A Criança Degolada

Encontrei seu cadáver ainda quente naquele beco escuro e imundo. Era um menino. Sua garganta fora cortada de um lado ao outro. O sangue ainda golfejava. Não devia ter que mais que sete anos de idade. Sua expressão angelical contrastava com o horror impiedoso do talho que estraçalhou sua laringe. O beco e as ruas próximas ao local se encontravam completa e funestamente vazias. Ou, ao menos, assim aparentavam. Não havia nenhum sinal ou vestígio no local de que alguém havia ali estado e assassinado a criança. Nenhuma arma. Nada.

Deixei o local absolutamente chocado. E sentindo-me mal. Não que isso não me fosse relativamente comum. Porém, sentia-me mal de uma maneira estranha, inquietante, anômala. Mas o mais curioso foi que todos passaram a me culpar pelo crime. Eu sabia disso. Que me culpariam. De início, foi um pressentimento intuitivo. Depois, conforme perambulava desolado pelas ruas mergulhadas no abismo da noite, pude observar pelas janelas das casas disformes centenas de olhares que me fitavam de maneira condenatória. Aqueles olhares emitiam alguma espécie sinistra de luz fosforescente que me transtornava. Permaneci, no entanto, caminhando sem rumo e sentindo o peso da culpa, de uma culpa que não era minha.

O dia amanheceu com um sol enfermiço. Exausto, sentei-me em um gramado que mais parecia um pântano. Em questão de minutos, encontrei-me cercado por uma multidão de pessoas definitivamente horríveis, com expressões de absoluta crueldade em seus rostos carrancudos, monstruosos. Não pronunciavam uma só palavra. Porém, apontavam-me seus dedos indicadores, obviamente acusando-me daquele crime que eu não havia cometido. Uma velha repulsiva, sentada em um banco sob uma árvore retorcida, fitava-me com um sorriso maligno, enquanto lia O Processo, de Kafka.

Mesmo com todo meu cansaço, ergui-me e saí às pressas daquele lugar deprimente. Dirigi-me à solidão do campo. Diante de mim, resplandeceu um magnífico prado absolutamente florido. Eram flores por todos os lados e de todas as cores, um espetáculo que eu jamais vira. Elas subiam por colinas infinitas e pareciam que se prolongavam a um horizonte indefinido.

Comovi-me diante de tão divina visão. Desejei intensamente caminhar por entre as flores, sentir seu inefável perfume, vivenciar um instante daquela paz inaudita. Porém, conforme eu caminhava, e as fitava, e aspirava seu aroma, e as acariciava, as flores, todas aquelas flores celestiais, murchavam, feneciam e secavam diante de mim. O perfume transformara-se em um fedor pungente. E as colinas agora cinzentas e sem vida transmitiam a impressão de um cenário de uma batalha. Desesperado, segui em frente.

Mais adiante, novamente renasceu-me a esperança. Uma floresta gigantesca assomou-se imponente à minha frente. Árvores de um verde escuro extremamente vivo, imensas, deslumbrantes, que se perdiam por entre montes e vales que me assombravam. Algumas floridas, outras carregadas de frutos silvestres. Pássaros canoros revoavam e pousavam por entre a imensidão das árvores. Ao longe, eu podia escutar o som harmonioso de um rio com corredeiras e cachoeiras. Acelerei o passo e penetrei na floresta. Mas a cada passo meu por entre o interior da mata, dezenas de árvores gigantes caiam simultaneamente, já sem folhas, completamente mortas, apodrecidas, fétidas, e com elas outras centenas de árvores menores e plantas diversas morriam em questão de poucos minutos.

E aquelas aves tão belas, tão coloridas, cessaram subitamente seu canto e despencavam fulminadas. Eu ouvia o perturbador baque de sua queda no chão. Consegui, no entanto, atingir o rio. Porém, quando olhei para trás, o que contemplei foi a mais absoluta devastação. Não restara uma só árvore, uma só planta, uma só ave. Apenas um lodo repugnante onde os galhos, troncos e pássaros apodreciam e afundavam.

Não obstante tanto horror, aquele rio mirífico permanecia com sua beleza intocada, com suas águas brilhantes e intensas, puras e cristalinas. E as matas do outro lado de suas margens continuavam exuberantes e intactas. Carregando aquela culpa absurda nas minhas costas, desejei sofregamente banhar-me naquelas águas, concender um alívio, ainda que momentâneo, à minha aflição. Porém, quando meu corpo se encontrava totalmente imerso no rio, percebi que algo saía pelos meus poros.

