A Capela - Crônicas Sobrenaturais do Colégio Marista

Amim nunca estivera tão feliz em toda sua vida. Jamais imaginou que um dia teria tanta sorte: a garota mais linda do Colégio Marista era agora sua namorada.

Ele sempre fora o gorducho mimado pelo Sr. e Sra. Gorduchos. Tinha tudo o que pedia aos pais. Sendo de família de comerciantes turcos da cidade, causava inveja nos colegas por sempre ostentar as melhores marcas e as mais recentes novidades tecnológicas. Sempre empinava o nariz de tucano quando era deixado na porta do colégio pelo chofer da família ou fingindo receber uma ligação no Iphone, mesmo quando todos sabiam que ele não tinha para quem ligar a não ser seus pais. Mas Amim não tinha mais nada além de bens materiais para provar seu valor. Por isso, os demais alunos somavam o desprezo natural que ele lhes causava à inveja que fazia questão de incitar. O resultado inevitável era ódio. Era comum ser ignorado, rechaçado e, às escondidas, espancado.

Mas agora entoaria seu canto de cisne, exibindo sua nova aquisição. Lilian, a garota mais cobiçada de todas, lhe pertencia.

Lilian sempre fora a paixão de Amim, mas o que mais o fascinava eram os arrepios que ela lhe causava. Desde que ele se matriculara no Colégio Marista, estudavam na mesma classe e sempre, ao vê-la, sentia um arrepio nos braços e na nuca. No início, não sabia o que causava essa estranha reação em seu corpo, mas logo percebeu que a simples presença da menina fazia seus pelos eriçarem. Ele não sabia explicar o motivo, mas adorava a sensação. E agora que estavam namorando, sentia arrepios prazerosos o tempo todo.

O único problema era que Lilian não concordou que fossem vistos juntos em público. Pelo menos por enquanto. Argumentava que precisava avisar seus pais antes que o namoro se tornasse público. Ela tinha apenas dezesseis anos e precisava tomar certas precauções. Era um assunto delicado em sua família, ele devia entender.

Claro que ele entendia! Na verdade, sequer pensou nisso quando Lilian sugeriu, com um sorriso malicioso que lhe causou arrepios múltiplos, que se encontrassem em segredo em um lugar diferente: uma capela abandonada, localizada nos fundos do colégio onde estudavam.

Lilian e Amim ainda não haviam tido um momento a sós, o que significava que ainda sequer haviam mais do que trocado algumas palavras durante o recreio. Mas naquele que era o terceiro dia de namoro, finalmente avançariam. Ficou imaginando o quanto seria esse avanço.

Durante a aula, Amim estava eufórico e nervoso. Em poucas horas estaria sozinho com Lilian. Olhou para ela de soslaio. Estava linda! Usava batom muito vermelho, o cabelo preto e liso estava preso em um coque perfeito. A longa franja cobria quase totalmente os olhos maquiados, mas podia perceber os cílios compridos piscando excessivamente. Achou que a camisa branca de mangas compridas do uniforme, abotoada até o pescoço, criava um contraste curioso com seu aspecto sedutor, acentuando o mistério.

Após a aula, fez como combinado. Enquanto Lilian conversava com as amigas na saída do colégio, Amim se apressou para o local de encontro. Ao atravessar o pátio do colégio, encontrou com Lucas e Mario. Sabia que ambos fariam o que faziam todos os dias. Lucas dava tapas em sua nuca. Amim se virou para ele, dando as costas para Mario que lhe dava um chute no traseiro e assim sucessivamente, até que os dois se cansaram e foram embora. Amim olhou em direção ao jardim, onde Lilian se demorava. Estava de costas para ele. Ainda bem. Olhar para ela e pensar no encontro a sós o fez esquecer do que acabara de acontecer e se apressou.

Pela primeira, fez um telefonema real pelo Iphone, mas não havia ninguém por perto para sentir inveja. Sua mãe atendeu. Amim explicou que chegaria tarde. Iria à casa de um amigo jogar video-game. A Senhora Gorducha ficou tão feliz por seu filho estar fazendo amizades que esqueceu de perguntar o nome e telefone do tal amigo.

