No Quintal

Quando escureceu, Fabrício esperou seu pai caminhar até o quintal para observá-lo. Era verdejante, florido e rodeado de bananeiras e mangueiras carregadas de frutos. A porta dos fundos e o portão que dava acesso à rua eram unidos por uma extensa calçada, que antes era iluminada apenas por uma lâmpada disposta estrategicamente no centro da mesma, apoiada improvisadamente por um poste de madeira, mas que agora jazia na escuridão. João tinha que caminhar com cuidado, apesar de seu trajeto ser facilmente trilhável por conta do tom calcário da calçada. Claro que se desse um passo em falso, não sofreria qualquer dano, apenas mataria uma fileira bem disposta de orquídeas. Ele caminhava discretamente, olhando para o céu estrelado e reclamando do frio.

Ao chegar à parte inferior do quintal, onde as bananeiras se espalhavam por um pequeno quadrado rodeado de salsas e cebolinhas, João teve o cuidado de driblar a cerca frágil e acender o isqueiro. Olhou para a porta dos fundos que estava aberta e viu a figura franzina de Fabrício se agachando ao lado da pia. Deu um leve sorriso e tentou imitar o gesto do filho, sentindo uma dor lancinante na coluna ao fazê-lo. Não queria elevar a voz para avisar o filho de que não poderia vigiar os adultos, mas limitou-se apenas a olhá-lo com reprovação. Bem sabia que o gesto não poderia ser facilmente interpretado pela falta de luminosidade, mas esperaria alguns segundos para ver se daria certo. Fabrício observou a face enegrecida do pai o fitando inexpressivamente e logo se pôs de pé para fechar a porta. Foi apenas uma reação automática de um menino assustado, que não se deixaria levar pelo medo. Olhou pela janela entreaberta e viu a figura de seu pai recostar-se nas folhas da bananeira.

Fabricio voltou para o quarto de cabeça baixa. Sabia que hoje seria mais uma daquelas noites compridas e carregadas de terror. Seu pai não o deixava trancar a porta do quarto, o que o deixava ainda mais apreensivo. Tinha que ficar a mercê do desconhecido, do inevitável. Sabia, no intimo, que sairia vivo mais uma vez; mas acreditava também que não seria por muito tempo. Mais alguns dias e a morte o levaria, assim como levou sua mãe.

Depois que o seu pai escondeu o rosto por entre as folhas da bananeira, Fabricio apenas esperava os longos minutos que antecediam os momentos de agonia. “Tinha que ser sempre à noite!” – esbravejava sozinho. De noite tudo parece ser mais macabro, um limiar de morte iminente. Mesmo morando num residencial aparentemente pacato, tinha o coração propenso ao inesperado e a mente preparada para a pior tragédia. Contava no seu relógio os minutos, ouvindo seu coração disparar a cada instante. Cada passada do ponteiro era uma facada em seu peito magro. Depois de quarenta minutos ouviu o som do gramado pisado de forma grosseira.

Fabrício saiu de sua zona de conforto e correu para a porta dos fundos. Enquanto seu pai ainda jazia no meio da calçada, ele fechou a porta e colocou uma cadeira para reforça-la. Seu odioso pai não deixava a chave na fechadura para evitar que ele a trancasse. O garoto sentou-se na cadeira inocentemente, achando que seu pouco peso seria suficiente para manter a porta cerrada. Escutou o som do sapato se arrastando pela calçada e se aproximando cada vez mais. O seu pequeno coração acelerava a cada segundo, sua face empalidecia e sua respiração ficava ofegante. Quem quer que seja lá fora, não era seu pai, mas sim um monstro que se apoderara de seu corpo – assim pensava.

De repente Fabrício escutou um rangido vindo da cadeira, que se afastou alguns centímetros. João empurrara a porta com apenas uma mão. Ele baixou a cabeça e deixou escapar um sorriso medonho, continuando a empurrar a porta com apenas um dedo. Parecia brincar com o medo que o próprio filho sentira. Fabrício pensou em se levantar e correr para o quarto, mas seria inútil. Sem as chaves, não poderia prender a porta por muito tempo. O que poderia fazer era se esconder debaixo da cama até que seu pai o puxasse. Daí em diante era torcer pelo fim do pesadelo. Teve um sobressalto quando viu a mão de seu pai buscando seu ombro através da porta entreaberta. Correu para o quarto e se escondeu debaixo da cama.

- Venha, meu filho, você precisa experimentar. É muito bom. Vai te levar a mundos que jamais pensou visitar, lhe prometo. – disse João, com a voz entrecortada.

Fabrício manteve-se em silêncio. Não conseguia sequer engolir a própria saliva. Suas mãos tremiam incessantemente. Mordia os lábios ao ver que seu pai já cruzara a porta de seu quarto.

- Sei que você está ai. Não tenha medo. Não é difícil, você não precisa fazer praticamente nada. – as palavras pareciam amistosas, mas o tom era macabro, mais próximo do medonho.

- Não vou sair. Você não é meu pai – disse Fabrício, num murmúrio acompanhado de choro.

- Mas vai sim, e vai ser agora!

João puxou as pernas do filho e o corpo do pequeno deslizou pelo chão com enorme facilidade. Fabrício virou-se para fitar o pai e viu os olhos vermelhos e a face carregada de expressões, como se mil espíritos lhe houvessem tomado o corpo. Nunca tinha visto diretamente o rosto de seu pai quando estava aparentemente possuído, e desejava nunca ter visto agora. Estava com tanto medo que sequer conseguia piscar. Pensava que ia morrer só de fita-lo.

- Pai, me deixa, me deixa! Eu não quero morrer...

- Mas você não vai morrer, meu filho – disse João, com ternura – Nascerá novamente para uma nova realidade, além da fantasia de mentes criativas. Não é esplendido?

Fabrício não entendia muito bem o que seu pai falava, mas sabia que a única forma de sair vivo é satisfazer os caprichos insanos dele. Aceitou a oferta e o acompanhou até o quintal. Caminhava hesitante pela calçada, com seu pai logo atrás, lhe falando de coisas fantasiosas. João puxou o isqueiro do bolso e agachou-se diante da bananeira. Afastou algumas folhas e o acendeu. Fabrício observava tudo, com enorme espanto, tentando controlar seus batimentos cardíacos.

Ainda criança, Fabrício jamais imaginara que poderia ver algo tão grotesco em sua vida. Quando seu pai puxou uma última folha de bananeira, ele viu uma raiz emergir-se da terra sozinha e abrir uma boca coberta de finos dentes. A criatura se assemelhava a uma cobra, mas seu corpo era irregular e recoberto por uma membrana fina que deixava transparecer as veias. Ela saiu da terra e mordeu a nuca de seu pai, fazendo-o soltar um gemido de prazer. Depois se enrolou no tronco, se recompondo. João então se virou para o seu filho e disse:

- Meu filho, sei que não vai cometer o mesmo erro de sua mãe. Ela tentou matar a criatura achando que era diabólica; por isso tive que acabar com a vida dela. Você é meu filho querido e quero sempre o melhor para você. Venha, deixe que ela lhe mostre um novo mundo.

Fabrício, quase que hipnotizado pelas palavras de seu pai, agachou-se e deixou que a criatura mordesse sua nuca. Quase que instantaneamente sua expressão mudou, e um tenebroso sorriso tomou lugar, dando início a uma nova vida.

Cleiomar Queiroz
Enviado por Cleiomar Queiroz em 10/03/2012
Reeditado em 10/03/2012
Código do texto: T3546983
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