Aborto

E mais um dia começa. A rotina de sempre. O espaço é pequeno mas é tão quentinho e aconchegante aqui que nada me falta.

De vez em quando ouço ruídos e vozes, as quais minhas limitações fetais impedem de compreender.

Em particular, tem uma voz que ouço mais vezes. Acho que é minha mãe, não sei. Digo não saber porque, embora seja a voz mais frequente que escuto, as palavras vindas de seu vocabulário humano não parecem ser boa coisa.

Acho que é só impressão. Mas a cada dia que passa, pressinto que são coisas ruins a meu respeito e temo por meu futuro inserto.

Desgraçado, infeliz, problema, droga, foda mal dada, será que são palavras de elogio? Deve ser, afinal de contas, essa mulher, à qual sou tão intimamente ligado as pronuncia todos os dias, quase o tempo todo.

Outro dia achei que já iria nascer. Minha pseudo-mãe foi a um lugar e conversou com uma outra, pessoa? É assim que chamam? Essa pessoa disse que tudo daria certo e em breve ela se veria livre disso. Bastavam alguns comprimidos e um chá abortivo e tudo bem. Aborto é uma palavra tão bonita...acho que é o nome que vão me chamar quando eu nascer. Essa tal mulher talvez seja o que chamam aí fora de médico ou médica.

O mais esquisito é que acho que minha hora de nascer ainda não chegou. Meus dedinhos estão até grudados uns nos outros e acho que sou tão pequeno quando, como é mesmo o nome, azeitona? Pra que serve?

E um novo dia recomeça. Tá tudo tranquilo. Minha pseudo-mãe está quieta hoje. Acho que está brava comigo porque ainda não me dirigiu a palavra. Penso que, definitivamente meu nome não será aborto. Acho que vai me chamar de Desgraçado. É um nome maior, apesar de esquisito. Mas nem isso ela disse hoje.

Estou ouvindo uns barulhos estranhos. Nossa, acho que abriram a porta do meu esconderijo. Há uma forte luz entrando e a água está saindo depressa, tão depressa que está me puxando pra fora.

Já vou nascer, é isso? Mas espere. Estou pouco maior que a tão falada azeitona. Está fazendo frio, muito frio.

Meu Deus, tá doendo muito, muito mesmo. Se isso for nascer eu não quero mais, me coloquem de volta, por favor. Ai ai, tá doendo demais. Pára, mãe pára.

Ai meu Deus, minha perninha, não faz isso não. Tá doendo muito, não, não, meu Deus, estão me partindo ao meio.

Tomei uma unhada nas costas e ela tá sangrando, tá se abrindo.

Ai meu Deus, não estou mais aguentando. Que frio, que dor intensa. Que luz é essa? Minha mãe tá chorando e a voz dessa pessoa feia. Ela tá me machucando. Deus, não permita isso, estou me sufocando porque ainda não sei respirar. Minhas pernas acabaram de ser arrancadas. Meu bracinho caiu. Como minha cabeça dói, está se abrindo.

Me leve, meu Deus, antes mesmo que eu conheça a maldade deste mundo. Me ajuda, pára, tá doendo, pára, tá doen...

Paulo Farias
Enviado por Paulo Farias em 11/03/2012
Código do texto: T3547324
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