Inferno 2.0

Acordei pela manhã, o dia estava claro, era um dia como outro qualquer, mas eu sentia que algo iria acontecer, como uma sensação ruim que se sente ao colocar o primeiro pé fora da cama. Fui até o banheiro como faço sempre, e escovei os dentes. Tudo normal, exceto pela terrível surpresa que tive quando me deparei com meu reflexo no espelho. Pasmei, ainda com a pasta de dentes dentro da boca, espumando como um cão raivoso. Para minha total surpresa, haviam chifres em minha cabeça. Não eram chifres comuns, desses que se vêm em vacas, bois, e outros animais desse tipo, eram enormes chifres de carneiro, compridos, anelados e curvados para trás.

Senti o terror tomar conta de meu ser. Como que para acordar daquele terrível pesadelo, esfreguei os olhos com força, e quando os abri novamente, não via mais os chifres. Uma sensação de alívio tomou conta de mim, pois enfim me dei conta de que estava sonhando acordado. Para ter certeza de que era apenas um terrível pesadelo, molhei o rosto, e o esfreguei o quanto pude com o sabonete, sentindo o frescor da espuma tocar em minha pele. Logo, enxagüei o rosto e o sequei na toalha, depois segui até a cozinha pronto para tomar o meu café da manhã como faço todos os dias.

O café estava com um gosto amargo, talvez o leite estivesse muito gorduroso. Tomei tudo de um só gole, e quando acabei ouvi uma voz, tão suave como a brisa que bate ao orvalho, sussurrando meu nome. Depressa, coloquei o copo de volta na pia e olhei em volta sem encontrar ninguém. “Talvez fosse a minha imaginação me pregando uma peça de novo” - pensei comigo mesmo.

Sem dar importância ao ocorrido, saí da cozinha e, enquanto andava pelo corredor escuro, senti um arrepio percorrer minha espinha de cima abaixo. Enquanto andava, escutava ruídos estranhos como os passos de um animal que se aproximasse. Voltei-me e olhei para todos os lados. Nada, eu estava sozinho e reinava o mais absoluto silêncio. Continuei a caminhar, agora mais devagar e sentindo cada passo de meus pés descalços no chão frio. “Chão frio?” Eu não estava sentindo meus pés, e num átimo de segundo olhei para baixo, para meus pés. “Minha nossa”, tomei um susto grande, ao ver que meus pés não estavam lá. De alguma forma, de alguma maneira, meus pés haviam desaparecido e em seu lugar haviam os pés de uma criatura demoníaca, com garras pontudas e pequenos esporões saindo dos calcanhares, como patas de um dragão. Desta vez não resisti ao susto, senti o peso de meu próprio corpo caindo enquanto meus olhos se escureciam, e, sem sentidos, fiquei estendido no chão.

De repente meus olhos se abrem, uma tontura passageira ainda me domina e luto para reconstituir em minha mente o que havia acontecido. Lentamente me ergo sobre os cotovelos e é então que vem à minha memória aquela terrível visão dos pés demoníacos que me fizeram perder os sentidos. Mas para minha surpresa não estavam mais lá. Como que por encanto, meus pés pareciam completamente normais, como sempre estiveram. Me apresso em tocá-los com as pontas dos dedos, me certificando de que estão mesmo ali, os aperto com ambas as mãos, e tenho a certeza de que a sanidade começa a me escapar.

Já de pé, procuro alguma explicação para essas visões. “Seriam mesmo visões?” A única certeza que tenho é que já não estou mais no domínio de meus sentidos. A própria realidade me escapa a compreensão, e atemorizado com a possibilidade de mais alguma visão, decido sair para dar uma caminhada.

Há uma multidão na rua, pessoas caminham de um lado para outro entretidas no seu dia a dia, como formigas perambulando por toda a parte. Carros andam de um lado para outro, de vários modelos, de diversos tamanhos, todos fazendo tanto ruído quanto podem. Sinto o cheiro da fumaça que sai dos escapamentos, um odor conhecido, pestilento, mas tão comum ao dia a dia da cidade. Penso em procurar um lugar melhor, mais tranquilo, onde possa respirar um pouco de ar puro, se é que ainda havia algum ar puro. Depois de andar, aos esbarrões em pedestres apressados que acreditam ter a primazia das calçadas, chego a um banco em uma praça, e me sento à sombra de uma acácia. Jogo meu corpo para trás e respiro profundamente, inspirando o ar e sentindo sua passagem até meus pulmões. Logo após, devagar, solto o ar preso e aquecido de meus pulmões, sem pressa, relaxando. É então que escuto aquela mesma voz, chamando meu nome, desta vez mais clara. Desta vez percebo que é uma voz feminina, doce, agradável como uma melodia de amor. Penso em abrir os olhos, mas os mantenho fechados com temor de perder o som daquela voz maravilhosa ao abri-los.