***

Em pouco mais de dez minutos, chegou no lugar combinado. A capela era uma construção sombria, que causava repulsa dos alunos. O próprio solo, à medida em que se aproximava da capela, se tornava doentio, como se algo de pútrido se alimentasse das ervas daninhas amareladas e murchas. Uma mancha sem vida parecia se espalhar pela terra e muitas lendas colegias falavam sobre o dia em que as salas de aula seriam engulidas por aquela contaminação anômala.

Por dentro, a capela era escura e suja, parecia que ninguém entrava ali havia séculos. Achou estranho que Lilian gostasse de ir àquele lugar. Amim perambulou entre bancos cobertos de pó. As janelas eram todas cobertas com tábuas pregadas, por algum motivo que Amim só podia supor.

Lilian apareceu subitamente pela porta dos fundos. Amim se assustou, mas logo reconheceu a silhueta que admirou por tantos meses em segredo.

– É você, meu amor?

– Sim. Sou eu.

– Esse lugar é assustador. Você realmente gosta daqui?

– Sim, é um ótimo lugar para fugir do mundo lá fora, relaxar, ler…

– Ler? Aqui deve ser escuro até mesmo de dia.

Ao dizer isso, uma tênue luz se acendeu, aumentando gradualmente. A imagem de Lilian surgiu no altar, diante de um castiçal de doze velas, acendendo uma a uma. Amim sorriu sem graça.

– E o que você gosta de ler?

– Bram Stoker. Lord Byron. Bukovski. Essas coisas, sabe…

Amim não sabia. Mas fingiu bem, ou assim imaginou. Lilian tirou uma garrafa debaixo do altar e encheu duas taças de vinho.

– Você preparou tudo isso? – Disse o impressionado Amim, sorrindo, enquanto bebericava uma bebida alcoólica pela primeira vez em sua vida. Sentiu-se imediatamente tonto, mas tentou agir normalmente. Quis aproveitar a situação e o álcool surtindo rápido efeito para tomar a iniciativa. Aproximou seu o rosto dela.

– Que apressado. Não quer apreciar as outras surpresas que preparei para te estimular, querido?

– Por favor – disse, reunindo toda a sua coragem – Me chame de meu pudinzinho turco.

Lilian, séria, não tirava os olhos profundos dos dele, deixando-o sem graça. Estavam muito perto. Sentia arrepios por quase todo o corpo, o que o excitou e constrangeu ao mesmo tempo. Ela era menor do que ele uns dez centímetros e tinha o corpo frágil e delicado, o que o fazia se sentir superior e protetor pela primeira vez na vida. Precisava se controlar. Não podia se assustar com o lugar onde ela costumava passar suas horas vagas, nem se apressar e estragar tudo.

– Venha, vou lhe mostrar um lugar ainda mais fascinante.

***

Liliam o guiou por uma passagem no fundo da capela. Amim, embriagado, teve dificuldades de descer as escadas de pedra. Havia uma atmosfera que o desagradou e pensou ter visto desenhos e caracteres estranhos entalhados na parede, mas olhar para a namorada à sua frente o fez pensar em outras coisas. Enquanto desciam os degraus, ela falava, com sua voz macia.

– Sabia que essa foi a primeira capela da cidade a ser construída? Ela só está de pé até hoje porque faz parte da fazenda doada para a construção do Colégio Marista. Naquela época, quando a cidade ainda era apenas um povoado, aqui era rota de comércio importante. O rio que passa duas ruas abaixo daqui convidava os viajantes a pernoitarem nas fazendas próximas. Mas o padre não era exatamente um homem honesto.

– O que ele fazia?

– Assaltava os comerciantes e estuprava suas mulheres.

Lilian parou de falar e, desceram o restante da escadaria em um silencio que fez Amim estremecer. Quando a escada terminou, estavam em uma câmera iluminada por atoches. À sua frente, se estendia um cemitério. O sangue de Amim gelou.