Era sangue, sangue em uma profusão absurda. Toda a minha pele, desde a de meu rosto até a de meus pés, sangrava incessantemente. E o sangue que já havia sangrado parecia que se multiplicava em mais e mais sangue, numa progressão que ia ao infinito, até que em toda a extensão avistável do rio somente se avistava sangue em lugar de suas outrora límpidas águas.

E quando eu já não estava mais dentro do rio, em suas águas sanguinolentas, surgiram, boiando sobre o sangue, milhares e milhares de peixes, mortos, mal cheirosos, além de várias outras espécies de animais aquáticos, todos agonizantes. E ocorreu que as águas sangrentas passaram a transbordar e invadiram o lado do rio onde a mata permanecia viva e intacta. É desnecessário que eu diga que aquela água contaminada com meu sangue causou a morte quase instantânea de todas as plantas, árvores e demais seres que ali viviam.

Acabado, definitivamente acabado, parti daquele horror causado pela minha culposa presença.

Caminhei até minhas pernas perderem as forças. Foi então que divisei extasiado a mais impressionante das visões. Uma planície que aparentava ser infinita, de uma tonalidade de um verde tão vívido que parecia inacreditável, e sobre ela um número incontável de animais das mais diversas espécies. Era algo como uma savana africana, das mais preservadas, das mais belas, porém, ia ainda além, de alguma forma inaudita que eu não saberia explicar. Sentei-me e contemplei aquele cenário quase onírico tocado pela mais profunda e sublime emoção. No entanto, decidi não ir até lá. Estava certo que a minha presença no local causaria alguma forma de catástrofe que acabaria por trazer à morte aos animais e destruiria a totalidade da beleza da planície.

E ali permaneci, observando atentamente, comovido com a visão de todos aqueles animais que conviviam de acordo com as leis do equilíbrio natural. E chorei. Porém, minhas lágrimas eram abundantes em demasia, absurdamente abundantes, e eu não conseguia controlá-las, o meu choro descia de forma infrene. Por mais que eu me esforçasse, não me era possível conter as lágrimas. De modo que elas se espalharam de tal maneira que desceram a colina onde eu me encontrava e atingiram a planície em que viviam os animais. E chegando lá, minhas lágrimas, as minhas lágrimas inflamadas de culpa, febrentas, exalaram algo como um vapor venenoso, fatal. E todos os animais morreram sufocados pela névoa maligna das minhas lágrimas. Todos! E o verde da planície transformou-se em um marrom desbotado e deprimente.

Destruído, absolutamente destruído, decidi retornar para a cidade. Durante o caminho de volta, inesperadamente, encontrei aquela que, acredito, era a mais bela das mulheres. Ela caminhava em minha direção. Aparentava emitir algum tipo de luminosidade. Mas era apenas uma impressão minha, causada, creio, pelo meu estado doentio de exaltação psíquica diante de tão angélica mulher. Ela parou bem à minha frente, olhou fundo nos meus olhos, abraçou-me com um imenso calor humano e, por fim, beijou a minha boca com indizível paixão.

E foi somente o instante de beijar. Em menos de um minuto, aquela mulher tão bela passou a sentir náuseas, fortes dores estomacais e golfejou algo como um sangue grosso com pedaços de vísceras liquefeitas. A princípio, o sangue era de um vermelho mórbido, mas foi se transformando em um espesso e viscoso líquido arroxeado. Por fim, já era completamente negro. E a mulher morreu ali, na minha frente. Esquálida, como se tivesse murchado de uma hora para outra, expelindo aquele líquido negro por todos os orifícios de seu organismo.

Morto, irremediavelmente morto, retornei à cidade e dirigi-me ao corpo da criança degolada. Ela ainda estava lá. Já apodrecendo, esverdeada, arroxeada. Vermes passeavam em seus olhos, em sua boca. O fedor já era insuportável. Sentei-me ao seu lado e ali permaneci. Como um idiota. No meu rosto, não havia a mínima expressão. Em minha alma, não se encontrava o menor sentimento. Todo o horror daquela criança ali degolada, e eu não sentia nada. Nada.

E foi com uma suprema indiferença que me dei por conta que aquela criança ali era a que eu fora. Ela era eu. E ela se suicidara.

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Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 11/03/2012
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