O inferno visto de dentro pra fora
Nas paredes sujas e pinchadas, dizeres que tentam adjetivar aquele lugar horrendo. Pelo chão muito lixo, restos de comida e excrementos humanos. Moscas por toda parte e pernilongos que me picam o tempo todo.
O cheiro enjoativo de fumaça é constantemente quebrado pelo fedor de fezes humanas.
Quando levanto meus olhos para cima, sinto gotas de água fria em minha testa. O teto quase não existe mais, e quando se faz presente lembra um chuveiro velho a gotejar.
Um pouco mais adiante me adentro e vejo um buraco na parede. Dentro dele, ratos passeiam ao derredor de uma mulher grávida, já tomada pelos efeitos da droga, a qual tenta me atingir com um pedaço de plástico.
A moça amedrontada tem em seu rosto imensas manchas, e sua boca é tomada por feridas, causadas pelo cachimbo do diabo.
Apressadamente, tento me retirar de dentro daquele pseudo-inferno, mas os apodrecidos degraus da velha escada me fizeram escorregar e cair no chão, em meio a todo aquele lixo e mau cheiro.
Me levanto, tomado por aquela nojeira toda, imaginando que naquele mundo surreal podem existir seres humanos. Humanos? Bem, acho que para a imensa maioria da sociedade são verdadeiros animais, bichos, seres do outro mundo, mas que vivem à volta da sociedade.
Ao sair daquele velho sobrado me deparo com aquela rua do centro velho de São Paulo, e nela encontro a cena aterrorizante de pessoas como se fossem trapos. Sujas, famintas, com suas mentes consumidas pelo efeito da pedra.
Em algumas calçadas, pouco se importando com a garoa fria e mediana, algumas dessas pessoas, sob seus cobertores encharcados, dormiam como se estivessem nos melhores leitos. O cansaço causado por três, quatro dias sem dormir era capaz de anestesiá-las contra as intempéries da vida.
Por ali muitas crianças, cuja inocência foi perdida há muito tempo. Algumas com sete anos de idade ou até menos, tomadas pela agressividade tornavam-se irreconhecíveis.
A necessidade pelo consumo da droga, cada vez mais intensa fez deixou essas pessoas cada vez mais perigosas. Pelo dinheiro do vício assaltam, batem, usam armas brancas para atacar e em muitos casos acabam vítimas ou melhor dizendo, sempre são vítimas de si próprias.
Um deles se aproxima pacificamente de mim. Ele abre o coração e conta um pouco de sua história. Diz ter quarenta e dois anos, mas visualmente parece ter setenta, tamanho o estrago causado por quatro anos de crack. O moço de cabelos grisalhos, pele queimada pelo Sol e um forte cheiro de urina conta que morava em um bairro chamado Botujuru e tem dois filhos, mas que saiu de casa já há algum tempo. Não tem notícias da família desde a última vez que seu filho mais velho tentou levá-lo para casa, há três meses.
Ele me mostra o prédio abandonado onde mora, tão infernal quanto o sobrado velho que conheci há algumas horas. Lixo, ratos, fezes e alguns viciados, jogados pros cantos.
De repente algo nos chama a atenção. Um forte cheiro vindo de um dos andares. Claro, cheiro forte é que não falta nesses lugares, mas este era exagerado. Resolvi acompanhá-lo, até chegarmos em um canto. Nele, a cena talvez mais aterrorizante que já vi. Um homem deitado, segundo ele adormecido há dias, na verdade estava morto há dias, rodeado de moscas e o cheiro de putrefação.
Liguei para 190 mas depois fiquei sabendo que tal corpo não foi retirado do local. Os próprios viciados retiraram do local, enrolaram em um lençol, colocando sobre a calçada. Parece até que se assim não fosse feito, acho que o túmulo dele seria o mesmo local de sua morte.
O que se percebe nessas pessoas é que quase todas assumem o desejo de sair desta vida, mas na prática preferem ficar por ali. Talvez já desacreditadas de si mesmas, por conta de tantas tentativas de largar o vício ou por achar que não vivem mais na sociedade, sendo marginais à espera do fim.
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Prezados leitores
Este conto retrata um pouco de um local de São Paulo, conhecido como "Cracolândia", localizado no centro velho da cidade, entre as avenidas Ipiranga, Duque de Caxias, Cásper Líbero, rua Mauá e Rio Branco. Um local tomado por viciados em crack, vivendo em condições sub humanas. Pessoas de várias idades e até classes sociais conviviam no meio do lixo até o início de 2012, quando os governos realizaram diversas operações policiais para desocupar o local. Esta ação retirou tais pessoas de uma concentração e estas se espalharam por outras ruas da região, ou seja, o problema, de difícil solução, diga-se de passagem, jamais foi resolvido, apenas maquiado.
Enquanto estamos aqui, este inferno em paralelo existe e acontece, transformando pessoas em demônios, dentro de um inferno infinito.