quis saber do que se tratava. O que estariam fazendo ali? Àquelas horas? Em uma casa abandonada? Sabia que devia esquecer, entrar em casa, tomar banho, estudar um pouco e ir dormir. Olhou no relógio: 23h30min. A curiosidade o consumia.
Enganchou o chaveiro na passada da calça, e foi até a morada abandonada. Caminhou rápido. Ao chegar observou como estava decadente. Herança de uma arquitetura rudimentar. A fachada da casinha tinha forma retangular, com apenas sete metros de frente e três de altura. A tinta branca estava amarelada, em alguns pontos o reboco caia. Uma pequena janela e uma porta de madeira marcavam a sua entrada. A madeira estava bastante gasta, quase podre, com muitas frestas e rachaduras, consequência de dez anos de chuva e sol.
A porta estava entreaberta. Pode perceber uma pequena luminosidade no interior, algo muito fraco. Pensou em voltar, mas se decidiu a descobrir o que se passava. A curiosidade era a sua marca registrada. Abriu a porta vagarosamente. O rangido o fez praguejar em silêncio. Quando entrou pode distinguir um ambiente lúgubre. Uma vela negra estava acesa em cima de uma mesinha quadrada, no meio da sala. O único móvel. Olhou ao redor e viu paredes repletas de teias de aranha, com o reboco se soltando. O chão estava cheio de terra, não foi varrido há muito tempo. Viu a entrada para algo que parecia ser um quarto, mas sua atenção foi atraída para o ruído que ouvia ao longe.
Olhou e viu um longo corredor. Longo demais. Nunca tinha estado ali, mas percebeu que a casa era muito mais comprida do que larga.
Ao fim do corredor podia distinguir uma trêmula luz que também parecia ser emitida por uma vela. Seguiu resoluto. A curiosidade era maior que o medo, embora esse estivesse presente. A parte do cérebro que ainda raciocinava o aconselha-se a ir embora, mas continuou.
Caminhou vagarosamente sem fazer barulho. Um pé depois do outro. O corredor parecia ter 15 metros de comprimento. Passou por uma porta que dava para mais um quarto. Seguiu. O ruído se tratava de vozes humanas e diziam: “Vida. Vida. Vida”, repetidamente. Encostou-se à parede e continuou caminhando. Quando chegou na entrada da sala viu algo que jamais havia imaginado ser possível, todo o seu ceticismo morreu naquele instante.
Em pé, uma forma humanoide, com aspectos de alguém muito forte, completamente sombrio, tornando impossível descrever detalhes do seu físico. Não estava trajado, mas também não estava nu. À frente da criatura um filhote de cachorro, morto, sob uma poça de sangue que escorria de seu pescoço rasgado por uma faca enferrujada. Ajoelhados diante destes estavam Agnes, com sangue nas mãos, e dois rapazes imediatamente atrás dela, formavam um triangulo perfeito. Todos usando uma veste ritualística completamente branca.
Agnes e os dois estranhos olharam na sua direção, a criatura que estava de costas virou-se. Seus olhos vermelhos destacavam-se ante a face negra. Fernando o encarou. Sentiu como se aqueles olhos observassem através dele, lessem a sua alma. O desespero envolveu seu coração. Quis gritar, mas ao invés, virou-se e aos tropeções correu, tropeçou nas próprias pernas e foi ao chão. Ergueu-se e com as duas mãos apoiadas nas paredes, tentou manter o equilíbrio. Continuou a correr.
Quando chegava ao fim do corredor, duas pessoas estranhas que não tinha visto bloquearam a passagem, quando parou bruscamente escorregou e caiu. Pôs-se de pé. Ofegava. Sentiu uma presença desconfortável. A criatura estava atrás dele. Virou-se e a encarou. Parecia ter mais de dois metros de altura e nenhuma marca ou característica física além da forma humana e dos olhos vermelhos que o observavam como se pertencessem a uma boneca, sem expressão, sem vida. Enquanto olhava começava a ajoelhar-se sem entender o porquê, quando na realidade o que queria era continuar correndo.
De joelhos ouviu a doce e tranquila voz de Agnes que estava próxima à criatura:
- Não foi convidado para este ritual, Fernando. Sempre soube que era muito bisbilhoteiro, mas agora lamentará. Choraremos muito por você.
Quis gritar, mas lhe faltava voz. Não conseguia mais se mexer. A criatura aproximou-se, e a escuridão o envolveu. Os pais de Fernando deram por sua ausência na manhã seguinte.
Puseram toda a vizinhança em alerta. Chamaram a polícia, após 24 horas registraram o desparecimento. Realizavam buscas e nada. Nenhum pedido de resgate chegou. Parecia que ele havia simplesmente desaparecido. Uma semana se passou e os familiares permaneciam inconsoláveis. Ninguém jamais pensou em procurar na velha casinha abandonada. Através da imprensa toda a cidade soube do desaparecimento do jovem estudante.
Exatamente uma semana depois do sumiço de Fernando, Agnes chegou atrasada na sala de aula. Caminhou para sua cadeira que ficava entre as primeiras da turma, à direita do professor. Sentou-se, abriu o caderno, pegou a caneta, antes de começar a prestar atenção no que ele dizia e fazer anotações, olhou para o relógio: 18h45min. Ao final daquela noite, haveria mais um ritual. Haveria um novo sacrifício.
FIM.