Os Cães
Leôncio dirigia o carro por ruas desertas de um bairro antigo, tendo ao seu lado uma jovem já falecida. O que lhe causava estranheza era a calma que o dominava sabendo que estava ao lado de uma pessoa morta há dez anos em um acidente de moto. Não trocavam nenhuma palavra. Amanda tinha um olhar fixo à frente, como se estivessem brigados. Jamais olhava para ele ou para os lados.
A noite e a companheira faziam o motorista lembrar o tempo em que eram namorados e saiam de um motel e rodavam com o automóvel pelas ruas desertas da cidade na madrugada. O que mais o atormentava era querer lhe dizer o quanto sofreu quando soube de sua morte, mas, não conseguia falar e o fato de não se lembrar onde se encontraram ou como ela embarcou no carro o afligia.
Sem saber o porquê, Leôncio parou o veículo num cruzamento. As vias estavam completamente desertas, num silencio sepulcral e num mormaço sufocante, apesar de ser noite. A estreita avenida em que eles se deslocavam possuía uma faixa de cimento velho em seu meio e pedras nas beiradas. O cimento ainda preservava os antigos trilhos dos bondes, desativados há quase cinqüenta anos. A ladeira que a cruzava era coberta de paralelepípedos. Uma descida suave, mas, que no encontro com a via já era plana. Ambas possuíam poucos postes velhos de iluminação, somente no início e no fim de cada quadra e eram ladeadas por muros baixos, todos de residências antigas de dois pisos que ficavam nos centros dos terrenos, rodeadas por jardins.
Leôncio deixou o carro estacionado na contramão da via cimentada, no meio da rua da ladeira, como se ele ligasse as duas calçadas do mesmo lado, impedindo que um carro que por acaso trafegasse pela via dobrasse na rua de paralelepípedos. De repente, da intensa penumbra começaram a surgir inúmeros cães que corriam pelas calçadas. Aparecia um de cada vez e o seguinte só entrava em cena quando o primeiro desaparecia. Leôncio e Amanda desceram do carro e ficaram em pé atrás do automóvel observando os animais. Um dog alemão corria pela calçada da ladeira à esquerda do casal e ao chegar na esquina dobrou a sua direita. Logo após, um pastor alemão veio pelo outro lado da mesma rua e ao chegar à via cimentada, dobrou a sua esquerda. Depois, um perdigueiro passou pela via cimentada do outro lado da rua no sentido direita para a esquerda e a seguir um Doberman cruzou na mesma direção do anterior, na frente do carro, na calçada em que eles faziam com o automóvel a união das duas esquinas. Foi o que chegou mais perto do veículo, o que causou medo em Leôncio. Eram cães de várias raças, como pastor alemão, Dog Alemão, Labrador, Rottweiler, enfim, todos de tamanhos grandes.
Foram mais de cem cães que passaram em silêncio e um de cada vez como se respeitassem a ordem de um desfile que tinha quatro pontos de aparição. Quando um sumia imediatamente outro aparecia. Passavam na frente do carro e sem parar de correr olhavam para o homem e a mulher e tornavam a olhar à frente e a seguir seu caminho. Nunca trocavam de calçada e não latiam.
O casal permaneceu assim por um longo tempo, acompanhando o deslocamento dos animais sem saber o que fazer. Amanda estava lívida, tinha um olhar fixo, um semblante sério e não demonstrava reação alguma.
“De onde vinham tantos cães? E onde estavam seus donos?” – indagava-se Leôncio. A ausência de pessoas, ruídos, carros e dos ônibus que àquela hora ainda teriam que circular o afligiam. Apesar de ser uma rua estreita e antiga, era a principal via do bairro. Pensava que alguma coisa havia acontecido. Sentia-se desprotegido, frágil e angustiado por todo aquele torturante silêncio e solidão e por não saber se realmente Amanda estava do seu lado, já que até aquele instante eles não trocaram nenhuma palavra. Era impossível que o clima sufocante e amedrontador não lhe causasse receio e ela não tivesse a vontade de exprimir seu medo através de um gemido, de uma lamúria ou de uma palavra.
