As Cartas do Vampiro - Crônicas Sobrenaturais do Colégio Marista

Com mãos trêmulas e o coração na boca, ela abriu o envelope negro. Era mais uma carta misteriosa e romântica.

Rúbia já sabia que receberia uma carta do seu admirador secreto após o intervalo. Todas as noites encontrava um envelope preto dentro de seu caderno. Ela não fazia ideia de quem era seu correspondente, mas não se esforçava para descobrir. Sempre passava todo o intervalo na cantina, cheia de expectativa, conversando com as amigas.

Morria de vontade de espiar a sala de aula para ver quem colocaria o envelope em suas coisas, mas queria alimentar aquela sensação empolgante de mistério. Queria jogar o jogo dele. Além do mais, ele poderia muito bem pedir para outra pessoa colocar a carta em seu lugar, para não se expor. Era um verdadeiro romântico. Apenas um verdadeiro romântico escreveria cartas ao invés de e-mail ou tweets.

Desdobrou as folhas carmesim, onde estavam redigidas linhas douradas que não economizavam elogios à garota. Mas não era pelas belas palavras que Rúbia ansiava para ler, e sim sobre o maior receio do remetente – ele era um vampiro, e jamais poderia arriscar um encontro com sua amada.

Claro que nas primeiras cartas que recebeu, Rúbia não deixou de soltar alguns sorrisos irônicos ao ler a palavra vampiro. Pensou que fosse alguma brincadeira de alguém que soubesse que era fã de Ane Rice e Adriano Siqueira. Não seria difícil deduzir, afinal, sempre que achava que passaria despercebida pela diretora, usava roupas pretas por cima do uniforme, maquiagem escura e pesada e acessórios estranhos.

Mas não demorou para que as correspondências seguintes a deixassem atônita, com detalhes minuciosos sobre a vida como uma criatura da noite. Claro, tudo aquilo poderia ser inventado, mas vinha acompanhado de um desespero e sofrimento tão convincentes que aprisionaram a jovem garota em um mar de compaixão e compreensão. Ser um vampiro era tão doloroso e romântico que a fez se derreter, como quando leu Vampiro Lestat pela primeira vez.

Foi quando ele começou a adivinhar seus pensamentos que ela o levou realmente a sério. Ele respondia, nas cartas, com exatidão, às perguntas que ela fazia em pensamentos. Ela jamais imaginara que vampiros pudessem fazer isso, e achou que aquilo tirava um pouco do charme dessas criaturas, mas foi assim que ela descobriu muitas coisas sobre ele.

A primeira coisa foi que ele era um vampiro jovem, havia pouco tempo que fora “abraçado”, como gostava de se referir à sua transformação. Se sentia sozinho, solitário e assustado, e sabia, por Deus, sabia que ela seria a única a compreendê-lo, ajudá-lo. Não apenas por ela ser fascinada por filmes de vampiros, mas porque a conhecia. Era bondosa. Por isso a amava.

Rúbia observou todos os alunos do colégio que pôde. Qualquer um que fosse mais pálido que o normal poderia ser seu admirador. Mas se decepcionou quando veio a carta dizendo que nem tudo nas histórias sobre vampiros era verdade e a recomendação para não se apegar a nenhum estereótipo.

Foi aí que ela resolveu fazer perguntas propositalmente, com o pensamento. Perguntou quem ele era, mas a única resposta que obteve foi um longo e triste discurso sobre o medo de se aproximarem, de terem um contato físico – embora a amasse. Também leu algumas revelações preocupantes sobre uma forte e implacável Irmandade de Vampiros, que jamais permitiam que os humanos soubessem da existência deles. Algo parecido com um jogo que Rúbia gostava, chamado “A Mascara”. Tinha medo, dizia o jovem vampiro, de que ela, descobrindo sua identidade, fosse morta – ou pior, abraçada – pelos vampiros da Irmandade. Nenhum humano jamais poderia saber da existência de vampiros. Se isso acontecesse, deveria se tornar um deles. Se um vampiro quebrasse o sigilo, seria destruído.

