Cultivando Amigos

O vento nos cabelos, os pés tocando a terra úmida e as árvores passando rapidamente por elas. Sorriam e ao mesmo tempo conversavam. Precisavam chegar o mais rápido possível ao lago.

— Você é mesmo muito maluca, sabia? – A menina de cabelo avermelhado, rosto cheio de sardas e olhos verdes gritava a plenos pulmões.

— Ah! Não seja dramática Mirela, sei que você gosta de se aventurar e de mais a mais nenhuma de nós duas é alérgica a vespas. – A garota de cabelos negros, pele branca e sorriso iluminado dizia enquanto soltava a mão da outra.

Continuavam a correr e num impulso jogaram-se no lago. A água formou várias ondas e as duas nadaram por certo tempo. O céu limpo completava o cenário daquela gostosa tarde. As meninas de oito e nove anos ainda ficaram um tempo no lago apreciando o sol que caminhava lentamente despedindo-se do dia. As duas nadaram até a margem e deitaram na grama, ficaram ali apenas observando o azul se tornar levemente alaranjado. Uma delas se levantou e disse:

— Vamos subir na árvore e observar a primeira estrela do céu. – a segunda pôs-se de pé em um salto e desvencilhando-se da mão da ruiva, correu até a árvore mais próxima e disse com seu sorriso sapeca.

— Quem chegar por último é mulher do padre. – Agarrou-se ao tronco e com agilidade começou a escalar, devagar a outra seguiu seus passos e rapidamente ambas estavam sentadas em um galho forte. Observavam silenciosas o espetáculo da natureza. Novamente a ruiva enlaçou seus dedos ao da morena e olhou-lhe brevemente, dizendo em seguida:

— Promete que seremos amigas para sempre?

— Mirela já fizemos até um pacto de sangue. – Disse a morena soltando as mãos e apontando para o horizonte.

— Mas preciso de sua promessa, entende isto?

A outra parou de apontar e tocou levemente o cabelo da amiga, olhou-a nos olhos e disse com a voz firme, mas que ao mesmo tempo soava macia e gentil:

— Mirela serei sua amiga para sempre, nada nem ninguém jamais terá o lugar que tenho reservado para você em meu coração.

— Seu coração é muito grande? Você pretende se casar? - Perguntou a ruiva um tanto quanto apreensiva.

Uma breve gargalhada saiu dos lábios da morena e ela olhou para o horizonte e disse com a voz realmente sarcástica.

— Meu coração é do tamanho do mundo, mas o seu terreno não vendo pra ninguém. Sua bobinha. – Apertou as bochechas da amiga e saltou sem aviso da árvore.

— Ufa, um dia você vai me fazer ter um infarto, senhora imprudente. – Mirela suspirou e desceu devagar da árvore.

͸͸͸

— Mirela vou me casar. – As palavras foram ditas com alegria, entusiasmo e certa incerteza.

— Sério? Puxa vida isto me deixa muito feliz. – A voz saiu controlada, fingida e bastante duvidosa.

— Sim amiga, nunca pensei que me casaria e nem em sonho imaginei que moraria um dia na Inglaterra.

— Inglaterra? Como assim? – A voz agora estava desesperada e as mãos suavam. As pernas tremiam. Mirela não conseguia disfarçar seu desespero.

— Exatamente, pensamos bem e decidimos morar no país de Trevor, mas não precisa fazer esta carinha, pois nada mudará entre nós duas. –Aproximou-se e beijou de leve a bochecha da amiga que agora tinha cabelos ruivos bem crespos amarrados em um rabo de cavalo mal feito, olhos profundos e cheio de olheiras; pele com mais sardas do que se possa imaginar.

— Mas porque precisa ir para tão longe? O que existe de errado no Brasil? – A voz saiu trêmula e esganiçada, ela contorcia as mãos nervosamente.

— Porque para minha carreira lá é muito melhor. Convidei o Marcos paras ser padrinho junto com você, se importa? – A outra não dava tanta importância para o desespero da pessoa a sua frente e isto lhe causou imenso desespero.

— Marcos? Aquele seu primo que tem nariz de batatinha? Aquele que me beijou à força na sua festa de formatura?

— Este mesmo, se importa? – O sorriso continuava iluminado, mesmo após tantos anos. Mirela nunca diria não a sua amiga.

— Tudo bem, ele é um sujeito repugnante, mas aprendi a lidar bem com isto... – Antes de começar a falar de mais um dos cadáveres que havia exumado a outra lhe olhou com severidade e disse.

— Não comece Mirela, você é minha amiga do coração, amo-te do fundo da alma, mas não sou como você. Não vejo nada de fascinante em examinar mortos. – Seu olhar era duro e sua voz áspera como uma lixa.