Alguém se senta ao meu lado, e num rápido reflexo, sem pensar, abro meus olhos para ver quem está ali. “Perdeu-se!” A voz que me era tão agradável e que por uma fração de segundo me trouxera uma sensação tão maravilhosa, sumira, e deparei-me com um senhor de uns setenta anos sentado ao meu lado abrindo o jornal na página de esportes. Me ocorre a idéia de fechar os olhos e procurar escutar de novo aquela voz que me chamava, mas nada acontece, apenas escuto o homem ao lado tossir.

Desisto de ouvir novamente aquela voz me chamar e reviro minha mente tentando encontrar alguma explicação para todos os acontecimentos desta manhã sinistra.

O homem ao lado de repente baixa o seu jornal e olha para mim, soltando um sorriso. Sem jeito eu retribuo e desvio a atenção, olhando para um pássaro que voa em volta de seu ninho num galho próximo. O velho volta sua atenção para o jornal, e, antes que eu perceba, senta-se mais alguém do outro lado do banco. Desta vez trata-se de uma senhora empurrando um carrinho de bebê. Ela senta-se, sem dizer nenhuma palavra olha para mim e sorri enquanto ajeita a criança no carrinho. De maneira educada eu retribuo seu sorriso, do mesmo modo como fizera para com o senhor sentado do outro lado.

Tudo parece calmo e tranquilo. Já recuperado das estranhas visões, me aproximo do carrinho para ver de perto a criança, esticando meu pescoço, e quase caio de susto.

Não havia nenhuma criança ali dentro, tudo que havia era um monte de panos envolvendo uma criatura de aspecto terrível. Era feia, toda verde, com a pele gosmenta e com grandes olhos negros. Quase morri de susto. Num único salto, pulei e me preparei para correr. Foi então que senti a razão comandar minhas ações, e lembrando de todas as outras alucinações, voltei a olhar a criança, e deparei-me com um lindo bebê, com bochechas rosadas e brilhantes olhos azuis, tão fofinha como se tivesse saído de um comercial de talco para bebês.

A senhora do carrinho de bebê notou meu estranho comportamento e perguntou se eu estava me sentindo bem. Foram as primeiras palavras que eu escutei naquela manhã. Soltei um grande suspiro e respondi que estava tudo bem, apenas o Sol da manhã estava muito quente. Ela voltou a sorrir de maneira gentil e me recomendou tomar mais cuidado com o calor. Sorrindo, me despedi e sai caminhando pela calçada, devagar, e sem conseguir tirar da cabeça a terrível criatura que havia visto no carrinho de bebê. Eu sabia que tudo não passava de loucura da minha cabeça, mas para me sentir mais seguro quanto a minha sanidade, me voltei uma última vez para ver se o velho do jornal e a senhora do carrinho de bebê ainda estavam lá.

Não estavam mais lá. Repentinamente sumiram todos, o banco estava vazio. Corri até lá, olhei em todas as direções me perguntando como poderiam ter sumido tão rápido. Sem entender o que havia acontecido, sentei-me de novo no banco, e foi então que percebi o silêncio. Olhei rápido para a rua, todos os carros haviam desaparecido, e todas as pessoas. Não havia mais nada nem ninguém em toda a rua além de mim.

Senti o desespero tomar conta de mim. “Que loucura era aquela afinal? O que estava acontecendo?” Pulei do banco e corri até o final da rua, só para me dar conta de que também não havia ninguém do outro lado. Corri na outra direção, e até a outra rua, e a próxima, até percorrer todo o quarteirão. Não havia mais ninguém, todo mundo havia desaparecido e o silêncio reinava absoluto.

Fechei os olhos e tornei a abri-los para que tudo voltasse ao normal, mas nada havia mudado, tudo continuava tão deserto quanto antes.

O céu estava claro, tomado de um azul intenso. Por estranho que pareça, não havia nuvens e, por mais que o Sol brilhasse, eu não sentia calor, mesmo depois de correr tanto e tão depressa eu não sentia o menor sinal de cansaço.

Parado no meio da rua deserta, bem embaixo do semáforo, ouvi de novo aquela voz, tão agradável quanto antes, mas desta vez não parecia vir da minha cabeça, vinha de fora, de algum lugar ali perto. Andei na direção de onde vinha aquela voz, atravessei a rua, cheguei até o centro de uma praça muito verdejante e com uma fonte jorrando águas límpidas e cristalinas o tempo todo. Detrás saiu uma figura, era uma mulher, tão linda como um anjo, e, acenando, me convidava a chegar mais perto.

