Relatos de Eli (1ª parte): Parafusos e escolhas
Ela me observava com aqueles olhos verdes que pareciam ter o poder de me decifrar completamente, de buscar cada mágoa escondida em meu passado, cada passagem negra e muito bem embrulhada e escondida de minha vida, e apreciá-la. Mas ainda que o fizesse, era reconfortante, ela não me reprimia pelos meus recalques, aceitava-os e os entendia. Sem a menor dúvida, era linda: alta; longos cabelos loiros; a boca pequena; lindos olhos claros, levemente puxados. Entretanto - e mesmo hoje muitos não percebem - não é a beleza e a suavidade de sua voz que a faz esplêndida: é sua presença. Tente: sequer olhe para ela, ignore suas palavras, mas fique perto; você a sente! Ela está ali e você sabe disso; ela te decifra e você não só tem perfeita ciência de tal fato, como o deseja. Ela, como ninguém, sabe emanar imponência e respeito sem criar temor. Não que ela não saiba fazer-se temida, ah, ela sabe!, mas não é intrínseco.
Pequenos acontecimentos interligados estão por trás de todo e qualquer feito, até mesmo dos inimagináveis. Que chance um operário – sim, educado num convento, mas ainda assim rude – teria de chamar a atenção dela? Assim seria se eu não tivesse me arrastado àquele bar decadente, bastava tão-somente eu dormir mais cedo – de fato, eu estava exausto. No meu dormitório, na minha cama sem colchão, em meio aos ratos, tal qual nos últimos meses, nada aconteceria. Uma escolha fútil mudaria tudo. Pergunto-me se há alguma escolha fútil servindo de pilar para a presença dela lá.
- Você acha que tem escolha, Eli? – olhava-me nos olhos, sem hesitar.
Às vezes eu a encarava, como um animal que desafia outro, olhando-o nos olhos, mas ela sempre vencia.
- Escolha?
- Escolha, Eli. Aqueles que ficam ao seu lado o dia inteiro e que você sequer sabe o nome têm escolha? Quem os fiscaliza durante o turno inteiro tem escolha? Você tem escolha, Eli?
- Se eu pudesse escolher, não apertaria parafusos... – respondi, ela sorriu imediatamente.
- Mas não pode. Não pode sequer escolher não fazer alguma coisa.
Eu fiquei em silêncio, pois não havia resposta.
Conversamos sobre os mais diversos assuntos, os quais eu sequer entendia. Enquanto a maioria das minhas intervenções fossem perguntas tolas ou interpretações erradas, ela me mostrava seu ponto, revelava-me muito da sua personalidade, mesmo que eu não percebesse. E enquanto ela me dizia mais do que eu era capaz de assimilar, o lugar esvaziava e, antes de me dar conta, estávamos eu e ela, somente. Não sei exatamente como, nem em que momento, mas lembro que ela me puxava pela mão, levando-me a um quarto escuro. Meu coração não poderia estar mais acelerado e meu rosto parecia anestesiado. Num instante, ela já me empurrava de costas na cama e ficava sobre mim, como que desde o começo mostrando quem era a condutora, quem tinha as rédeas. A maioria não chega a tanto: quando levam seu companheiro a um lugar isolado, atacam. Pensando bem, deve ser uma enorme decepção...
Lembro de roupas rasgadas e de como ela me beijava de uma maneira que eu só posso definir como feroz. Só no fim, ela sussurrou em meus ouvidos, enquanto eu tentava recuperar o fôlego que nunca mais viria: “você terá escolha, Eli”. Fez-me sangrar e me fez beber.
Ela não mentiu: nunca mais apertei parafusos.