Mas a curiosidade e entusiasmo de Rúbia era maior que o medo. Ficava imaginando quem seria, esperando que assim ele ao menos desse alguma pista. Podia ser qualquer um. Talvez fosse até uma garota, o que, pensou, não seria um problema. Rúbia já estava mais que apaixonada; estava enlaçada e enfeitiçada, fosse quem fosse. Estava louca para se entregar a qualquer um que se revelasse ser seu morceguinho misterioso. Ou morceguinha.

No dia seguinte, Rúbia não recebeu nenhuma carta. Procurou no caderno, no estojo, na mochila, em todo lugar. Nada. Talvez ele tivesse faltado à aula. Mas não houve cartas no outro dia. Nem no outro. Semanas se passaram sem nenhuma correspondência. Ela pensava nele, mandava “mensagens telepáticas”, e nada.

Estava desesperada. Emagreceu seis quilos e não conversava mais com ninguém. Suas twittadas eram melancólicas, beirando o mórbido. Suas amigas começaram a criticá-la, dizendo que estava obcecada com o novo galã de filme de vampiros da moda. Elas nem suspeitavam do quanto estava tão certas e tão erradas ao mesmo tempo.

Será que ele havia sido pego pela irmandade dos vampiros? Descobriram que revelara a ela a existência dos vampiros e fora pego. O que teriam feito com ele? Talvez ele fora punido e agora estava afastando-se de sua paixão. De qualquer forma, a culpa era dela. Rúbia martirizava-se por isso.

Então, um bilhete. Curto e simples, mas de forma alguma decepcionou a destinatária. As letras lindamente desenhadas em papel escarlate sugeriam um encontro. Sentiu o coração quase rasgando o peito. Como seria um encontro com um vampiro? Seria aquilo verdade? Ela sempre sonhara com aquelas criaturas sedutoras e fascinantes, e agora estava prestes a conhecer uma que a amava.

O encontro foi marcado no dia seguinte. Seria após a aula, em uma rua que nunca ouvira falar mas, segundo as instruções da carta, ficava a três quarteirões do colégio. Por um momento, hesitou. Não tinha medo, Rúbia confiaria sua vida a ele. Mas poderia ser uma armadilha da Irmandade. Ela sabia sobre a existência dos vampiros e precisava ser eliminada. Ou abraçada. A segunda opção não seria exatamente um problema. Pensando assim, se dirigiu ao endereço depois de se despedir das amigas, fazendo-as ficar preocupadas. Provavelmente seria a última vez que as veria.

A rua era escura e estreita, deserta. Todas as luzes públicas estavam apagadas. Rúbia quase recuou, mas o desejo de conhecer seu admirador vampiresco era tanto que avançou em passos vacilantes. Um vulto surgiu detrás de um poste.

– Fique aí.

Era ele! Rúbia estava frente-a-frente com um vampiro! Estremeceu ao pensar o que seria dela e adorou a sensação de perigo iminente. Já não se importava muito se fosse mordida, transformada ou morta. Apenas desejava se entregar de corpo e alma para que fizesse o que quisesse.

– É você?

A voz era trêmula, incontrolável. Rúbia pensou que ele perceberia sua emoção mas se lembrou que ele lia seus pensamentos, de qualquer forma. Ele sabia muito mais do que sua voz poderia denunciar. Sabia que ela lhe pertencia. Talvez por isso não houve resposta. Ela continuou.

– Esperei tanto tempo pra te ver!

– Eu também. Não podia mais viver sem falar com você pessoalmente, olhando em seus olhos.

– Mas ainda não consigo ver os seus – disse Rúbia, se aproximando do vulto.

– Você não iria querer me ver…

– Por que? – interrompeu – Porque você é um vampiro e eu não posso saber disso? Porque você não pode ir contra as regras? Por ter que me transformar se eu souber quem você é?

– Antes fosse essa minha maior preocupação…

– Por Deus, isso é o que eu mais quero! Olhar seu rosto, seus olhos, e ser abraçada, me tornar imortal como você – desabafou, finalmente, dando passos decisivos em direção a ele. Mal teve tempo do vampiro se esconder. Rúbia estava a um palmo de distancia, expressão apaixonada, narinas dilatadas. Então ela finalmente viu quem era.

