Estrada de Varsal
Dizem que em determinadas noites do ano a estrada para a pequena cidade de Varsal se fecha, não por obra de seus habitantes, reclusos e desconfiados, mas sim por influência de alguma vontade desconhecida e silenciosa. Os incautos forasteiros que viajam pela estrada nessas noites insólitas, acabam entrando em outra estrada, rumo ao desconhecido. O relato que segue me foi contado por Ruy Maback, cujos apelos de que algo macabro se abriga naquela parte esquecida do mundo não encontrou outros ouvidos além dos meus.
No final dos anos oitenta, o jovem Rui viajava do norte para o sul de seu estado quando se perdeu em uma estrada secundária, em um rincão afastado de qualquer centro urbano que ele conhecesse. A estrada seguia reta até perder de vista, para os dois lados, não havia árvores, apenas um escampado enorme que parecia se estender até o infinito, proporcionando uma viagem entediante devido à paisagem quase imutável. A certa altura da viagem ele parou o carro ao perceber que estava perdido.
Enquanto aproveitava os últimos raios dourados do sol para encontrar sua localização no mapa, apoiado no capô do carro, a noite caiu rapidamente e ele se viu cercado pelo negrume que apenas as regiões mais isoladas são capazes de projetar. A escuridão sempre traz à tona medos irracionais, principalmente quando acompanhada pelo mais intenso sentimento de solidão. Tomado por uma horrível sensação ele entrou no carro para terminar de examinar o mapa, mas alarmado percebeu que aquela região onde se encontrava não estava mapeada.
Ligou o carro e seguiu em frente, o sono já o arrebatava, mas temeu parar naquele lugar deserto e que lhe despertara sensações tão terríveis. Contudo, após perder por duas vezes o controle do carro, adormecendo, resolveu parar um pouco, vencendo seu receio. Ao estacionar o carro viu poucos metros à frente uma placa indicando uma cidade a alguns quilômetros, por uma rua que partia da via em que ele se encontrava. O entusiasmo espantou seu sono e ele seguiu a indicação da placa em direção à cidade de Varsal.
A estrada não era das melhores e ele teve de reduzir bastante a velocidade para seguir por ela. Após uns vinte minutos se viu cercado por algumas árvores de aspecto medonho, quando o farol do carro batia nelas Ruy tinha a impressão de ver feições humanas estampadas em seus troncos. O medo que o motorista sentiu ao escurecer não era nada se comparado ao que ele sentia nessa estrada desolada, tendo como companhia essas árvores assustadoras.
Enquanto vasculhava ao redor com seus olhos receosos viu uma velha placa indicando “Varsal a 20km”, uma expressão de felicidade contida se estampou em seu rosto amedrontado, a possibilidade de ver pessoas era reconfortante, porém terrores subconscientes teimavam em lhe fazer companhia. O carro seguiu devagar até se deparar com uma imensa árvore que lançava seus galhos secos até se unir à árvore do outro lado da estrada, ao longe ele pode avistar em um ponto mais elevado algumas luzes, “com certeza era Varsal”, pensou.
Prosseguiu com maior entusiasmo, embora não menos amedrontado, pela estrada até que uma silhueta na escuridão chamou-lhe a atenção, Ruy parou o carro para observar melhor, era um cavalo preso a uma árvore mais afastada da estrada. Uma batida em sua janela o fez dar um salto no banco, olhou assustado, da janela do carona um homem de aparência rústica com um chapéu o observava:
- Tudo bem? - Perguntou o estranho.
- Tudo - respondeu Rui - só me assustei um pouco.
Apesar da solidão que sentia não estava nenhum pouco aliviado por ver outra pessoa.
- O que faz por essas bandas a essa hora da noite meu jovem. – o homem perguntou com o rosto quase tocando o vidro. O som saía baixo, pois Rui não abriu a janela.
- Estou indo para Varsal, é essa a estrada?
- É sim – respondeu o homem limpando o vidro que estava embaçado pelo sereno da noite e por seu hálito. – mas a estrada está fechada, melhor esperar amanhecer.
