Terrores Noturnos: No meu quarto

É difícil precisar ao certo, mas em determinado momento da história o ser humana decidiu não mais temer o escuro. Espíritos, demônios e todo tipo de entidade malfazeja, que têm a noite por cúmplice, encontraram na razão sua principal aliada.

Porém as crianças, cujas mentes ainda não foram contaminadas pelas ideias que abominam o racionalmente inexplicável, e as experientes e velhas mentes, que amadureceram afastadas desse mundo “racional”, flertam constantemente com os seres e acontecimentos ocultos pelo véu do ceticismo.

Eles sabem que devem temer a noite, reclamam de seus terrores noturnos a seus pais, dão conselhos aos mais jovens para evitarem certos lugares. Mas os testemunhos de um velho ou de uma criança não são suficientes para revelar ao mundo as terríveis verdades, varridas do conhecimento humano. Ambos padecem do mesmo mal que afligia Cassandra, o descrédito de suas palavras, as verdades ditas por essas bocas são tidas como tolos medos infantis ou divagações de mentes senis.

Há algum tempo tenho me interessado por experiências paranormais, inicialmente tratava-se apenas de pesquisa para minha monografia. Entrevistei varias pessoas que me relataram casos perturbadores e cientificamente impossíveis. A intenção era, como qualquer pessoa racional, refutar essas experiências, relegando-as ao campo da perturbação mental. Mas essa pesquisa mudou minha visão do mundo, despertou meus velhos medos e me lançou em um mundo de horrores inimagináveis.

Antes de expor minha insólita experiência, preciso narrar alguns casos que tomei conhecimento durante minha pesquisa. O fato é que das entrevistas que fiz a maior parte delas envolvia um quarto a noite, fácil deduzir que se trata de pesadelos. Mas uma constante em quatro casos me chamou a atenção, nesses relatos, de pessoas que não se conheciam, uma frase perturbadora fez a minha espinha gelar, a mesma frase que ouvi em minha própria experiência.

O primeiro caso eu tomei nota a partir de um velho mendigo, o senhor K, optei por omitir os nomes de meus entrevistados. Era um homem de família abastada, único herdeiro de várias propriedades e bens valiosos, porém um viciado em jogo. Tudo o que lhe restou ao final da vida foi o velho casarão da família, onde teve de morar após perder os luxuosos apartamentos herdados. Sua esposa morreu de desgosto, pela vida desregrada que ele levava, e seus filhos mantinham distância dele, apesar de lhe prover tudo que necessitava.

Após ir morar no casarão da família, o senhor K passou e sofrer de insônia e vivia perturbado, dizia que quando a empregada ia embora os inúmeros quadros, de seus antepassados, que adornavam as paredes das salas e de seu quarto, pareciam debochar dele. Todos o fitavam com olhares acusadores, o que assombrava cada vez mais o velho solitário. Certa noite o senhor K acordou com o clarão de um relâmpago, uma tempestade terrível despencava do céu, ao olhar para os quadros viu o que pareciam sorrisos estampados nas faces, mas não eram sorrisos comuns, era uma satisfação sádica que eles transmitiam.

O velho gritou alto em um misto de medo e ódio “parem de me olhar, vocês não são reais, parem de rir de mim”. Um novo relâmpago clareou o quarto deixando cada pintura mais assustadora ainda, pois o senhor K teve a impressão de que elas se projetavam para fora dos quadros, como se ganhassem vida a cada clarão. Enrolado em seu cobertor e tomado pelo pânico ele correu para o banheiro e se trancou lá, onde passou o resto noite acordado, tentando se convencer que era apenas sua mente lhe pregando uma peça.

Quando o dia clareou, o senhor K recolheu todos os quadros da casa e levou-os para o porão. Ao fim do dia a empregada foi embora e a noite caiu, porém nada mais atormentou o amedrontado proprietário do casarão. Não houve sustos e a má impressão e insônia não o afligiram, o que fez ele ter certeza que tudo não passava de medo tolo refletido nos quadros de seus antepassados, talvez culpa por ter perdido todo patrimônio deixado por eles. Passou uma noite tranquila e não acordou uma só vez.

