Corredores Fantasmas - Crônicas Sobrenaturais do Colégio Marista
– Essa não, essa não!
Marquinhos estava apavorado. Corria pela Avenida Presidente Vargas como quem faz maratona – pelo menos foi o que ele pensou. A respiração ficava cada vez mais pesada, os pulmões ardendo.
Estava atrasado para o primeiro dia de aula.
Não que isso traria algum problema. Sabia que no primeiro dia não haveriam muitas regras. Era dia de conhecê-las para então serem seguidas em todos os outros dias do ano letivo. O medo de Marquinhos era outro.
Entrou na rua Prestes Maia, correu mais um quarteirão e logo deu de cara com a imponente construção onde estudaria aquele ano. Era um complexo de prédios antigos, marrom, arquitetura inglesa, algumas imagens religiosas. Por trás do prédio à sua frente, Marquinhos via a enigmática ponta de uma pirâmide cristalina. O portão ainda estava aberto sob o arco metálico no qual se desenhava as letras “Colégio Marista”.
Não havia uma única viva alma. O completo silêncio denunciava que a chamada dos alunos no pátio para distribuí-los em suas salas de aula já acontecera. Todos já haviam sido encaminhados e já estavam conhecendo seus professores.
Preferiu que o portão estivesse fechado e fosse obrigado a voltar para casa.
Embora Marquinhos sempre sonhara em estudar no Marista ao lado da elite da cidade, estava agora intimidado. Não conhecia o que havia por trás daqueles pesados portões de aço. Se sentia derrotado. Nas vésperas do primeiro dia de aula, fizera o caminho de sua casa até o colégio sete vezes para que não se perdesse logo no primeiro dia. Mas cochilar no ônibus e descer no ponto errado o fez caminhar quarenta e cinco minutos a mais do que o cronometrado. Agora estava sozinho em território estranho, sem noção alguma do que fazer.
Ou melhor, era óbvio que tudo o que precisava era ir até a secretaria e perguntar onde era sua sala. A secretária perguntaria seu nome, ao que ele responderia “Marcos Assunção”. Ela lhe diria onde teria que ir, provavelmente o acompanharia para que não se perdesse nos corredores. O introduziria na sala, interrompendo a aula, todos o olhariam, rindo, e logo depois o episódio seria esquecido. Fim.
Mas Marquinhos tinha um inexplicável pavor do primeiro dia de aula. Não era raro, nas férias de dezembro, sonhar com esse dia. Nos sonhos, ele sempre chegava atrasado e ninguém apareceria para guiá-lo. Sempre acordava com a sensação desesperadora de estar em um lugar estranho sem saber onde ir ou o que fazer. Perdido.
Procurou não pensar nisso. Arrumou o cabelo encaracolado e entrou no prédio, encarando o imenso pátio que se estendia à sua frente. Ao redor, algumas salas com portas fechadas. Na parede do lado direito havia um grande mural com os nomes dos alunos e suas respectivas classes. “Que sorte”, pensou. Bastava encontrar seu nome e depois procurar sua sala.
Mas para sua surpresa, não encontrou seu nome. Procurou em todas as classes da sexta série e não havia nenhum Marcos Assunção. Certamente alguma secretária incompetente se esquecera dele ao fazer a lista.
Desanimado, perambulou pelo pátio forrado com paralelepípedos e cercado por plantas bem podadas formando um pequeno muro. Tentava criar coragem para procurar a secretaria e perguntar sobre sua sala. Ficou apavorado. E se dissessem que não estava matriculado? Que se enganara, que não havia nenhum Marcos Assunção, que não deveria estar ali? E se não estivesse mesmo matriculado? Se sua mente houvesse pregado uma peça, fazendo-o acreditar que estudaria no colégio dos seus sonhos quando na verdade ainda estudava no Colégio Municipal São Vicente? E se estivesse enganado e aquele não fosse o dia certo do início das aulas?
Estava paranóico e cada vez mais tinha medo de procurar alguém e levar uma bronca. Ou de rirem dele.
Quando se virou, já pensando em ir embora dali, se deparou com um rosto lívido que o encarava. Deu um salto para trás. O coração disparou e sentiu o sangue fugir do rosto.
Era uma garota. “Que sorte”, pensou, recobrando-se e esboçando um sorriso. Não ficaria sozinho, enfim. Ela sorriu de volta, abertamente, exibindo um par de covinhas sapecas nas bochechas.
A menina simpática tinha ar de malandrinha, olhos vivos e cabelos dourados, com cachinhos nas pontas. Marquinhos sentiu o coração disparar novamente, mas agora por outro motivo. Os olhos dela eram brilhantes e o encaravam, firmes.
– Também chegou atrasado?
Ah, ela quebrara o gelo. Marquinhos agradeceu por ter companhia. Talvez fosse uma veterana do Marista e soubesse lhe guiar pelo colégio.
– É… o ônibus demorou a passar e perdi a hora – mentiu ele.
– Já encontrou seu nome na lista? – disse ela, dirigindo-se ao mural.
– Hã… sim, claro. E o seu?
– Aqui. Fernanda dos Santos. Classe “6ª A”.
– Que ótimo, é a minha sala também! Você sabe onde fica?
– Claro! Vem comigo.