– Aqui era onde ele enterrava suas vítimas.

– E-eu nunca li sobre isso nos livros – Amim tentava não gaguejar, mas não conseguiu esconder o pavor.

Lilian andava entre os túmulos com uma tocha na mão.

– É porque a história foi encoberta pela Igreja.

– E o que aconteceu com o padre?

Lilian fez um sinal para que Amim fosse até onde ela estava, agachada em frente uma lápide. Ele obedeceu.

– Essa foi sua primeira vítima de estupro. Maria Mendonça da Silva. Nascida em 1854, morta em 1871. Apenas 17 anos. Mas ele não a matou rápido.

Amim apenas a olhava, perplexo com a naturalidade com que a namorada contava aquela história pavorosa.

– Ela era linda e sua inocência o fez enlouquecer. Então, ele a aprisionou aqui dentro, nessa câmara, onde todas as noites se satisfazia. Apenas a matou quando ela estava tão fraca e magra que lhe causava repulsa.

Lilian se dirigiu então para uma câmara especial, separada do cemitério por uma grade.

– Como você sabe disso tudo, se a história foi abafada?

Sem responder, ela o convidou com o dedo para dentro da grade, com um sorriso capaz de fazer Amim sentir um misto de pavor e luxúria, além dos já habituais arrepios. Ele já estava viciado naquela sensação extasiante.

Ao entrar na grade, o horror do que viu fez o coração parar por um momento.

Havia vários corpos nus, ressequidos, amontoados e espalhados por toda a câmara. Amim podia jurar que estavam mortos há anos, até ver que se moviam debilmente, contorcendo-se e rolando um por cima do outro. Pareciam alheios, como se suas mentes não estivessem ali. Suas faces tinham todas a mesma expressão de horror e sofrimento. Lilian se debruçava sobre um deles, sugando uma espécie de vapor da boca do infeliz.

O mal cheiro do lugar e a visão que o cenário proporcionavam fizeram o estômago do gorducho revirar. Após vomitar, sentiu vergonha. Quando julgou ter visto cascos no lugar dos pés de sua namorada, Amim se virou para fugir mas a grade se fechou sozinha. Estava preso.

Amim observou aquelas criaturas semi-humanas. Parecia haver centenas delas. Corpos femininos e masculinos rolavam e se entrelaçavam em um emaranhado de braços, pernas, gemidos e fluidos corpóreos. Não sabia dizer se gemiam de prazer ou sofrimento. Ou ambos.

Ela sugou novamente um vapor da boca de um dos danados. Amim achou que ele “murchou” ainda mais, mas estava nauseado demais para confiar em seus sentidos e faculdades mentais.

– Não é minha culpa. É o que eu sou. – disse ela, sem emoção. O que ela seria? Algum monstro libertado das profundezas pelos pecados do tal padre ancestral? Ou a própria Maria Mendonça, cuja alma não alcançou o piedoso abraço da morte? Ou… algo pior?

Lilian mergulhou em uma pilha de corpos que se tumultuaram, gritando, se mesclando e se devorando selvagemente. Amim percebeu que em meio a loucura, algo pútrido daquele amontoado de corpos penetrava no chão, a mesma podridão que se espalhava por toda a câmara rochosa. Imediatamente lembrou-se das lendas colegiais sobre uma contaminação na terra que se espalhava cada vez mais pelo colégio.

– Não vai juntar-se a nós, meu pudinzinho turco? Não era isso o que você queria?

Lilian, mordendo o lábio inferior, engatinhou até onde Amim estava encolhido. Aproximou-se o suficiente para que ele sentisse seu hálito metálico, sangue se misturava ao batom e ele quase não notou a diferença. A camisa branca do uniforme tinha uma grande mancha vermelha; agora não havia mais contraste, a nova cor combinava perfeitamente. Ele estava assustado, lágrimas e coriza escorriam pelo seu rosto, mas ao sentir o calor do rosto de Lilian quase tocando o seu o fez se perder em seus pensamentos. Sentiu um misto de desespero e desejo. Sabia que não podia fugir. O que restava além de se entregar?