Pela manhã foi ao banheiro lavar a rosto e todo o medo que sentira voltou à tona, pois ele contemplou horrorizado uma mensagem no espelho dizendo: “traga os quadros de volta, gostamos de observar sua vida solitária e miserável. Se pode nos ver, nós também te vemos”. Ele deixou a casa no mesmo dia e passou a viver nas ruas, diz não ter mais medo da noite, pois sempre anda em grupos. Ele parecia bem desconfortável com o testemunho que me dera, porém até então julguei ser fruto de alguma perturbação mental, talvez uma fuga para não lidar com o abandono ou maus tratos familiares.

O segundo caso trata de um jovem que teve a vida mudada por seus terrores noturnos. Junior, outro nome fictício, sempre era avisado por seu avô, com quem morava, para evitar certos lugares durante a noite, e o velho sempre frisava, como se fosse uma lição de vida: “estradas que passam por cemitérios estão sempre carregadas de energias ruins”, mas Junior viveu grande parte de sua vida na cidade e aprendeu a não dar ouvidos a lendas urbanas e, principalmente, casos de gente do interior. Mas o relato me deixou tão estarrecido e incomodado que prefiro deixa-lo sem intervenções de minha parte, vou transcrevê-lo tal como Junior me contou.

“Tudo começou quando fui a uma festa com meus primos, era na cidade vizinha à fazenda em que morávamos. Meu tio nos levou de carro até lá, mas quando deu dez da noite ele foi embora, como estávamos em turma resolvemos ficar até mais tarde e iríamos todos a pé. Por volta das onze da noite conheci uma garota, foi quando a turma resolveu ir embora, eu estava curtindo demais ficar com ela e resolvi não ir com eles, disse para irem sem mim que eu iria depois. Antes eu tivesse ido com eles, meia hora depois a garota teve de ir e eu voltei pela estrada sozinho. A estrada mais curta passava por uma fazenda vizinha à do meu avô e me economizaria uns trinta minutos de caminhada, porém era a estrada que passava pelo velho cemitério também. A desolada estrada era cercada por árvores e alguns postes de energia em longos intervalos de distância.

Fui tomado por um medo terrível quando uma das árvores balançou logo depois que atravessei o portão do cemitério, como se algo houvesse pulado nela. Parei uns instantes assustado e nada vi. Continuei andando e logo que passei por outra árvore ela também balançou, apertei o passo e segui adiante com o medo potencializado. Mas dessa vez não tirei os olhos das árvores, que se encontravam à minha esquerda, quando vi algo saltando de uma árvore para outra. A princípio pensei se tratar de um macaco, tamanha a agilidade ao saltar, parei de olhar e aumentei meu ritmo até quase uma corrida pela estrada deserta.

A criatura então emitiu um ruído atormentador, parecia a mistura de um guincho com uma gargalhada rouca, logo depois um barulho oco como se algo tivesse caído no chão. Quando olhei a vi de cócoras aos pés do poste, como não havia mais árvores ela tentou pular para um poste, mas não completou o salto. Ao vê-la sob a luz não parecia um macaco e sim uma pessoa, uma criança extremamente magra. Minha curiosidade superou a prudência e me aproximei para ver o que realmente era, mas antes que chegasse muito perto ele soltou novamente seu som atormentador e me olhou. Que criatura horrível, seus olhos sumiam em uma face inchada, suas orelhas e nariz eram deformados, a boca não era nada mais do que um corte que se prolongava de orelha a orelha em um sorriso macabro.

Senti uma pontada no coração e o susto me fez cair para traz, minhas pernas estavam tão bambas que não tive forças para levantar, fiquei no chão, imóvel, olhando para aquele ser que vinha em minha direção mancando. E eu juro, por tudo que é mais sagrado, que quando ele estava bem perto de mim, fora do alcance da luz do poste, vi seu rosto se contorcer, era como se eu olhasse para um espelho a criatura estava idêntica a mim. Um farol forte bateu sobre nós fazendo o ser se afastar, eram meu tio e meu avô que estavam a minha procura.”

