Relatos de Eli (2ª parte): Resgate
Quando a vi novamente, era Dragunova.
Ela continuava maravilhosa, entretanto - e não sei se a tontura, o sangue perdido ou a tortura faziam-me reparar mal - desde aquele instante percebia um olhar diferente nela... ou ela sempre o teve?... Ela insiste em dizer que não aceita sua deformação e que isso a deixa isolada, mas eu sempre soube quando ela mentia... ou eu nunca soube?...
Ela entrou em minha cela - os portões ficavam abertos, mas eu sempre estava acorrentado. Creio que fazia parte da minha tortura vê-los abertos, podendo qualquer um entrar e sair - não sem antes de, pelo menos, chutar-me a face.
Ela veio até mim. Não sorria.
- Aprender sozinho não é simples, Eli. E por isso acredito que deveria me desculpar, mas, por Caim, como chegou a tanto? Não se enfrenta o Sabá sozinho, meu querido. Eles são vírus, são praga: surgem de qualquer canto, especialmente dos esgotos.
Ela se abaixou perto de mim e examinou as enormes rachaduras em meus lábios e em minha língua, fruto da desidratação e da fome. Eu sequer conseguia me mover, estava fraco e seco, pior que qualquer doente terminal: um doente terminal já teria morrido há semanas. Ela observou o seu entorno e viu alguns ratos dos quais bebi, além dos restos das carnes podres sangrentas que me eram servidas e que eu mastigava com fúria, em busca da menor gota de sangue. Ela nada expressou, apenas acolheu minha cabeça em seu ombro e disse que iríamos para casa.
Ela estava gritando como nunca ouvi alguém gritar. Aquela massa disforme de carne, ossos, dentes, pêlos e chifres aderiu em suas costas. Eu estava no chão novamente, ela, ajoelhada ao meu lado, ensurdecia-me. Vi o deformador a centímetros dos meus olhos quando ela interveio. Conseguiu mover seus dedos poucos centímetros, encostando-se à pele dele. Seu sangue fervia; morreu. Vi mais perfeito retrato do sofrimento: por mais que ele não tivesse expressão facial alguma, aquele bolo se retorcia e enegrecia, enquanto a pele borbulhava e seu sangue evaporava.
Perdoe-me pela narrativa falha, mas eu lembrar isso já é algo impressionante por si. Não foi um reencontro que atendesse às expectativas que, mesmo negando, escondendo e reprimindo, sempre existem. Eu a imaginei e a fantasiei por quase 100 anos – e isso é pouco para os de minha geração – mas Svetlana não existia.