LUAS DE MAIO

“A Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade o Imperador, o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembleia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte:

Art. 1.º: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil.

Art. 2.º: Revogam-se as disposições em contrário.”

Treze anos. Essa era a minha idade quando tudo começou. Uma marca que ficaria gravada para sempre em minha vida. Naquela época, eu tinha pouca noção acerca da realidade mundana que nos oprimia. Ignorava completamente a verdade crua e as incertezas existentes além dos cercados que restringiam meu ir e vir. Eu vivia alheia às disputas que decidiam o destino dos inúmeros prisioneiro escravizados que existiam no país. Apesar do repúdio de boa parte do mundo, ainda éramos milhares compartilhando da mesma situação.

Não há como descrever o horror que maltratava nossos corpos e rebaixava nossas almas. Tempos difíceis, sem sombra de dúvidas, mas que guardavam mudanças irreversíveis que estavam prestes a acontecer.

Para todos os efeitos, nasci livre, ingênua pela ação do ventre de minha mãe. Pelo menos era assim que deveria ter sido. Porém, a mesma hipocrisia que supostamente deveria me livrar das amarras do meu senhor, me mantinha atrelada eternamente ao jugo da pobreza e da dependência. Na prática, as crianças e os velhos, apesar do amparo da lei, ainda permaneciam tão escravos quanto qualquer outro negro produtivo.

Minha família, ou o que restou dela, era cativa da Sete Quedas, principal centro de atividades das terras do meu senhor. A fazenda ocupava uma grande extensão no Vale do Paraíba, região sul fluminense. Naquela noite especial, o salão nobre do casarão recebia uma importante reunião. Apesar de a Câmara Geral ter proibido há dois anos o castigo físico, tal imposição, como todas as outras leis benevolentes, eram completamente ignoradas de fato pelos proprietários de escravos e seus comandados. A naturalidade com a qual se dispunham da vida humana era tão absurda, que nem mesmo a citada reunião se mostrou capaz de inibir o que acontecia nos arredores da senzala, a poucos metros dos convidados.

A riqueza dos detalhes ainda vaga com intensidade em minha mente. No firmamento, a esfera pálida exibia uma plenitude tão intensa que seria capaz de roubar para si todas as atenções, ainda que houvesse algum tipo de concorrência no céu escuro e desprovido de estrelas. Até hoje, meu peito insiste em guardar a lembrança de uma tristeza crua e mórbida, talvez mais impetuosa que o próprio plenilúnio daquela noite. Mas, esse não era o sentimento mais veemente a me dominar. As lágrimas transparentes e límpidas, que lavavam meu rosto com a autenticidade da dor, se faziam presentes por algo ainda mais primitivo: a raiva, o desejo de vingança!

A dor física já havia sido superada, apenas os lamentos da alma ainda me torturavam. O mesmo eu não podia dizer de minha mãe, que sofria atrelada aos grilhões daquele tronco, tendo a carne dilacerada por açoites desumanos. Suas costas nuas estavam manchadas pelo líquido vivo, o qual remetia aos contornos encarnados da esfera celeste. Ambas se desmanchavam em sangue. Ambas clamavam por clemência.

A chibata do feitor estalava no ar e descrevia novos riscos rubros no corpo daquela que eu amava, a única que me restava. Há muito meu pai e irmãos de sangue haviam sido levados, mortos, pelas águas do rio. Era certo que, em breve, ela os encontraria. Meus irmãos de pele entoavam um cântico de pesar ao redor das chamas de uma fogueira, eles pediam paz para aquela que logo nos deixaria.

Eu queria estar com eles, com a minha família, onde quer que estivessem. Mas não sem antes acabar com todos os malditos, com todos aqueles que trouxeram tanta dor ao meu povo. Eu clamei por ajuda aos céus e ao inferno, minha vida não teria descanso até que conseguisse realizar esse desejo que me consumia.

O ritmo em meu peito aumentava, ao passo que o de minha mãe cessava por completo. Ela estava morta. Seu corpo permanecia preso aos ferros enquanto eu derramava minhas últimas lágrimas aos seus pés. Prometi a mim mesma que nunca mais choraria.