A outra nada disse, aproximou-se e lhe deu um beijo carinhoso na bochecha, afastou-se lentamente e antes de entrar no carro disse com animação fingida.

— Estou muito feliz por você. – Entrou no carro e deu a partida, rapidamente sumiu de vista.

͸͸͸

A casa era a mesma, carregava em suas paredes lembranças dos muitos que haviam feito dela seu lugar seguro. Ela exalava um cheiro quase indecifrável, algo que lembrava gatos, celeiro e rosas. Abriu a porta e observou a parede esquerda, havia nela apenas um quadro, um diploma já amarelado. O sofá era velho e desbotado, o tapete puído e empoeirado irritava o nariz. Nas cortinas vários buraquinhos deixavam os raios de sol passarem formando pequenas bolinhas no chão de madeira escura. Caminhou até a cozinha e neste local a solidão era mais evidente. As panelas penduras acima do fogão estavam empoeiradas e algumas continham teias de aranhas em seu interior, as canecas esmaltadas tilintavam ao sabor do vento que entrava arteiro pela janela quebrada. A escada mantinha-se inteira, os degraus reclamavam ao serem pisados, mas ainda eram bastante fortes. Lá em cima sentada de frente para a janela ela olhava o canteiro de rosas vermelhas, sua mente sofria e seu coração mais ainda. Lamentava-se por ter tomado aquela decisão errada, mas não se arrependia. As mãos enrugadas e os cabelos brancos mostravam que ela havia vivido muito mais do que almejara. Estava sozinha, aliás sempre esteve sozinha, só demorou demais para aceitar isto. Um barulho na escada lhe tira de seu devaneio. Com a voz vacilante ela pergunta:

— Quem está ai? – Nada é ouvido, apenas o ranger da madeira dos degraus. Nervosa ela torce as mãos e pergunta novamente.

— Quem está ai? – Desta vez um vento gélido entra no quarto, um vento mal educado, agressivo, sobrenatural. Com receio encolhe-se na cadeira e fixa o olhar na porta e o que surge ali a faz perder o ar por segundos.

— Não antecipe as coisas Mirela, ainda temos certo tempo para conversarmos. – Uma bela mulher de sorriso iluminado olhava com ferocidade para a senhora a sua frente. Sua voz não combinava com sua face angelical.

A senhora nada disse, apenas piscou várias vezes e esfregou-os com os nós dos dedos. A boca bastante enrugada comprimiu-se e pela primeira vez na vida ela lamentou nunca ter companhia. A outra se sentou na beirada da cama e a olhou demoradamente, deslizou seus dedos compridos por seu braço até alcançar o queixo bastante enrugado.

— O tempo não foi tão bom com você. Sua aparência é de noventa anos, mas sei que hoje você completa sessenta, não é?

Sacudiu a cabeça positivamente, seu corpo estava tremendo e agora temia por sanidade.

— Não Mirela, a senhora não está louca. Eu geralmente personifico aquilo que o freguês deseja. Sinceramente gostei bastante deste visual. – Passou lentamente as mãos pelos contornos do corpo e sorriu deliciada.

— Quem é você e o que faz em meu quarto? – Mirela perguntou com a voz firme. Ela não estava com medo, mas sabia que o que quer que fosse aquilo com certeza não era sua finada amiga.

— Olha só, achei que ficaria eternamente neste monólogo. Eternamente é uma palavra que me causa certo frenesi, devo confessar. – Uma gargalhada seca e jocosa saiu do fundo da garganta da coisa.

— Responde minha pergunta. – As mãos tremiam e seguravam firmemente o braço da cadeira de balanço. Lá fora o vento castigava o jardim e algumas pétalas de rosas voavam para longe.

— Sou aquela que você busca desde o dia que deu a maior prova de amizade de sua vida. Você chamou tanto por mim que hoje resolvi lhe atender, mas antes precisamos corrigir uma coisinha. Não sou a libertação, mas às vezes posso mudar de caminho e costumo ser “boazinha” com quem facilita o meu trabalho. – A bela lhe olhou no fundo dos olhos e labaredas brilharam em sua íris.

— O que eu tenho que fazer? – A voz saiu aliviada.

— Apenas confessar, deixar a pobre em paz. Trinta anos se passaram e você nunca permitiu a partida dela.

Ouvir aquelas palavras trouxe certa razão àquela mente perturbada, porém o sentimento de posse era muito mais forte.

— Quer dizer que ela nunca saiu de perto de mim? Sempre esteve aqui ao meu lado? Eu não preciso morrer para estar com ela? – A ausência de bom senso gritava em meio aquela voz delirante.

