Morte 2.0 - Crônicas Sobrenaturais do Colégio Marista

A professora Taís não queria demonstrar o mal-estar diante dos alunos.

Disfarçou bem durante toda a sua aula de química, dando uma atividade qualquer em grupo para a que a classe não prestasse atenção nela.

Mas Clarisse prestava muita atenção na professora. Ela e todos os rapazes que não se preocupavam mais com as notas do que com suas fantasias que seriam compartilhadas entre os mais confidentes durante o intervalo. Eles achavam justificável ter química como matéria favorita por causa da professora; afinal, ela não era apenas linda como também se vestia muito bem e usava um perfume embriagante. Era comum os garotos irem até a mesa da professora, com caderno na mão e a desculpa de precisar tirar alguma dúvida, apenas para sentir seu cheiro e espiar os decotes mais de perto. Era a diva da oitava série. A ousada desafiadora das regras do Colégio Católico Marista, para o desespero das madres que o dirigiam.

Já Clarisse a encarava de outra forma. Considerava o comportamento masculino de sua classe um absurdo, mas pior ainda era a professora que, ao invés de se dar ao respeito, usava decotes e maquiagem sedutora para aliciar adolescentes imberbes.

Taís não reparou se alguém estava olhando ou não. Sentia náuseas e dores de cabeça. Repentinamente, levou a mão a boca e correu em direção à porta. Viu que não teria tempo de chegar ao banheiro e vomitou ali mesmo, no cesto de lixo, todo o seu café da manhã. E sangue. Muito sangue.

Quando ela foi levada para o hospital, o tipo de comentário na sala era de que a professora de química estava grávida, o que decepcionou os garotos mais sonhadores. Mas todos ficaram satisfeitos por ganharem uma aula vaga.

Clarisse correu para a biblioteca com seu netbook na mochila. Não acreditava que aquilo funcionara! Empolgada, acessou pelo sinal wi-fi do colégio o site que algum perfil anônimo do twitter lhe indicara semanas atrás: O Voodoo Online.

Voodoo Online era uma espécie de comunidade virtual. Como Clarisse sempre fora viciada em Second Life e Colheita Feliz, teve muita facilidade para entender o funcionamento daquela que se tornara a página inicial do seu navegador. Voodoo Online oferecia todas possibilidades da religião Voodoo, mas sem a necessidade de adquirir as ferramentas necessárias – estava tudo ali, na tela do computador. Com um clique, Clarisse podia escolher o que seria necessário para o novo ritual. E o melhor de tudo: interagir com usuários do mundo inteiro.

Fez o login no site e esperou o ambiente de realidade virtual em 3D ser carregado. Seu avatar, uma mulher adulta, surgiu na sala onde realizava os rituais. Selecionou “Farinha de Milho” na janela de ítens e “Pincel” na barra de ferramentas. Com a farinha, desenhou um emblema no chão. Precisava de mais “Rum”. Acessou a página da comunidade do site e comentou rituais de suas amigas e até participou de um deles, tudo para juntar pontos. Com os novos pontos, chamados voduns, ela pôde navegar com o avatar pela tenda do NPC Hugan e comprar uma garrafa rum e velas vermelhas. Ainda sobraram alguns voduns que colocou no cofre para futuramente adquirir o livro de feitiços nível seis.

Levou seu avatar novamente para sua sala e espalhou o rum sobre o desenho que fizera com a farinha de milho. Abriu o player e selecionou uma música para iniciar a seção. Músicas eram necessárias no ritual e custavam uma grande quantidade voduns, mas podiam ser adquiridas em mp3 por dinheiro real pago através do paypal. Clarisse deixara de lanchar muitos dias no colégio para ter uma coleção delas em seu iPod.

Sons de tambores e cantos africanos foram entoados. Clarisse usava fones de ouvido para não chamar atenção de ninguém. Convidou algumas amigas adicionadas em seu perfil que estavam online no momento e vestiu seu avatar com a roupa apropriada. Não eram muito boas, mas teria melhores quando seu perfil atingisse um nível mais alto. Cada ritual no Voodoo Online lhe daria uma quantidade de experiência, que podia trocar por voduns ou para subir níveis. Quanto maior o nível do usuário, maior os níveis de livros de rituais poderia adquirir. Clarisse estava no nível cinco.

Selecionou uma dança específica entre as ações básicas do avatar que vinham no pacote gratuito para iniciantes. Não demorou para que o avatar de Legba, o intermediário dos espíritos, surgisse em sua tela.

Na hora do sacrifício, Clarisse selecionou uma criança virtual recém-nascida que lhe custou 200 voduns. Selecionou a adaga na barra de ferramentas e fez cortes no bebê com alguns cliques. Abaixou o volume do fone de ouvido, pois o som era estridente. A criança eletrônica deveria sofrer tanto quanto Clarisse gostaria que a professora de química sofresse, além de gritar para que os espíritos acordassem. Havia uma barra que mostrava o nível de sofrimento, variando do “confortável” ao “insuportável”.

Abriu um corte no abdome do bebê e tirou as tripas. Colocou-as, arrastando com o mouse, dentro do item “boneco de cera”, que costou 20 voduns. As agulhas estavam prontas para ser usadas. Tudo estava funcionando e o loa surgiu na sala virtual. Clarisse enviou uma foto escaneada da professora e digitou: Taís de Abreu.

No dia seguinte, o colégio estava em luto. A professora Taís morrera no hospital, um dia depois de ser internada. As freiras sussurravam pelos cantos como o castigo de Deus fora implacável com a agitadora indecente.

A oitava série B deveria ter aula de química, mas sua professora substituta ainda não havia sido escolhida. Os alunos foram dispensados para um intervalo. Clarisse, sorrindo, correu até suas amigas dizendo o quanto o Voodoo Online era fantástico. Elas riram satisfeitas, mal acreditando o que as entranhas de uma criança virtual, feita de bytes, pixels e polígonos eram capazes de fazer a alguém.

Uma das garotas, evangélica, fez menção de questionar se o que faziam era correto. Clarisse lhe explicou, com poucas e convincentes palavras, que “tudo o que você fizer, seja bom ou ruim, é plano de Deus”. A evangélica sorriu.

Olharam para os meninos decepcionados com a ausência da mulher que habitava em suas fantasias. Em poucos dias, Clarisse e suas amigas teriam voduns o suficiente no Voodoo Online para adquirir o “Livro Nível Seis – Feitiços de Amor”. Então, não haveria professoras sensuais que pudessem roubar os olhares e sonhos dos rapazes.