Enquanto isso, os cães continuavam a passar, sempre a correr em frente ao carro. Às vezes um cachorro descia a ladeira numa velocidade maior que os demais. Parecia que iria atacá-los. Mas, na esquina olhava para o casal e dobrava seguindo pela a rua cimentada, continuando seu caminho, indo ao encontro de algo ou de um chamado que Leôncio não sabia o que era.
O rapaz observou Amanda. Ela mantinha seu rosto anguloso e magro e o corpo elegante de seus vinte anos, mas, sua pele estava de um branco mórbido. Pela primeira vez seus olhos se encontraram. Ela o mirava com um olhar penetrante e frio que em instantes se tornou receoso de quem tem algo a lhe dizer, mas, não tem coragem e depois se transformou numa profunda tristeza, como se ela fosse chorar. Leôncio ergueu a mão tentando lhe fazer um afago. Os olhos negros de Amanda se arregalaram. Seu semblante se tornou assustado e a jovem saiu correndo pela rua. Leôncio gritou para que ela parasse, voltasse e só aí se deu conta que a calça jeans e a blusa que a garota usava haviam sido trocados por uma túnica branca, sem ele perceber.
Leôncio constatou que à medida que ela se afastava os cães deixavam de cruzar pelo carro e quando ela não era mais visível, os animais sumiram. Receoso, voltou a observar o bairro deserto. Entrou no veículo manobrou-o e retornou lentamente pela via. Viu numa esquina um boteco aberto, que ele não havia percebido antes. Desceu e entrou no estabelecimento, iluminado apenas por uma lâmpada. Um homem baixo e gordo estava atrás do balcão. Vestia calças largas com o cinto aberto e uma regata branca e limpa. Não tinha nenhum tipo de pelo nem no rosto, nem na cabeça e uma enorme papada fazia a ligação entre o tronco e o crânio.
Leôncio pediu uma cerveja e comentou o silêncio medonho que assolava o bairro.
O balconista lhe disse, num tom de desdém:
- O inferno não é o fogo, mas, a solidão e o silêncio imposto. O horror de não se ter alguém para afagar ou trocar uma idéia – falou enquanto limpava o balcão de pedra, que não tinha nenhuma poça ou mancha de bebida.
Leôncio sentou à única mesa de madeira do estabelecimento, a espera que Amanda voltasse. Observava a rua e angustiado constatava que não havia vida na avenida. Notou que a mesa era extremamente limpa e a pilha de caixas de madeira de garrafas de refrigerante era formada por vasilhames de vidro dos anos sessenta, assim, como eram as propagandas que se espalhavam pelas paredes do bar. Observou ainda, que não existiam teias de aranhas entre as caixas, apesar do tempo que elas deviam estar ali, nem sujeira e nem insetos voando em torno da lâmpada, mesmo com a noite quente e abafada. Com exceção do atendente, também não havia vida no bar.
Olhou ansioso para a avenida, na esperança de que Amanda retornasse. Calculou que se ela estivesse viva teria agora trinta anos, dois a menos do que ele. Nestes dez anos, Leôncio casou, separou, casou novamente. Amou suas esposas e outras mulheres sempre pensando em Amanda, o grande amor de sua vida. Era um homem infeliz, amargurado. Tornou a mirar a estreita e deserta avenida e lembrou das palavras do bodegueiro sobre a solidão e o inferno. Virou-se tentando falar com o homem, mas, ele o havia abandonado.
Refletiu sobre tudo o que havia visto e sentido, sobre o semblante apreensivo de Amanda e novamente sobre as palavras do comerciante e envolto por todo aquele angustiante e opressivo silêncio não sabia se estava vivo ou morto.
Com a frieza e a apatia de quem não encontrava mais prazer na vida, conformou-se ao pensar que se ali fosse o inferno, pelo menos havia cerveja. E era gelada.