O capataz me agarrou pelos cabelos, desferiu um tapa em meu rosto e me arrastou pelas pedras salientes do solo irregular. Maldizia minha existência, praguejava contra minha raça, mais do que isso, dizia que a noite já havia traçado o meu destino. Um rastro de sangue ficava pelo caminho.

Ele não fazia o trajeto em direção à senzala, eu já sabia de suas intenções e torcia para que meu corpo resistisse e encontrasse forças para a desejada vingança. Fechei os olhos, trinquei os dentes numa mescla de nervosismo e concentração. De repente, ouvi um baque e parei de ser arrastada. Abri os olhos e percebi que meu agressor havia sido atingido por uma pancada e estava desnorteado. Um dos escravos gesticulava e gritava. Pedia, atropelando as palavras, para que eu fugisse, corresse o mais rápido que pudesse.

Assim eu fiz. Irrompi pela plantação de café, exigindo toda a velocidade que a juventude era capaz de proporcionar. Venci o labirinto verdejante e ganhei as matas. Já distante, olhei para trás e ainda pude visualizar o meu salvador sendo arrastado à base de chicotadas. Continuei a correr. Percorri uma boa distância até ser vencida pelo cansaço, pela falta de fôlego e por um súbito mal-estar.

Meus ossos doíam, os músculos queimavam. Parecia que minha alma ardia em chamas. Eu sabia que estava mudando, ainda não entendia como ou por qual motivo, mas aquela dor não era natural, não era algo semelhante ao que eu experimentava sob o castigo dos açoites. Era pior, insuportável.

Não sei se o que me abraçava era alucinação ou algo do tipo, mas eu vi claramente a imagem do meu avô, um negro robusto e altivo, que viveu por muitos anos, apesar do trabalho árduo e sem descanso. Ele encontrou a morte por meio de uma traição, alguém muito próximo o entregou a troco de migalhas. Uma vez capturado, teve o corpo esquartejado e queimado na praça de castigos. Não ofereceu resistência, talvez a dor da vergonha fosse maior do que os flagelos físicos. Um triste destino para alguém destinado a reinar em seu antigo lar...

A dor me torturava, e em minha mente eu via o velho nagô correndo, mas ele não seguia por entre as folhas do cafezal, tampouco se espremia nos corredores apertados que levavam à senzala. Ele, meu avô, corria livre em nossa terra. Eu sabia que era ele, apesar de estar tão diferente, tão... nocivo. Ele me chamava, e eu fui em sua direção...

Gritei. Minha pele queimava como se tocada por ferro em brasa, era impossível mantê-la cobrindo o corpo. Com sofreguidão, passei a arrancá-la com a força dos dentes. Um novo tom surgia em seu lugar, algo mais escuro dos que os olhos da morte. Espasmos involuntários me dominavam, enquanto eu me arrastava pelo chão. Meus gritos não alcançavam ajuda. Pensei que fosse morrer, e realmente morri. Não de uma forma usual, mas deixei para sempre aquela existência simples. Tive o espírito roubado para receber em troca um sopro demoníaco. Lágrimas sangrentas foram despejadas sobre meu corpo. Vinham diretamente dos céus, vertidas pela minha nova mãe. No fim das contas, o maldito feitor estava certo, meu destino fora realmente traçado naquela noite.

Em harmonia, mãos e pés tocavam o chão com leveza e desenvoltura, uma comunhão perfeita. O vento gelado alisava meus renovados cabelos. Fui apresentada a novos e inúmeros aromas, tons e cores, algo que jamais imaginei ser capaz de existir. Tudo estava tão nítido quanto as águas de uma nascente. A raiva não havia me abandonado, mas dessa vez não era a protagonista em meu existir. A força que me impelia era outra, ainda mais intensa e urgente, e se eu não atendesse ao seu chamado, talvez ela mesma me consumisse.

Cruzei a lavoura e as cercanias da fazenda com a sutileza de uma sombra amaldiçoada. Inspirei forte o ar noturno. Percebi a presença daquele que eu buscava, seu mau cheiro atiçava meus instintos. Inadvertido, ele andava pela margem do riacho, que agora era o túmulo de minha mãe. Com o cano da espingarda sobre o ombro, montava guarda como se fosse a mais inalcançável das criaturas. Sorri, e tive plena convicção de que meu sorriso desmancharia a coragem do mais valente. Fui ao seu encontro com a mesma determinação que já possuía, mas desta vez revestida com a capacidade de impor a minha vontade.