Ele parou seu relato nesse ponto, mas eu sabia que havia algo mais, “e porque furou seus olhos?”, perguntei, ele ficou em silêncio, relutou um pouco e me disse, com a voz quase sumindo, anunciando o choro, “eu achei que tinha acabado naquele momento, mas não tinha. Quando cheguei em casa estava exausto, mesmo assim não consegui dormir, aquela face medonha não me saia da cabeça. Contei ao meu avô o que tinha acontecido e ele disse que era um assombração, bastava eu ficar longe daquele lugar...”.

Nesse momento o pobre garoto irrompeu em um choro, e seu relato ficou entrecortado por soluços, motivo pelo qual passarei a narrar. Segundo ele, quando ficou sozinho em seu quarto começou a ouvir barulho sob sua cama, como se algo rastejasse, logo ouviu novamente o som da criatura que tanto o assustara vindo debaixo de seu leito. Novamente Junior ficou paralisado, “o que você quer aqui?” perguntou com uma voz sussurrada, novamente ouviu a risada e uma voz grossa, contrastando com o som anterior, respondendo “você me convidou não se lembra?”

O horror tomou conta do garoto, pude ver em sua face enquanto me contava que a mera lembrança fazia-o tremer, ele respondeu gaguejando “Não te convidei, vá embora”, novamente a risada macabra, mas não vinha debaixo da cama, estava aos pés, Junior só pode ver o topo da cabeça, a voz novamente disse “Não posso, vamos fazer uma coisa, fique debaixo da cama e eu fico sob os cobertores, e você não terá mais preocupações.”

Junior se cobriu com os cobertores e, tentando inutilmente simular um brado corajoso, disse “vá embora não quero mais ver você, vá”, nesse momento sentiu seu cobertor ser puxado para os pés da cama e a voz irritada disse “se pode me ver, também vejo você”. Essas últimas palavras me deixaram arrepiado, pois fora a mesma mensagem que estava no espelho do velho senhor K, elas também retumbaram no ouvido de Junior que, desesperado após algumas noites na companhia da criatura, furou seus próprios olhos para não vê-la mais.

Essa mesma frase também estavam presentes no terceiro e quarto caso que não vou relatar aqui, pois não tive a oportunidade de obter detalhes através de entrevistas, tendo de me utilizar de outras fontes. Um deles trata-se de um padrasto acusado de assassinar seu enteado em uma pescaria. O homem afirma que a criança desapareceu de sua barraca a noite gritando pouco antes “eu não quero vê-los, pai eu não quero vê-los”, o outro é de um assassino que matou para ser preso, pois temia ficar solto, após um mês se enforcou em sua sela, na parede estava escrito “achei que podia fugir deles, mas já me viram, não olhem para eles”.

Porém, a despeito da similaridade entre as experiências, continuei meus estudos diagnosticando os casos de forma científica, bastava dar uma olhada no perfil das pessoas para colocar em dúvida seus relatos, e assim foi com a maioria de meus entrevistados. Mas não tive duvidas quando eu me vi de frente com esses medos que eram o objeto de meus estudos. Ao longo das pesquisas acabava levando para casa esses relatos e comentando com minha esposa, acredito que minha filha tenha ouvido um ou outro, mesmo eu tomando cuidado para que isso não acontecesse.

Após algum tempo Eliza começou a ter terrores noturnos, acordava todas as noites gritando. Sua mãe passou a ficar com ela até que dormisse, deixava sempre a luz do quarto acesa para que, caso ela acordasse, não sentisse medo, mesmo com meus protestos. Como bom entendedor da mente humana, eu sempre censurei essas atitudes de minha esposa, pois acreditava que isso apenas contribuía para manter os medos de Eliza, sem que ela os superasse.