Tudo dera perfeitamente certo. Claro que, ao mentir sobre sua sala, Marquinhos calculara duas possibilidades. Ao chegar na classe, poderia descobrir que seu nome estava na lista de chamada e que realmente estava matriculado na “6ª A”. Mas o mais provável era que, se não estava na lista do mural,também não estivesse na lista de chamada da 6ª A ou de nenhuma outra sexta série. Nesse caso, argumentaria o quanto o colégio fora desorganizado e incompetente ao informar corretamente seus alunos e exigiria que fosse colocado na “6ª A” devido ao seu histórico escolar e pela companhia agradável de Fernanda. Bem, era melhor que esse segundo motivo fosse omitido.
Marquinhos seguiu a garota pelo pátio enquanto conversavam. A companhia dela era agradabilíssima e aquecia seu coração. Quase não notou a imponente arquitetura do colégio e nas diversas imagens de Maria e do Menino Jesus espalhadas por todo canto quando adentraram os imensos corredores. As portas de ambos os lados, uma atrás da outra, estavam todas fechadas e o silêncio em todo lugar onde percorriam era sepulcral. Mas ele não reparou mais nisso quando Fernanda começou a lhe contar sobre suas histórias no Colégio Marista nos anos anteriores, suas amigas, professores, as peripécias e molecagens que gostava de comandar…
As histórias que ela contava pareciam dar movimento aos corredores sem-vida. Marquinhos quase podia ver crianças correndo, dividindo lanches e brincando, enquanto Fernanda e sua amigas planejavam alguma malandragem com o zelador, que morava no quintal do colégio, do outro lado do prédio. Podia visualizar os professores e diretores enlouquecidos com sua mania de usar o uniforme por baixo de roupas comuns, de levar livros românticos para ler durante as aulas chatas, mascar chiclete e humilhar meninos que tentavam alguma gracinha.
Eles pareciam amigos de muitos anos e Marquinhos não estranhou quando reparou uma cicatriz um pouco abaixo das clavículas delicadas.
Os corredores eram cada vez mais extensos e agora pareciam um labirinto sem fim. Gradualmente, Marquinhos viu surgir buquês de flores por todo lado. Estranhou por um momento e fez menção de olhar para trás, mas Fernanda o surpreendeu, dando gritinhos alegres por se lembrar de mais um episódio divertido de seus dias no Marista. A voz doce e alegre o enfeitiçava por completo e seus gestos, o encantavam. Ele poderia ficar ao seu lado, conversando, pelo tempo que pudesse. Já não pensava mais na lista de nomes ou na agitação do primeiro dia de aula. Estava em perfeita paz.
Ninguém os ouvia, ninguém os via. Parecia que estavam caminhando pelos corredores floridos e desertos ha muito, muito tempo. Algumas vezes, Marquinhos achava que vira pessoas andando por todo lado, o sinal tocando, professores e alunos correndo. Mas logo que voltava a prestar atenção à voz de Fernanda, tudo voltava a ser como antes – infindáveis corredores cinzentos e sem vida.
Os anos se passaram. Crianças vinham para os seus primeiros anos escolares, se formavam e nenhum deles deixou o Marista sem ao menos um dia sentir um calafrio na espinha ao passar pelos corredores do primeiro prédio ou sem achar ter visto um garoto de cabelos encaracolados caminhando sem uniforme, como se fosse o primeiro dia de aula procurando sua sala. Outros diziam ter visto uma menina loira e de covinhas nas bochechas ao seu lado, sorrindo em meio aos buquês.
Durante décadas a historia assustou e fascinou alunos, ganhando inúmeras versões. Mas todas elas traziam à memória o dia mais vergonhoso do colégio Marista – o assassinato de uma aluna pelo zelador do colégio, em 1979. O corpo jamais foi encontrado. Muitos diziam que estava enterrado em algum lugar das dependências do Marista. Os mais antigos funcionários conheceram a amável vítima e guardavam, com carinho, recortes de todos os jornais e revistas onde a notícia fora publicada na época em curtas notas:
A menor Fernanda dos Santos, 13 anos, aluna da sexta série A do Colégio Marista, foi morta por João Luís da Costa, zelador da instituição, no primeiro dia de aula, segunda-feira. Os motivos são desconhecidos. Amigas da vítima afirmam que Fernanda, aluna do Marista desde a primeira série, gostava de pregar peças no zelador, mas que ele nunca pareceu se incomodar com isso. Querida por todos, embora desse trabalho aos professores, Fernanda recebeu homenagens de alunos e funcionários do colégio, que cobriram com flores os corredores do prédio onde a aluna costumava brincar. João Luís foi condenado a 20 anos de prisão e está sendo investigado por suspeita de estupro e pedofilia.
Os funcionários lembravam-se da menina com tristeza e não davam crédito às histórias de fantasma, mas se perturbavam ao ouvi-las, pois não havia foto ou registro público que descrevesse Fernanda com tanta exatidão quanto era retratada pelos alunos que afirmavam terem-na visto.
Segundo as lendas que percorrem as salas de aula, o fantasma continua pelos corredores, procurando pela companhia de alunos recém-matriculados no colégio. Os novatos sempre ouvem essa história no seu primeiro dia de aula como um alerta para não caminhar com nenhuma garota de covinhas pelos corredores. Os céticos riem, mesmo quando, ano após ano, para a perplexidade das secretárias embaraçadas, o nome de Fernanda dos Santos se encontra na lista do mural, matriculada na “6ª A”.