Ele não se deu conta da minha presença, e quando percebeu já era tarde demais. Ainda deixei que reagisse, que tivesse um leve sopro de esperança. O chumbo de sua inútil investida nada fez além de me causar um ínfimo desconforto. Coloquei-me de pé e, pela primeira vez, o olhei de cima para baixo. Deslizei meus dedos pela maciez de seu tronco, produzindo sulcos profundos e doloridos. Deliciei-me com sua dor e medo. Quis tornar eterno aquele momento, mas a consciência que me dominava era incapaz de controlar a bestialidade da minha nova existência. A ardência no estômago era por demais cruel e precisava ser aplacada.

Como um motor de força ininterrupta, minha mandíbula se movimentava com voracidade e rapidez. Nunca pensei que o corpo odioso e repugnante de tão vil criatura pudesse oferecer um sabor tão agradável. Ingeri sua carne. Sorvi seu sangue. Mastiguei seus ossos. Mas não estava satisfeita. Quis tomar as rédeas da consciência, mas a besta dentro de mim insistia em manipular os cordões das minhas vontades. E, contra ela, não havia como lutar.

Ganhei os domínios da noite. Ouvi os lamentos do meu povo. Eles sabiam que o demônio estava ali, o conheciam de outra época, representado num outro corpo. Segui o som das vozes e cheguei à senzala fechada. Alguns peões que montavam guarda tentavam, em vão, controlar o clamor dos negros. Avancei sobre eles com o ódio secular queimando nas veias. O apetite insano comandava minhas ações, mas o prazer que eu sentia a cada mordida respondia pelas infinitas vezes em que o chicote estalou no ar e lambeu as costas de cada prisioneiro. Pouca coisa sobrou por entre os retalhos imundos de suas vestes. Dentro da senzala, os escravos urravam pela morte dos opressores.

Com um leve movimento, venci o jugo das correntes deixando o ar noturno penetrar naquele lugar sofrido. Meus irmãos de pele me olhavam com um temor justificado, pois eu já não era capaz de controlar meus próprios atos. Com ferocidade, avancei sobre eles e continuei a carnificina, já não havia vingança nas minhas atitudes, apenas a necessidade de aplacar a fome que me consumia. Meu povo foi vítima de uma violência infinitamente superior a que até então lhes era submetida, e, para minha vergonha, fora eu a responsável por tal atrocidade.

Meu rosto mais uma vez estava lavado, mas desta vez não por minhas lágrimas ou próprio sangue. A essência ali estampada provinha das vidas ceifadas, umas por merecimento, a maioria não, entretanto todas vítimas da mesma brutalidade insana que viria a me acompanhar eternamente a cada mês. Antes de desaparecer pela mata, ainda encontrei o meu salvador com o corpo retalhado e preso ao tronco de castigos. Gostaria de dizer que fui capaz de poupar-lhe da minha ira, mas não fui.

A fome comandava cada pensamento que nublava minha mente, mas isso não significava que o rancor moldado em minha alma fosse apagado facilmente, pelo contrário. Quando a fome chega, podemos comer qualquer coisa para sobreviver, mas quando o alimento nos apetece, a refeição torna-se muito mais plena.

Movido por essa razão, segui na direção da casa grande. Sem cerimônias, derrubei a folha de jacarandá da entrada principal e entrei pelas dependências proibidas. Segui meu olfato e encontrei cada ser vivente ali presente. E eles também me encontraram. Depararam-se com um horror inimaginável. Fartei-me com a carne do todos os homens, mulheres e crianças que cruzaram meu caminho. Pouco me importei com os apelos e pedidos de misericórdia, meus irmãos também clamavam no tronco.

As primeiras luzes do novo dia começavam a despontar no horizonte, ao mesmo tempo em que a fúria assassina parecia querer me abandonar. Mas eu sentia que ainda havia um maldito na casa e, mesmo cambaleante, segui o cheiro do medo.

Cheguei num escritório do pavimento superior. Havia alguém espremido entre as estantes de livros. A dor da reversão me apunhalava em cada músculo. A consciência humana estava cada vez mais clara, assim como os raios do sol que eu via através da imensa vidraça da janela. Ao perceber minha fragilidade cada vez mais evidente, o homem saiu do esconderijo atrás dos móveis e, de arma em punho, caminhou em minha direção.