Com cautela, me aproximei, e não resistindo à tentação, toquei na sua mão, que ela estendera no ar. Com grande afeto e ternura no olhar, ela segura minha mão e me puxa bem para perto de si, fitando com curiosidade minha expressão de perplexidade. Antes que eu possa pronunciar qualquer palavra, ela aproxima seu rosto do meu e me dá um grande beijo. Sinto seus lábios tocarem nos meus, sua fragrância doce me deixa excitado, fecho os olhos deliciando-me com aquele beijo.

Senti-me no paraíso, provando da maçã proibida. Quando abri meus olhos, percebi que sua aparência havia mudado. Seu rosto angelical havia se transformado no rosto de uma criatura horrível, e sua língua cheia de espinhos agora arranhava meus lábios. De um pulo só, me afastei daquela criatura horrenda. Ela gritava meu nome com raiva, e esticando suas mãos cheias de garras afiadas e escamas, que antes pareciam tão suaves e delicadas, tentou me abraçar. Tomado de medo, corri o mais que pude sem olhar para trás, e quanto mais depressa corria, mais distante ouvia a criatura gritando meu nome.

Voltei para o banco onde estivera sentado antes. Lá estavam de volta o senhor do jornal e a senhora do carrinho de bebê. Tudo estava normal de novo, os carros voltavam a tomar as ruas e as pessoas continuavam a se empurrar de um lado para o outro. Tremendo de medo, me sentei de volta no banco, tentei controlar minha respiração ofegante, enquanto meu coração batia tão depressa que sentia que poderia saltar de minha garganta a qualquer momento.

- Você está bem, rapaz?

Tomado de surpresa ao escutar aquela voz, lancei um olhar inseguro ao senhor do jornal para me certificar de que a voz era dele. Não consegui responder, por mais que tentasse, minha voz parecia perdida em algum lugar entre minha garganta e meu coração, e apenas balancei a cabeça em resposta afirmativa.

O senhor do jornal pareceu satisfeito com aquela resposta e voltou a folhear a página de esportes, enquanto do outro lado, a senhora do carrinho de bebê empurrava o carrinho e sorria para mim.

Tudo parecia ter voltado ao normal, eu estava de novo dentro da realidade, mas não conseguia esquecer a criatura que deixara a poucos instantes gritando meu nome. De qualquer maneira, me sentia seguro e tranquilo entre aquelas pessoas tão normais. Mas alguma coisa ainda me perturbava, apesar da sensação de que tudo estava como devia estar, algo mais parecia errado. “Seria o senhor do jornal, com aqueles grandes óculos de casco de tartaruga, tossindo de vez em quando enquanto folheava seu jornal ? Ou seria a senhora do carrinho de bebê, que balançava o carrinho de um lado para o outro, com tanta ternura?” Sabia que estava tudo de volta ao normal, como sempre deveria ter estado, mas, para ter certeza absoluta, debrucei-me para perto do carrinho com a intenção de ver novamente aquele bebezinho fofinho.

Quando olhei para o bebê, lá estava aquela criatura verde e pegajosa de antes. Dei um pulo, e, quando olhei para o senhor do jornal e para a senhora do carrinho de bebê, eles haviam se transformado em criaturas monstruosas, com grandes presas e olhos negros tão grandes que tomavam conta de seus rostos disformes e cinzentos.

Não apenas os dois haviam se transformado, mas todos na rua haviam assumido feições demoníacas. Antes que conseguisse escapar, todos eles me cercaram e, sussurrando meu nome, avançaram para cima de mim, me mordendo, devorando minhas carnes, rosnando como animais.

....

Na grande sala de paredes brancas iluminada por lâmpadas fluorescentes, dois homens abrem a porta e se aproximam de um rapaz deitado no chão que grita sem parar. Os dois o seguram, retiram o aparelho de realidade virtual de sua cabeça, e, depois de sedá-lo, o prendem de novo na cama.

- Pois é, esse vai ser difícil de tratar, doutor.

- Talvez, mas a cura está próxima. Infelizmente temos que lhe dar uma dose diária de realidade virtual, até que sua mente se acostume a viver sem o aparelho.

- Fico pensando que tipo de coisas há na mente dele para deixá-lo tão agitado.

FIM

Paulo Salgueiro
Enviado por Paulo Salgueiro em 24/04/2012
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