Sua ouvinte revirou os olhos negros e despiu-se de sua roupagem, olhou-a com ferocidade e disse com a voz ríspida:

— Saiba que o mal que causou a ela está impregnado em seu ser. Cada ato será cobrado, mas agora vamos ao que interessa, pois seu tempo está acabando. – Dizendo aquilo ela pegou um caderno, caneta e pousou tudo no colo da senhora. Olhou – a e disse com a voz que parecia sair de um túnel.

— Conte detalhadamente o que fez. – Sentou-se novamente e aguardou.

— Não farei isto e você não pode me obrigar. – Empurrou caderno e caneta, fazendo-os caírem no chão.

Um vento frio inundou o aposento e um denso nevoeiro se formou. O quarto estava às escuras e apenas um ruído oco era ouvido. Ela não se deixou abater, sabia que aquilo era apenas uma ilusão arquitetada, não queria deixa-la e por isto não faria o que lhe era ordenado. Um arrastar de pés foi ouvido e ela aguçou a audição, seu coração batia descompassado. O que viu a seguir causou-lhe um espanto tão grande que a fez soltar um grito ensurdecedor. Na sua frente estava ela, Rosa, a mais bela de todas as rosas, vestida para o casamento e seu sorriso continuava o mesmo. Nas mãos segurava um belo buquê de rosas vermelhas, porém algo estava errado. No peito havia um enorme buraco, o sangue jorrava e ela estendia a mão na direção de Mirela. Rosa caminhava vacilante e proferiu com certa dificuldade.

— Devolva-me, ele não lhe pertence, quero-o de volta.

As palavras causaram desespero em Mirela e a mesma disse loucamente.

— Nunca, jamais, ele não é seu, você o deu para mim. – Gritava a plenos pulmões e o olhar era de uma louca.

— Não, não o dei para você, apenas uma parte era sua. E pensando bem você nunca o mereceu, nunca, você é egoísta, arrogante, manipuladora, desumana; você é um monstro, odeio você! Não desejo mais sua repugnante presença, sua papa defuntos alucinada. – O fantasma lhe olhava nos olhos e devagar soltou o buquê, o mesmo rolou devagar pelo vestido até tocar o chão empoeirado.

— Não, não, não. – Enquanto gritava o aposento voltou ao normal e a figura encapuzada continuava sentada aguardando. O caderno e a caneta estavam novamente depositados no colo da senhora. A voz de túnel disse com uma calma sobrenatural.

— Achou mesmo que ela lhe perdoaria? Você roubou e isto é imperdoável. Agora faça o que mandei e seja breve, o tempo está quase extinto. – Levantou-se e aproximou-se da janela, o sol já havia se despedido e as rosas estavam quase que completamente despetaladas.

͸͸͸

Epílogo

Jornal da Manhã

— Algo surpreendente aconteceu hoje na pequena cidade de Barradinhos. Um crime que aconteceu a mais de trinta anos atrás foi desvendado. O repórter Vantuir Firmosa tem mais informações.

— Bom dia telespectador, bom dia Juvena. A cidade de Barradinhos foi surpreendida com a notícia da solução do caso “a noiva de Barradinhos”. Rosa de Mascarenhas ("noiva de Barradinhos") foi assassinada por sua madrinha e também amiga Mirela Nobrega. Mirela era médica legista e morreu na madrugada de hoje. Junto ao corpo foi encontrada uma carta que continha detalhes do assassinato. Um dos detalhes mais bizarros foi a da retirada do coração. A frieza do relato surpreendeu os que conheciam Mirela. A médica ainda confessou que enterrou o coração no jardim de sua casa. Teve o cuidado de revelar o local exato, um canteiro de rosas vermelhas. O laudo da perícia, que indicará a causa da morte, ficará pronto em dois meses. É com você Juvena.

Com um clique a tevê é silenciada e uma senhora abatida comenta com o marido.

— Sempre soube que aquela maldita invejava minha irmã, mas nunca pensei que ela seria tão malvada. Cê lembra como ela chorou? Como gritou e como se empenhou para ajudar encontrarem o corpo? Disgramada, tomara que ela apodreça no inferno. É isto que ela merece, ordinária.

O primo apenas olha de relance e não diz nada, um frio diferente adentra a casa. Algo os espia por detrás das cortinas. Seu sorriso vazio é pavoroso a voz etérea diz com calma:

— O seu dia não tarda, temos conta a acertar. Nada se esconde da Morte.

Valéria Oliveira
Enviado por Valéria Oliveira em 08/03/2012
Código do texto: T3543210
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