De repente, o Iphone tocou. Amim se assustou, como se despertasse de uma hipnose. Era a Sra. Gorducha, perguntando que horas chegaria em casa e, a propósito, qual o nome e endereço do amigo.

Lilian, nada paciente, encostou o corpo esbelto no pudinzinho turco, fazendo-o inclinar-se para trás até se deitar. Deitada sobre ele, brincava de aproximar os lábios do pescoço e roçar o nariz na orelha do gorducho. Ela se esfregava em Amim, ele se esfregava no próprio vômito enquanto sentia arrepios convulsivos.

– Depois eu te ligo.

Foi o que simplesmente respondeu Amim antes de desligar o telefone e jogá-lo longe, abraçando Lilian desesperadamente. Ela se desvincilhou dos braços rechonchudos e sentou sobre seu peito.

– A boa notícia, meu pudinzinho turco, é que faremos isso por muito tempo, todas as noites, nesse lugar. Na verdade, você não fará mais nada em sua vida, que será muito, muito longa.

Amim percebeu que cresciam duas asas negras nas costas de sua namorada. Sentiu a vida se esvaindo por cada poro de seu corpo causado os familiares arrepios. “Então era isso”, pensou ele. Seus pelos eriçavam e os poros dilatavam a cada inspiração profunda e prazerosa de Lilian. Um sutil vapor de energia vital saia de seu corpo, sendo sugado pelos lábios da namorada. Cada respiração dela era um arrepio mortal.

– A má notícia é que será do meu jeito. E ao contrário de mim, você não vai gostar. Nem um pouco.

Por trás da face suave e doce de Lilian, banhada com o sangue de Amim, ele viu um rabo peludo se agitando no ar. “Todo esse tempo… era isso…”

Um abismo se abria à sua frente, do qual se erguia uma infinita coluna de fogo. Achou que estava em dois lugares ao mesmo tempo, depois achou que estava em lugar nenhum. Só então percebeu que ele e Lilian eram a mesma coisa e nada mais existia.

***

Os alunos do Colégio Marista começavam a se aglomerar no portão entrada. Restavam poucos minutos de liberdade para conversar e dar risadas antes do início das aulas. Era um dia ensolarado e Lucas e Mario aguardavam ansiosos pela chegada de Amim. Haviam preparado boas troças para o dia.

Lilian passava entre os alunos que a desejavam com os olhos. Se aproximou de Lucas e Mario e os encarou nos olhos.

– Vamos dar uma festinha lá na velha capela, depois da aula, só nós três?

Lucas e Mario se esqueceram completamente de Amim e sorriram, sentindo-se superiores por receber tal convite da cobiçada garota. E franziram a testa ao sentir também um arrepio percorrer pela nuca e braços.

***

Amim não podia realizar mais do que débeis movimentos para um lado ou outro. A tortura de ter sua alma despedaçada e digerida aos poucos pelos vermes nas entranhas daquela garota seria maior do que poderia suportar se não houvesse a imagem sempre presente da doce Lilian.

Às vezes, ela sequer se aproximava dele, alimentando-se e saciando-se de outros que ali havia. Olhava para Amim enquanto se entrelaçava e sugava a vida de outros apenas para lhe causar ciúmes, o que era tortura ainda maior. Mas mesmo assim ele podia sentir o alívio da pele macia e o hálito metálico da amada, pois todos os que compartilhavam aquela prisão eram um só corpo, uma só mente, unindo-se à sua deusa em um eterno arrepio.

E, por isso, Amim sabia da história daquela capela na íntegra. Compreendeu todo o horror que cerca o lugar onde estudara. Abominável. Sorriu feliz por estar preso com a sua amada. Sua sorte fora muito melhor do que aquela que aguardava os alunos do Colégio Marista. A mancha no solo se espalhava cada vez mais. O horror estava próximo.

Mas ele estava a salvo, em eternos arrepios agonizantes.