O homem se ajeitou ficando ereto e Rui pode ver que ele carregava um feixe de lenha, deu a volta até o lado do motorista, deixando o incauto viajante ainda mais nervoso. O homem abaixou-se novamente na janela, atrás de sua volumosa barba pode-se perceber um largo sorriso:
- Vou acender uma fogueira para passar a noite, se quiser me acompanhar, amanhã te acompanho até a cidade.
Rui estava extremamente desconfiado, educadamente recusou a oferta do estranho e prosseguiu, o homem pareceu não gostar da atitude, balançou os ombros e se afastou, indo para junto do cavalo.
O carro andava com dificuldade pela estrada acidentada, quanto mais avançava o número de árvores aumentava e as raízes ocupavam a pista tornando mais difícil prosseguir. Eram árvores medonhas, pareciam inchadas no meio do tronco, com copas volumosas que projetavam sombras impedindo a luz do luar de penetrar, naquele lugar a noite era mais escura e inquietante.
Ruy já tinha dirigido bastante quando o carro não pode mais prosseguir, estava preso em algo. Ele desceu com uma lanterna para olhar e viu que as raízes não permitiam mais que o carro avançasse. Ele olhou e viu as luzes da cidade, apesar de ter andado bastante com o carro, tinha a impressão de que a distância não havia diminuído, então decidiu continuar a pé.
O pouco sentimento de proteção que o carro oferecia fora perdido, a insegurança e o medo daquela floresta, que cada vez mais tomava um aspecto terrivelmente onírico, o envolveu de tal modo que ele começou a rezar baixo. As sombras projetadas pelas árvores pareciam devorar a luz da lanterna, e a estrada não estava mais sob seus pés, apenas um emaranhado de raízes e folhas secas, estava confuso com aquela situação e não sabia o que fazer, mas o medo de ficar parado superou o medo de seguir adiante, e ele continuou a andar.
Enquanto caminhava tropeçando nas raízes, que pareciam levantar para derruba-lo, ele caiu escorando em uma árvore, ao se firmar para levantar percebeu um entalhe, aproximou a lanterna e viu que havia na árvore uma inscrição assustadora dizendo: “nós ainda estamos aqui”. Ruy sentiu sua espinha gelar, pois a inscrição era muito recente, a seiva pegajosa ainda escorria das marcas. Ele se levantou rápido e quando se preparava para continuar, uma movimentação á sua frente chamou-lhe a atenção. Caminhou cautelosamente até uma moita e de lá pode ver, a poucos metros dele, dois homens arrastando algo, eles esbravejavam e um deles carregava uma espingarda, não pareciam nada amistosos.
Receoso ele preferiu não se aproximar, enquanto se afastava de costas novamente sua espinha gelou, havia alguém atrás dele, pôde sentir uma presença mesmo sem ver. Virou-se vagarosamente e se deparou com um garoto que o encarava e parecia estar mais assustado do que ele, antes que Ruy pudesse falar qualquer coisa o garoto fez um sinal de silêncio e apontou para as duas figuras misteriosas que ele vira a pouco, e o assustado viajante virou-se novamente para observa-los. “Ei você pare aí!” gritou um dos homens enquanto o que portava a espingarda se preparou para atirar, Ruy ficou atônito, não se moveu um centímetro, não conseguia, e o homem disparou em sua direção mesmo assim.
O pavor tomou conta do jovem Maback, o tiro não o matara, nem mesmo o ferira, embora tivesse a certeza de ter sido atingido. Os homens caminharam até onde estava, mas o ignoraram, o garoto estava caído atrás dele, de bruços com um tiro nas costas ainda gemendo de dor. O corpo ensanguentado da criança foi arrastado para onde os homens estavam. Não pôde mais se conter, o medo aflorou de tal forma que ele deixou escapar um grito estridente e correu como nunca de volta para o carro.