– Ai meu Deus… – sussurrou ela, quase sem perceber.

Rúbia gritou. Não de medo ou susto. Mas de ódio.

– Você não! Não, não, é mentira!

Eric, o grande, gordo, lerdo e estúpido nerd, com sua cara de abobalhado, olhava para ela, não surpreso, mas entristecido. Já esperava por essa reação de sua amada.

As classes de Rúbia e Eric tinham aulas de educação física juntas, e ela era a única que não ria das gozações e abusos que ele sofria dos colegas. Não ria porque ele era a única pessoa que Rúbia realmente desprezava. Sem motivo algum. Simplesmente por ser o que era – um perdedor que nunca tomava atitude alguma para mudar sua vergonhosa situação. Não era homem o suficiente.

Jamais cogitou que ele fosse o seu admirador. Por que deveria cogitar? Que tipo de vampiro fracassado abraçaria alguém repulsivo como ele? Lembrou-se das histórias em que vampiros apenas escolhiam os belos e sedutores para viver eternamente. Sabia agora que escritores de terror são mentirosos. Alguém cometera o imperdoável erro de eternizar a escrotidão que era Eric.

O vampiro, atrás do poste, se encolhia de vergonha. De alguma forma, sabia que aquilo aconteceria. Mas ainda assim, tinha alguma esperança de que desse certo, que Rúbia fosse a boa pessoa que ele via, que se compadeceria dele se conhecesse seus dramas e dilemas. Mas ela parecia longe de estar compadecida. Estava furiosa e avançava para cima dele, desferindo tapas e socos descoordenados. Eric, pateticamente, caiu, tentando proteger o rosto das unhas afiadas e dos acessórios metálicos nos dedos da agressora.

Enraivecida pela decepção, Rúbia pegou a tampa de uma grande lata de lixo e com ela atingiu o rosto do vampiro várias vezes. Ele ficou ali, caído, enquanto ela buscava algo mais eficaz e voltou com um tijolo. Uma grande poça se sangue brotava no chão enquanto Rúbia, gritando, esmagava a cabeça de Eric.

– Se você realmente pode ler meus pensamentos, deveria saber que ninguém – ninguém – gosta de você. Não sabe o quanto eu te odeio?

Eric mal podia erguer a cabeça, mais devido à humilhação do que aos ferimentos. Muito menos pôde dizer alguma coisa. Apenas conseguiu chorar. Rúbia perdeu a paciencia.

– Ah, por favor! E que tipo de vampiro emo é você? Vai ficar aí chorando? A culpa é toda sua!

– Eu… pensei que… você gostando tanto de vampiros e… me conhecendo melhor… talvez nós pudessemos… você sempre sonhou com a eternidade, então eu… pedi para ser transformado… eu fiz isso por você…

Rúbia, com uma expressão de horror, o interrompeu, gritando.

– O que? Eu? Eu e… você? Eternamente? Meu Deus… que… que nojo! Você é louco de fazer isso!

– Por favor, Rúbia… não grite… eles podem estar aqui nesse exato momento.

Eric, o vampiro, estava tremendo de medo de estar sendo vigiado. Rúbia não deixou de pensar que ele se parecia mais com uma criança levada que comera doces antes do almoço e agora tentava esconder o pacote vazio dos pais. Quase sentiu pena daquela criatura.

Quase.

– Espero sinceramente que eles estejam aqui.

– Espera! Você precisa saber quem são eles… você… todos do colégio estão em perigo…

Rúbia deu as costas para Eric e foi embora.

– Rúbia! No colégio… Tenha cuidado com a…

Eric se calou, apavorado. Inúmeras sombras surgiam ao seu redor e tomaram formas físicas. Rúbia não ouviu seus gritos abafados e não percebeu que vigiavam sua casa, enquanto rasgava seus posteres e livros de vampiros. Nunca mais queria saber deles.