Suas vestes finas, em conjunto com os cabelos e a barba em perfeita sincronia, insinuavam a alta classe do desconhecido. Por algum motivo que eu ainda não conhecia, ele não disparou. Já com a fisionomia de criança negra e assustada quase revelada, rabisquei nas paredes brancas, com o sangue que me lavava o corpo, a única palavra que aprendi a escrever nas aulas com a sinhá. E, sem esperar pela sumária execução, me joguei pelo vão envidraçado, pousando entre cacos afiados sobre as pedras polidas do calçamento.

Corri da melhor maneira que pude, instintivamente usando os quatro membros para isso. Antes de desaparecer na mata, ainda olhei por sobre os ombros e vi, na sacada, o homem acompanhando minha fuga com o olhar.

Exausta e com o gosto de sangue na garganta, terminei a primeira noite da minha nova vida desfalecendo na relva, mas não sem antes sofrer com a dor dos últimos estágios da reversão, algo tão intenso quanto o experimentado horas antes. Acordei irreconhecível, renovada em forças, mas dominada pelo mais absoluto remorso. Tive consciência de que, embora lúcida durante todo o evento, o demônio em mim dominava todas as ações. Busquei a resignação, mas não a encontrei completamente.

Sem ter o que fazer naquela região, me mudei para a capital. Foi lá que, em meio à multidão que tomava o Paço Imperial, reencontrei o desconhecido que me teve por alguns instantes em sua mira. Não foi difícil descobrir de quem se tratava. Aquele senhor era nada mais, nada menos do que ilustríssimo Doutor Rodrigo Augusto da Silva, então detentor da pasta do Ministério da Agricultura. Fora ele o responsável direto por influenciar e, quem sabe, manipular as ações da Regente do país, por conta da ausência do Imperador, com relação à decisão final.

Coube a ele o papel de representar a Princesa Imperial na apresentação do projeto na Câmara Geral. Naquela noite maldita, ele esteve na Sete Quedas para tratar de diversos assuntos junto aos escravocratas locais. Não tenho a capacidade de ler pensamentos, mas acredito que o horror diante dos seus olhos tenha sido um agente importante a guiar seus passos até Isabel...

Hoje estou aqui, numa cidade grande e moderna. Um mundo tão diferente daquele que nasci. Vivenciei muitas coisas, aprendi e sobrevivi com a minha maldição, oscilando momentos distintos no meu modo de agir e pensar. Mantenho os mesmos contornos infantes que exibia na noite em que o inferno ouviu meus apelos, não ganhei uma só ruga. Às vezes sinto a necessidade de controlar o ímpeto da fera e, durante o ciclo maldito, me prendo em amarras de prata, me sinto incomodada pelas lembranças das torturas a que eu era submetida, mas me conformo. A resignação tem sido uma chibata tão selvagem quanto a que me marcava a pele.

Em algumas ocasiões, quando a lua chora em vermelho pecaminoso, sou invadida pelo cheiro do medo, pelo gosto do sangue, por uma vontade tão grande de provar mais uma vez a carne humana que a saliva chega a escorrer pelo meu queixo. Nessas noites, preciso redobrar minha força de vontade para domar a fera que faz morada dentro de mim. Libertar o demônio insaciável é uma necessidade quase vital...

Lá embaixo, pessoas vêm e vão, tão descrentes e indiferentes, totalmente alheias ao perigo que as cerca. Hoje já não há mais escravidão, pelo menos não do jeito que me foi apresentada. Entretanto, inúmeras outras mazelas assolam a sociedade, uma pobreza descabida e impulsionada pelas mãos dos governantes. Se na fatídica noite, aquela na qual encontrei minha verdadeira face, o escarlate vivo manchou “liberdade” no revestimento alvo da aristocracia, qual seriam agora as marcas sangrentas a serem impressas nas salas no Congresso Nacional? Igualdade? Pouco me importa. Minha mãe brilha no céu. Tenho fome. Hoje não ficarei presa como uma escrava novamente.

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Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 22/03/2012
Código do texto: T3568680
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