Enquanto corria sem saber em que direção ir percebeu que vários vultos corriam entre as árvores, alguns tropeçavam e caiam, outros choravam e alguns pediam ajuda com vozes sufocadas pelo medo. A luz dos faróis, que ele havia esquecido aceso, chamou-lhe a atenção guiando-o de volta ao veículo. Dentro do carro ele quase se sentiu seguro, porém seu frágil santuário foi rompido pelo barulho de alguma coisa pesada caindo sobre o teto. Ruy já não pensava mais, o pânico imperava, abriu a porta e saiu do carro, não olhou para trás para ver o que era, porém a cena se repetia a sua volta, o som de algo pesado chocando contra o chão ecoava pela floresta afora.
Não tinha forças para correr, as pernas já não obedeciam mais, sentou-se escorando em uma árvore com o coração palpitando e os olhos vertendo lágrimas. Enquanto recuperava o fôlego sentiu que a seiva que escorria da árvore grudou em sua camisa, porém constatou que não era seiva, a viscosidade, o cheiro, definitivamente só podia ser sangue, a árvore sangrava. Mau se levantou, como reflexo da terrível revelação, e alguma coisa caiu à frente, próximo aos seus pés, Ruy forçou seu corpo trêmulo contra a árvore ao perceber que se tratava do corpo do garoto que vira ser baleado a pouco, estava com mãos e pernas amarrados e cheio de feridas, foi a última coisa que viu antes de desmaiar.
Acordou em uma cama de hospital, uma velha e carismática enfermeira o examinava.
- Onde estou? – perguntou.
- Em Varsal senhor, o capataz de uma fazenda próxima o encontrou desmaiado na estrada esta manhã.
Ruy se ajeitou com dificuldade na cama sem tirar os olhos da simpática mulher.
- Na estrada? – indagou confuso
Ela terminou de medir a pressão, examinou seus olhos, depois guardou o equipamento e enquanto ia em direção à porta, respondeu.
- Sim, o senhor abandonou seu carro a uns vinte quilômetros da cidade e seguiu à pé. Mas o senhor está bem deve ter batido a cabeça em algum lugar e desmaiado, o carro está em frente ao posto, o capataz o trouxe também. Teve sorte senhor Ruy, pois o capataz acampou próximo ao seu carro, pouca gente usa aquela estrada hoje em dia, ela é muito traiçoeira.
Ruy Maback morreu em 1995, sua experiência o levou a passar o resto de seus dias em um sanatório, onde o conheci. Obviamente não acreditei em uma só palavra do que ele me contou durante as sessões de terapia. Porém em 2002 uma grande quantidade de terras próximas a Varsal foi desapropriada para exploração mineral, e quando a região começou a ser desmatada foram encontradas centenas de cadáveres presos nas raízes das árvores. A perícia concluiu que todos os corpos apresentavam sinal de enforcamento e os cadáveres datavam do período colonial.
Segundo consta nos registros do arquivo público do estado, que tive a curiosidade de pesquisar após a repercussão do achado, a população inteira de um vilarejo de colonos próximo a Varsal desapareceu em meados do século XVII. Os estudiosos descartam a ação de populações indígenas que viviam na região, pois não há relatos de práticas semelhantes entre esses povos. Outro argumento é que Varsal sempre esteve a poucos quilômetros do vilarejo desaparecido e não sofreu o mesmo destino
Pensei em visitar a cidade de Varsal para ver se sanava minha grande curiosidade quanto ao mistério, porém desisti ao ler o trecho de uma carta enviada por um jesuíta que ninguém sabe como foi parar no arquivo:
“Tudo gente mui solícita, nos receberam de braços abertos e nos abrigaram com muita cortesia. Dizem nada saber sobre a existência do povoado de Nova Coimbra que consta em meus registros. Chamou-me a atenção o fato de não parecem cristãos já que em sua humilde, porém próspera, cidade nada há que lembre Nosso Senhor, sem templos, imagens ou celebrações. Pouco falam de suas origens, mas tenho certeza que esses varsalenses não são de nenhum lugar conhecido do reino. Pela manhã nos ajudarão a cruzar a floresta para fazermos uma última busca pelo povoado de Nova Coimbra. Contudo essa pobre gente precisa ser urgentemente evangelizada, por isso saiba que se não estivermos na capital até a celebração do nascimento de Nosso Senhor é porque nós ainda estamos aqui”.