Certa vez minha esposa teve de viajar a serviço e coube a mim colocar minha filha para dormir, após eu cantar para ela seus olhos ficaram sonolentos e antes de cerra-los ela disse “deixe a luz acesa papai, não apague depois que eu dormir”. Eu concordei acariciando seu rosto, me levantei vagarosamente e antes de sair apaguei a luz, quando cerrei a porta, com a mesma cautela, ouvi seu grito estridente e assustado. Voltei correndo acendi a luz e sentei na cama segurando sua mão, o coração de Eliza palpitava e ela falava em uma voz chorosa “eles estão aqui, estão me olhando de dentro do guarda-roupas”, eu a deitei de volta “foi só um pesadelo minha filha volte a dormir”.

Aquilo já tinha ido longe demais, pensei comigo mesmo, a condescendência de minha esposa acabou por potencializar os medos da garota, apesar de estar com muita pena, decidi que ela não dormiria mais de luz acesa e, inclusive, neguei seu pedido de dormir comigo. “Por favor papai não apague a luz, por favor”, foram suas últimas palavras antes de cair no sono novamente. Quando fui soltar minha mão Eliza a apertava com tanta força que conseguia me machucar, soltei com muita dificuldade, me levantei e apaguei a luz antes de sair, deixei a porta aberta e desta vez ela não acordou.

No meio da noite acordei e vi um vulto parado na soleira da porta, era Eliza, esfreguei meus olhos sonolentos “pesadelo minha filha?”, e ela respondeu com um “sim” de forma seca e continuou em silêncio, “quer me contar com o que você sonhou?” com a mesma secura ela respondeu com um “não”, me virei na cama para vê-la melhor, “Não quer me contar o seu pesadelo querida?”, ela deu um passo atrás e sua resposta me fez despertar de vez “não, o pesadelo não é meu papai, é seu” e ela desapareceu.

Dou minha palavra a vocês que quando isso aconteceu eu não estava dormindo, embora meio sonolento, tenho ciência do que vi, levantei-me num salto e fui até o quarto de Eliza para vê-la. Entrei sem acender a luz, ela não estava na cama, chamei por ela, olhei no guarda-roupas, sob a cama, atrás das cortinas, mas nem sinal dela. Quando ia sair para procurar no resto da casa pude perceber um vulto com o canto dos olhos, um calafrio subiu pelas minhas espinhas, um terror que razão nenhuma pode resistir, não consegui virar o rosto, na posição que estava fiquei ao ouvir a doce voz de minha filhinha “eles não te viram ainda papai, se olhar eles o verão”.

Tenho vergonha de admitir, mas ao ouvir aquilo, todos os relatos que tinha ouvido vieram a tona, não pude deixar de pensar nos quatro em particular que citei anteriormente, sai às pressas acendendo todos interruptores que apareciam na frente, e me abriguei em meu quarto trancando a porta. Abandonei qualquer pretensão de procurar minha filha naquela noite, e nunca mais a vi. Fiquei como principal suspeito pelo misterioso desaparecimento, porém fui solto por falta de provas, perdi também minha esposa que me culpou pela perda de nossa filha.

Durante muito tempo não chorei por Eliza, o trauma daquela experiência me afetou de tal forma que só podia pensar no fim de minhas certezas. Em como tudo que aprendi e pesquisei ao longo de minha carreira era tolo e vão, em como todas aquelas pessoas desacreditadas e ridicularizadas deviam na verdade rir e debochar da cegueira humana, em como tudo aquilo que antes se tratava apenas de lendas se tornaram verdades para mim. A partir daquele momento era estupidez desacreditar qualquer experiência do tipo sem provas. Seja o que for que estava no quarto de Eliza, que atormentou o pobre senhor K, que levou Junior a tirar sua própria visão, não se trata de fruto da mente. Eles estão entre nós, os vemos com os cantos dos olhos de relance ás vezes, em lugares escuros por onde passamos, basta um olhar mais apurado e atento e você os verá, então será tarde demais, pois eles também verão você.

Getúlio Costa
Enviado por Getúlio Costa em 03/04/2012
Reeditado em 27/06/2012
Código do texto: T3592476
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